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Cidadania, educação e responsabilidade social: percursos biográficos de jovens grávidas em contextos de protecção social

Citizenship, education and social responsibility: concerning young pregnant women in social protection institutions

Resumos

Sexualidade, gravidez e parentalidade jovem são assuntos complexos e de grande debate na modernidade tardia globalizada, jogando questões de liberdade e direitos, a par de regulação e controle social público, constituindo-se, assim em campo de relevância educacional. Este texto revela conhecimento baseado em narrativas de uma jovem portuguesa e outra romena, de 17 e 19 anos, residentes em instituições de protecção social, devido a gravidez e maternidade jovem. Interpretam-se os seus discursos e subjectividades referentes a vivências antes e durante o período de custódia, mas projectando-se além deles. A discussão é enquadrada por relações entre cidadania sexual e íntima e educação, em cada percurso, sem esquecer as regularidades sociais que atravessam as suas vidas e das suas crianças. Discutem-se manifestações e regularidades que relacionam tanto género como poder: desconexão escolar prévia à gravidez, sexualidades desprevenidas e dificuldades em negociar sexo seguro.

juventude; narrativas biográficas; sexualidades; gravidez jovem; instituições de protecção social


Nowadays, sexuality, youth pregnancy and parenthood are subjects of great complexity and are relevant for education, in the global modernity debate, concerning rights, regulation and public social control issues. This paper focuses girls' biographical narratives, with seventeen to nineteen years old, living in social protection institutions due to youth pregnancy and maternity. Therefore, their perspectives produced inside the institutions reveal their subjectivities and paths lived before and during the custody experience. The argument establishes the relations between (sexual) citizenship and education, based on each singular path and its social relationships. There are obvious manifestations that relate gender and power, such as: the disconnection prior school, unprepared sexualities, the difficulty in negotiating safe sex.

youth; biographies; sexualities; youth pregnancy; social protection institutions


ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Cidadania, educação e responsabilidade social: percursos biográficos de jovens grávidas em contextos de protecção social

Citizenship, education and social responsibility: concerning young pregnant women in social protection institutions

Laura Fonseca; José Manuel Peixoto Caldas.

Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Departamento de Ciências da Educação, Portugal

RESUMO

Sexualidade, gravidez e parentalidade jovem são assuntos complexos e de grande debate na modernidade tardia globalizada, jogando questões de liberdade e direitos, a par de regulação e controle social público, constituindo-se, assim em campo de relevância educacional. Este texto revela conhecimento baseado em narrativas de uma jovem portuguesa e outra romena, de 17 e 19 anos, residentes em instituições de protecção social, devido a gravidez e maternidade jovem. Interpretam-se os seus discursos e subjectividades referentes a vivências antes e durante o período de custódia, mas projectando-se além deles. A discussão é enquadrada por relações entre cidadania sexual e íntima e educação, em cada percurso, sem esquecer as regularidades sociais que atravessam as suas vidas e das suas crianças. Discutem-se manifestações e regularidades que relacionam tanto género como poder: desconexão escolar prévia à gravidez, sexualidades desprevenidas e dificuldades em negociar sexo seguro.

Palavras-chave: juventude; narrativas biográficas; sexualidades; gravidez jovem; instituições de protecção social.

ABSTRACT

Nowadays, sexuality, youth pregnancy and parenthood are subjects of great complexity and are relevant for education, in the global modernity debate, concerning rights, regulation and public social control issues. This paper focuses girls' biographical narratives, with seventeen to nineteen years old, living in social protection institutions due to youth pregnancy and maternity. Therefore, their perspectives produced inside the institutions reveal their subjectivities and paths lived before and during the custody experience. The argument establishes the relations between (sexual) citizenship and education, based on each singular path and its social relationships. There are obvious manifestations that relate gender and power, such as: the disconnection prior school, unprepared sexualities, the difficulty in negotiating safe sex.

Keywords: youth; biographies; sexualities; youth pregnancy; social protection institutions.

Introdução

Propõe-se neste artigo discutir as experiências e perspectivas de duas jovens, de 17 e 19 anos, uma portuguesa e outra romena que, por engravidarem, se encontram a residir temporariamente em instituições de proteção social, especificamente numa comunidade de inserção para jovens grávidas e/ou mães, em "situações de risco"1 1 Sob tutela da Segurança Social, ao abrigo da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP, 1999). . Neste alojamento transitório, espera-se conseguir que as jovens adquiram "competências" e "sentido de responsabilidade", assumindo-se como prioridade a "prevenção ereparação de situações de exclusão ou vulnerabilidade social", através da conjugação de "esforços terapêuticos e educativos" com vista à sua inserção.

A metodologia subjacente a este texto baseia-se na interpretação das duas narrativas biográficas das jovens mães, em busca de: escutar a singularidade dos seus percursos; trazer para o conhecimento científico o carácter heurístico das suas narrativas biográficas; e interpretar as experiências e significados atribuídos à sua própria história, segundo o processo de Verstehen. (ARAÚJO, 2004). Por sua vez, os discursos e as narrativas resultam de encontros biográficos, realizados num contexto institucional. São por isso encontros contextualizados e discursos produzidos enquanto "membros" desse contexto.

As temáticas da pesquisa em causa enquadram-se numa perspectiva de cidadania ampla para a juventude. Juventude é certamente uma categoria atravessada pela diversidade social de grupos e lugares culturais, tal como a cidadania é estendida aos diversos setores da vida, aqui concretizados mais nas questões da cidadania sexual e íntima da juventude feminina transitoriamente sob custódia. Visa-se assim, a produção de conhecimento educativo sobre percursos e problemáticas atuais da juventude, procurando perceber quem são estas jovens institucionalizadas; a especificidade das suas experiências; os modos como foram e estão a ser educadas e a construir-se como mães e jovens; e as interconexões entre o vivido e os novos contextos e espaços sociais.

Gravidez, maternidade e proteção social

Neste contexto, a presente reflexão está atravessada por diversas preocupações. Desde logo a busca de dimensões educativas, na perspectiva de quem as vive. Considera-se que tais dimensões estão dentro e fora das instituições; dizem respeito à experiência passada, presente e desejada; abrangem relações sincrônicas e diacrônicas. Por isso, a interpretação dos discursos das jovens, focalizados tanto na compreensão das dimensões experienciais presentes nos seus percursos anteriores à entrada na instituição, como nos já construídos em contexto de custódia. Deste modo, espera-se contribuir para uma reflexão acerca da natureza educativa do trabalho desenvolvido nestes espaços, muitas vezes situado, na tensão entre trabalho educativo, terapêutico, punitivo e de "reparação". Não se esquece nesta reflexão a tipologia apresentada por Iris Young (1997), que apresenta três modos de ação (punitivo, tratamento ou transformador) com mães toxicodependentes, em que argumenta que os programas que enfatizam tratamento, continuam a reter tendências punitivas.

Ainda nesta discussão, realçamos a conceitualização do local-global, no atual contexto de emigração pendular europeia (KEHILY, 2009) para interpretar as temáticas das sexualidades, gravidez e parentalidade (LEES, 2000; WALKERDINE et al., 2001). Tal permite interligar, quer as especificidades educativas de lugares sociais e institucionais de proteção da infância/juventude, quer as narrativas das biografadas que abordam o lugar. Nesse contexto, Jane Kehily argumenta a importância das "novas comunidades de interpretação" como espaços de produção de significados, onde instituições e sujeitos, a partir dos consumos jovens, comunicam e constroem novas conversas locais-globais. Por isso, quando escutamos estas jovens, ainda que apresentando-se fortemente ligadas às comunidades, é dada atenção a possíveis influências que certamente atravessam as suas vidas dentro das instituições sociais.

Assim, à luz da cidadania da juventude, estas temáticas podem adquirir outros sentidos e experiências, além das merecidas pela atenção pública. No caso da gravidez, tem sido visibilizada sobretudo a elevada incidência da gravidez adolescente portuguesa, país que ocupa o segundo lugar no contexto europeu (APF, 2004). Perspectivamos essa atenção pública no processo das recentes transformações do equilíbrio entre vida pública e relações de gênero. A alta taxa de gravidez adolescente acontece ao mesmo tempo que se eleva a idade em que as mulheres têm o primeiro filho e que diminuem as taxas de natalidade, enquanto se espera uma maior participação em percursos educacionais e em carreiras profissionais. A gravidez adolescente quebra as expectativas normatizadas em relação às trajetórias de vida e à fecundidade adequada. Esse é um dos fatores que conduz à visão corrente de que gravidez precoce é problema a ser combatido. Todavia, este é um tema com múltiplas mensagens, incluindo a percepção da maternidade como valor positivo de integração das mulheres, em certas comunidades. Além disso, a incidência do fenômeno da gravidez adolescente tem sido focalizada no comportamento problemático feminino, isentando os rapazes e adultos masculinos de responsabilidade, tanto em relação à gravidez e parentalidade, como em relação à saúde sexual e reprodutiva, sobretudo no que toca às doenças sexualmente transmissíveis. Todas estas questões têm certamente implicações profundas nos saberes e nas práticas educativas, nomeadamente de educação sexual.

Também o estudo da sexualidade encontra-se muitas vezes circunscrito ao campo da reprodução, das relações familiares e da heterossexualidade normativa, tendo o debate sido renovado, particularmente a partir dos anos 90, quando diversos estudos das ciências sociais passam a explorar o foco da cidadania e justiça social além do âmbito da esfera pública (ARNOT et al., 1999; FONSECA, 2009). Estão, assim, abertas novas portas para que os direitos de cidadania se ampliem a questões como a sexualidade e a intimidade, alargando-os a olhares e sujeitos até aqui silenciados e negligenciadas nas discussões clássicas (GIDDENS, 1996). A crítica feminista e dos movimentos gay e lésbico empurraram o debate para a relação entre direitos, gênero e poder. Propõe-se a extensão dos três direitos de Marshall, para incluir um quarto, os direitos culturais. Dessa elaboração emerge o conceito de cidadania sexual, apesar das críticas de hedonismo e individualismo (RICHARDSON; TURNER, 2001). Também Ken Plummer (2003) "rebusca" a noção de "transformação da intimidade" de Giddens e propõe o conceito de cidadania da intimidade de modo a abranger, como esferas de direitos de todos/as, a vida privada e as sexualidades. Assim, um número considerável de pesquisas recentes sobre sexualidades consideram cidadania e educação como paradigma heurístico para enfrentar estas questões (MAC AN GHAILL, 1994; HOLLAND et al., 1998; ARAÚJO, 2004; REDGRAVE, 2009; FONSECA, 2009).

Neste sentido, uma das vantagens de focar gravidez adolescente pelo prisma da cidadania é permitir uma abordagem crítica, promovendo alternativas às leituras centradas em fatores psico-biológicos e na falta (informação, recursos, estruturação familiar e emocional). Este olhar permite perceber o quanto os discursos carencialistas contribuem para o reforço e reprodução da desigualdade social. Cremos que estas aberturas teóricas podem ser um filão para desafiar e reclamar a cidadania da juventude e constituir reflexão importante para melhor compreensão das realidades sociais e educativas vividas e/ou socialmente desejadas para os membros mais jovens da sociedade local e europeia, incluindo a que transitoriamente habita instituições de proteção social, pelo fato de "ter acontecido" gravidez e maternidade jovem.

Percursos cruzados

O universo de Dalila

Dalila nasceu e cresceu na Romenia, numa família trabalhadora. Foi criada com a mãe, a irmã mais nova e o padrasto, a quem chama pai. O seu percurso foi "muito movimentado" nos primeiros anos de escolaridade. Depois do 5º ao 8º ano estabiliza na mesma cidade e escola. Nas perdas e adaptações das movidas, valia-lhe a presença e cumplicidade da irmã, com quem diz ter aprendido a ultrapassar dificuldades. Também, na adolescência, foi trabalhar na Itália com a sua mãe. De regresso à Romenia, é encaminhada para uma escola profissional, fora da sua cidade, o que a impede de frequentar a Universidade, como desejava. Uma combinação de mudanças e "escolhas" empurram-na a viver numa aldeia, onde tenta vida independente, através do estudo e trabalho.

Já neste novo contexto, estabelece um relacionamento longo com um namorado, que sem comunicar, um dia desaparece. Entra num processo de distanciamento da escola e decide abandoná-la no 10º ano. Depois, conhece outro rapaz, com quem se relaciona sexualmente e de quem engravida, aos 18 anos. A notícia e situação de gravidez é vivida em profunda solidão. Dalila, numa primeira fase é tomada pelo medo, vergonha e fama, decide não contar a ninguém e tentar "em segredo" para si uma saída, sobretudo porque sabe que o pai do seu filho a abandona. É este novo dado na sua vida que a conduz a fugir sozinha da Romenia para Portugal.

A emigração ilegal aparece-lhe como a possibilidade de fazer face ao problema, longe do escrutínio do local. Acredita que tem neste país europeu, a possibilidade de poder ganhar para criar a sua criança. Comprado o bilhete, desembarca e é "abandonada", em Lisboa, onde fica dois dias. Depois é conduzida até Faro, onde, cansada e sem saída se entrega à Segurança Social e daí é encaminhada para uma instituição de custódia. Após ser mãe, é transferida para uma Comunidade de Inserção no Norte, onde reside. É hoje uma jovem mãe, que fala bem a língua portuguesa e cuja vida se limita a cuidar do seu bebê e, em revolta, aguarda ansiosamente o regresso ao país...

O universo de Daniela

Daniela nasce e cresce no seio de uma família numerosa, composta pela avó, mãe, irmãos, tios, tias, primos, padrasto e filha deste. Com o pai, residente em Espanha, mantém uma relação de distância devida a excessos de álcool e agressividade. Da relação com a mãe destaca os conflitos entre ambas, por ser obrigada a frequentar a escola e ser recriminada nas suas "companhias". Todavia, Daniela destaca a influência do grupo de amizade no seu percurso. Esta nasce na relação conturbada com a escola, marcada pelo absentismo, reprovação e conflitos com seus agentes. A cultura rebelde de grupo em que se insere ganha peso na opção de abandono escolar e entrada no trabalho ou, mesmo, na familiaridade com a condição de mãe. Deixa a escola no 8º ano e inicia em um trabalho em período integral num café, onde antes exercia atividade em part-time. Nesse contexto é obrigada a contatar com muitos rapazes e homens, sendo aí que conhece o pai do seu filho. Apesar dos avisos da sua patroa acerca da irresponsabilidade deste com as raparigas, inicia e mantém este relacionamento. Depois, a pretexto de ciúmes, este pressiona-a ao abandono do trabalho, alegando desacatos e atrevimento dos clientes. Exigência a que Daniela cede, ligando-a uma tentativa de violação que sofreu.

Desocupada e dependente passa a frequentar a casa do namorado, onde "acontecem" envolvimentos sexuais desprotegidos, porque idilicamente confiava que "ele sabia o que fazia", como lhe afiançava.

Engravida ao fim de dois meses, situação que desencadeia o abandono do namorado. Em pânico, numa primeira fase, considera o aborto como opção. Contudo, com o passar do tempo, a ideia de ser mãe nestas circunstâncias começa a ser assimilada. Neste momento a Segurança Social entra em cena e, contra a sua vontade, inicia o processo de institucionalização por ser considerada uma jovem em risco, onde entra com 2 meses de gravidez e ai permanece.

Ser objecto de proteção pública

Percurso de Dalila

Turbilhão e pressões: de "mais rapaz" a "rapariga mesmo"

Dalila à entrada na Juventude é confrontada com pressões fortes, no sentido de mudar a feminilidade em que se sentia segura e confortável, para passar a adotar a versão dominante, considerada mais adequada à nova jovem que deveria emergir.

Não vestia calças apertadas, nem saia, era só fato de treino, cabelo preso e boné. Tinha o cabelo sempre preso, tinha uma trança e prendia o cabelo e andava sempre de chapéu. Era assim, mais rapaz

No seu dizer, o modo como se construíra como rapariga tinha sido estimulada pelo pai e alicerçado na relação com pares da turma, onde existia uma desproporção numérica - 26 rapazes para 6 moças. Aí "aprendeu" a lidar com alguns dos dilemas de gênero, procurando algum poder através de uma maior aproximação e interacção com os rapazes, sem deixar de defender os direitos das moças.

Gostava mais de andar com rapazes, eles percebem-me, sei lidar melhor. Agora as raparigas são esquisitas: «ai a minha unha partiu, ai não gosto do meu penteado... Ai aquele rapaz gosta dos meus olhos»

Os dilemas de gênero empurram, frequentemente, algumas crianças e jovens para construírem uma feminilidade de tipo Maria-Rapaz (FONSECA, 2009). Esta possibilita "realizações respeitáveis" nos seus "circuitos de troca" (SKEGGS, 2002, p. 323), ao mesmo tempo que as raparigas arriscam ao mínimo a sua segurança, sentindo-se e tornando-se aceites e com algum poder no grupo de pares (SKEGGS, 2002, p. 323).Contudo, persistir na juventude neste tipo de feminilidade apresenta riscos e, por isso, Dalila sente-se "forçada a mudar" e tornar-se "uma jovem adequada". Na verdade, percebe que no interior dos cânones da "compulsória" masculinidade hegemônica, que define e escrutina as feminilidades, a sua "transgressão" só é aceite transitoriamente, porque rasa a fronteira de "mulher adequada". As preferências por companhias e estilos masculinos devem ser abandonadas. A narrativa de Dalila revela as pressões para assumir "o estilo feminino", o que constitui o processo de entrada na carreira de namoro, onde diversos agentes e instituições intervêm.

A minha mãe, quando cheguei aos 16 anos, já não concordava que andasse sempre com os rapazes... "Já estou farta... a minha menina tem que mudar, não tem que ser sempre rapaz." E a minha mãe começou a fazer-me a depilação, as sobrancelhas, a pintar-me... e comecei a gostar

.

Com efeito, a pressão que a mãe exerce para "impor" a mudança a Dalila é motivo de aplauso e elogio da comunidade, incluindo a escolar, o que revela a natureza genderizada dos sujeitos e instituições sociais

Toda a gente a olhar para mim dizia "Vês não tinhas que fazer aquela diferença, rapaz e rapariga. Porque tu és rapariga" Até a professora de música dizia: "Estás esquisita...mas gosto mais de ti assim! A tua mãe já devia ter feito isso há mais tempo...

Ainda que estas mudanças tenham despertado em Dalila uma atenção e atração por novos aspectos do mundo masculino, vê-se de repente confrontada na sua intimidade com noções naturalizadas e normatizadas pela moral do corpo adequado como corpo sexy. Estas novas pressões sexy de consumo feminino causam-lhe constrangimentos e vergonha, sentindo que ferem a sua cidadania sexual e íntima.

Quando mudei não gostei muito de mostrar as minhas coisas, a parte de cima do peito, que andava sempre tapada. Não conseguia ver-me bem assim. Estava sempre a tapar, punha um top... um lenço.

Estas são, sem dúvida, questões centrais no processo de se construir e ser construída como rapariga, com pouca segurança, conferindo centralidade à natureza reguladora do trabalho educativo.

Namoro, vergonha e fama: como revelar o desejo?

Entrar na carreira de namorar exige aprendero saber e o trabalho de se tornar adequada. O passo que segue nesta carreira do namoro traz consigo dinâmicas de iniciação sexual. Ora, esta dimensão tão central da vida, no caminho do namoro heterossexual é, muitas vezes, para as raparigas, um palco de confronto de muitas ansiedades, entre aos sentidos de prazer e desejo genuínos que emergem misturados com noções conservadoras dominantes. A narrativa de Dalila nota as dificuldades vividas para negociar interações sexuais logo com o seu primeiro namorado, com quem inicia relações sexuais, aos 17 anos.

A primeira vez não gostava... as coisas não correram muito bem. Não deixava, não queria, não tomava a pílula. Ele não usava preservativo.... Ainda não estava preparada, comecei cedo demais, fiquei muito assustada. Comecei a ganhar ódio.

A vergonha constitui marca constante no discurso de Dalila. Uma vergonha sentida, imaginada e mesmo legitimada pelas comunidades. É um sentimento que emerge desde cedo na família e se prolonga na vida, o que vai explicar a sua falta de poder para negociar com os parceiros. Na verdade, a ausência de voz para uma adolescente dizer o amor, neste caso a um rapaz, levanta questões sobre o lugar para construir e reclamar cidadania sexual. As relações de gênero cruzam-se nas experiências vividas que continuam a moldar a vergonha e as interações sexuais e de namoro. A possibilidade feminina de revelar desejos e afetos íntimos, continua a ser considerada alvo de gozo.

E quem passa vergonha? Somos nós...

Tive vergonha quando comecei a ter relações sexuais, porque ainda não estava na altura de ter, era muito pequenina, tinha aquela idade de ser uma rapariga muito frágil. Se vou dizer que comecei a minha relação sexual vão começar a rir-se de mim

As raparigas correm o risco de "ganhar fama" e ser consideradas sexuais, "tolas" e "atrevidas", o que gera profundas ansiedades e dificulta a prevenção. Então, como revelar e dizer o desejo?

Não achava piada namorar com ele, era muito distante, ficava longe de mim. Eu dizia:

- Estás à espera que eu venha beijar-te?

- Não, eu posso ir.

- Pensava que estava aqui com uma criança.

- Tu és muito atrevida!

És a culpada, não devias fazer...

O modo de fugir a estas marcas é ser "namorada séria". Por isso, passa a dormir em casa dos pais do namorado. Esta "entrada" ocorre em contexto de fragilidade, o que é pouco compatível com a autonomia. A solidão que vai experienciar parece distanciá-la da escola, conferindo ao namorado (e ao trabalho) o centro das suas preocupações.

Também a relação de namoro é vivida com pouca autonomia e poder, o que dá lugar a relações sexuais desprevenidas. Estes acontecem em contexto de vergonha, guiados por noções de "agradar" e "servir", "aceitando" a dependência, pressões e "enganos" dos parceiros. Isto, sem deixar de pensar que o desejo também está presente, embora nem sempre revelado em condições de poder. Aqui são também lembradas as fantasias românticas veiculadas, face ao uso da contracepção, ficando assim expostas a noções míticas de "acontecer" gravidez e DST.

As minhas amigas não gostavam do preservativo, "Para que vou tomar isso? Não fico grávida, já fiz tantas vezes e não fiquei". Ainda estão naquela de adolescente. "É mais sensual. É mais lindo sem preservativo.

Os rapazes não gostam de usar... às vezes enganam a rapariga. Elas não sabem, não têm a noção que ele não tem o preservativo. [...] Às vezes pensamos assim, o rapaz não gosta, não se sente confortável. Não pensamos em nós.

Algumas minhas amigas usavam pílula, mas nunca tive ideia de usar.

Confiava, "não fico grávida, sou forte"!

A Dalila sabe, por fim, que a responsabilidade da gravidez continua a ser atribuída às mulheres, muitas vezes alvo de chacota

Se estivesse na Romenia passava grande vergonha por ficar grávida, porque o meu filho estava a crescer dentro da minha barriga... e ele a rir de mim! Mas não é vergonha ficar grávida. É vergonha o que os pais dos filhos fazem. A mãe é que passa vergonha, é que fica sozinha. Eles querem lá saber da vergonha, porque são rapaz e começam a desenrascar-se

Isolamento, abandono e fuga constituíram os modos e recursos de que Dalila dispunha para enfrentar a realidade da gravidez. Por isso, pede segredo sobre a sua gravidez, tanto ao namorado, como a um amigo a quem contou. Quando a gravidez é confirmada o namorado não assume a paternidade, culpabiliza-a, humilha-a e abandona-a.

- Eu gosto de ti. Mas agora um filho é muita responsabilidade.

- Mas eu não tenho culpa. Tu também tens culpa. Somos os dois culpados.

Ele sempre "Tu és culpada, não devias fazer isso.

- Somos os dois. Naquele dia ninguém usou preservativo.

- Quando soubeste que estavas grávida porque não foste abortar? Sou muito novo... para ter filho

Emigrar, a solução para a gravidez...

Decide emigrar para Portugal em busca de trabalho e para fugir a tanto infortúnio que a atormenta. A fuga aparece-lhe como a solução melhor para si,

Sabia, no fundo do meu coração que ele não ia ficar comigo... que me ia abandonar...O emprego perdia, de certeza... Sabia que não ia ter ninguém do meu lado. Nem dinheiro, nem família, nem casa. Ficava onde?

Tomada pelo impulso e medo de ser "julgada", resolve comprar um bilhete de autocarro a caminho de Portugal, dizendo à mãe que vem trabalhar com seus amigos. Na chegada a Lisboa fica completamente perdida, confrontando-se com a incomunicabilidade da língua, a ilegalidade, o completo isolamento. Durante 4 dias, circula entre Lisboa e Faro, num trajeto de sucessivas fugas e enganos que a fazem sentir "estrangeira" e "estranha". Vencida pelo cansaço, fome e sem perspectivas, decide entregar-se, abrindo espaço para a entrada do sistema de protecção social, na medida em que lhe é diagnosticada gravidez, já de sete meses.

Percurso de Daniela: tornar-se objecto de proteção pública

Desconexão, escola e grupo de pares

Como vimos, o percurso escolar de Daniela é muito conturbado, irregular e marcado pelo absentismo, reprovação, conflitos com agentes da comunidade escolar. O estatuto rebelde e irreverente que a caracteriza, se por um lado explica os insucessos educativos e a insere na categoria de "aluna problemática", por outro torna-se central para a construção da sua identidade no seio de um grupo de amigas. Assim, o "sentimento de pertença" ao grupo de amizade, igualmente rebelde, dota Daniela de uma feminilidade vista como forte, mas recriminada pelo modo escolar.

Passei para o 8º. Andei e depois comecei a ter problemas e não fui mais... Nós pegávamo-nos com o porteiro da escola... Ele mandava-me para a escola. Comecei a ter problemas... Andávamos à porrada, mal falavam qualquer coisa para nós, a gente era logo "Pimba"

A rede feminina jovem de Danielaevidencia como começa apartilhar um "nós" de " parariga rebelde", a perturbar e fazer distúrbios. Se por um lado, fica mais desconectada da escola, por outro a pertença ao grupo traz algum poder coletivo, frequentemente imposto com agressividade e violência, dirigido a quem questione o estatuto do grupo.

Mas o percurso da Daniela nem sempre foi assim. Ele permite perceber como se produz este processo de se tornar rebelde com algum poder. Na verdade, os seus primeiros tempos escolares são já vividos em desconexão, mas em silêncio e vergonha "dos outros". Sente-se marcada pela sua presença invisível. Então, à medida que se torna jovem vai negociando a sua inclusão, emergindo de sujeitoestranho silencioso a sujeito educacional desconectado, agora visível pela rebelião. Ambas as desconexões são centro e razão para "detestar a escola".

Detestava a escola. Quando entrava, ficava toda a gente a olhar para mim. Não me dava muito com eles... era muito calada, não falava

Os quotidianos escolares são marcados por ausência e negação do ensino escolar. Ora, a exploração do "outro lado da escola" aparece como possibilidade rica e gratificante de aprendizagens, especificamente no que diz respeito à construção das suas feminilidades e sexualidades rebeldes e aos modos de afirmação de poderes intra e intergeracionais. Assim, a orientação por um percurso de distanciamento da vida acadêmica, absentismo e de "faltas", permite investir na convivialidade rebelde dentro e fora da escola.

Na dependência desta contra-cultura e transgressão coletiva, Daniela realça, no entanto, que gostava de algumas aulas, professores/as. Talvez esta autovalorização exprima uma vontade de não cortar totalmente os laços com a escola. Porém, as faltas conduzem ao abandono no 8º ano, juntamente com o seu grupo. A decisão coletiva simboliza, não apenas o poder das redes de amizade e resistênciafemininas, mas também os processos vividos de opressão, que afetam os grupos com poucos recursos, como evidenciam as relações de parentesco existentes.

Para não ser expulsa preferisair da escola. Saímos para aí 3. Se for a ver a ocupação é quase a mesma, mas só que se a gente a trabalhar ganha dinheiro, enquanto na escola é só escolaridade

Gravidez, sexualidades desprevenidas

O poder das redes femininas de amizades na produção de sexualidades e relações rebeldes é fundamental para se contextualizar os percursos das jovens. A gravidez adolescente e a iniciação sexual precoce são questões que se encaixam na experiência escolar e do grupo familiar. Embora não desejada pela família, a gravidez é algo que causa pouca estranheza, e pode até ajudar a legitimar o abandono escolar, há muito precedido de desconforto e desconexão, expresso na rebelião do grupo.

Temos sempre imensos casos! As raparigas engravidavam sempre. A minha amiga namora com o meu irmão e foi mãe aos 14 anos. Ela queria para sair da escola, porque sabia perfeitamente que se engravidasse, o meu padrasto não a deixava ir

Ser ativa sexualmente, surge associada à iniciação sexual do grupo. A "primeira vez" de Daniela acontece com o namorado anterior, sexualidade que é prevenida. Todavia, quando começa a namorar com o pai do filho, há forte pressão deste, para a convencer de que é momento certo. Mais uma vez, a casa dos pais do rapaz continua a ser o "refúgio", onde o par jovem pode legitimamente estar e ter sexo. A Daniela engravida porque não usavam métodos contraceptivos e porque acredita romanticamente no namorado que diz "sei o que estou a fazer".

Apesar da familiaridade com o fenômeno da gravidez jovem, o momento da descoberta foi marcado pela recusa de enfrentamento do "problema". A perspectiva de ser mãe sozinha levanta a questão do aborto... Mas o tempo vai construindo a aceitação da condição de mãe.

Namorava desde Novembro, em Dezembro engravidei. O meu namorado disse que assumia se estivesse. Em Fevereiro, tive a certeza, contei-lhe e ele deixou-me, mal soube que estava grávida. A partir daí nunca mais quis saber...E eu ao primeiro não queria... não posso ter... Fiquei!

A desilusão e a tristeza de ter "sido deixada" trazem autoculpabilização por não ter dado ouvidos aos alertas e ter acreditado no namorado. O ânimo para seguir em frente com a gravidez é resolvido com a aproximação à mãe, que também está grávida.

Interpretar experiências em instituições de proteção social

Experiência de Dalila em duas instituições: "de raparigas" e "de mães"

Em Portugal há 4 dias, Dalila entrega-se à mulher que lhe pergunta: - "Estás grávida?" A resposta positiva desencadeia os mecanismos de ação do sistema de segurança social, sendo colocada numa instituição para raparigas, onde recebe, logo à entrada, cuidados básicos.

"Ela não é portuguesa, é romena, não sabe falar!

Entreguem à polícia, expliquem a situação e nós vamos buscá-la"

Eu deixei, desde que ela me ponha num lugar seguro. Foram comigo para uma instituição de Proteção de Raparigas. Disseram que tinha que tomar banho, vestir roupa limpa, para ir ao hospital porque estava grávida. Tive vergonha de comer à frente daquela técnica. Mas quando ela saiu comi, comi. Estava cheia de fome!

Fizeram um quarto enorme só para mim! Dormi, dormi...

E depois quando me vieram acordar estava cheia de vergonha... muitas raparigas à minha volta... "Ela não sabe falar, é romena não tentem falar com ela que não percebe nada!"

Este espaço de proteção social estranho, torna-se o lugar seguro desejado, sentindo acolhimento e cuidado. Dalia aí permanece 2 meses, até ao nascimento do bebê. Recorda, com agrado, a ajuda e bem-estar: recursos básicos de saúde, higiene, alimentação e espaço para si; ambiente envolvente de afeto quer de técnicos, quer de pares; estímulo à aprendizagem. Afinal, o cuidado, protagonismo e reconhecimento, ingredientes que a justiça social implica e reclama.

Elas puxavam muito por mim para falar. Adorei estar naquela instituição. Aprendi muito. Foram muito minhas amigas. As técnicas ajudaram-me muito. Fiquei até o Rafael nascer.

Este espaço seguro permite a Dalila restabelecer-se e, pelo menos a curto prazo, pensar em si e no seu bebê. Fala e comunica com a família, tenta aproximações e clarificações com o namorado.

Quando nasce o bebê, Dalila não aceita a adoção que estava preparada e decide pelo regresso ao seu país. Com efeito, é transferida para a "Comunidade de Inserção" para mães e grávidas jovens, onde é "acolhida" a fim de se tornar uma boa mãe, enquanto se procedem aos trâmites da repatriação.

Aceitei vir aqui para esta instituição pelo meu filho, porque, não quis dar para adoção, queria ficar junto dele. Só vinha por três meses... Acabei por ficar aqui quase dois anos...porque o Segurança Social não tem dinheiro para me mandar

A obsessão pelo regresso toma-a, sobretudo porque tem uma "vida de espera", de "reclusa", passividade, regulamentos e regras... sob vigilância. Um tempo que nunca mais tem fim...

Quando tive que vir para esta instituição não achei muita piada. Tinham-me dito, "Vais voltar para a Roménia, falta pouco". Tinha que ficar 4 meses. Ao fim de um mês tinham que me fazer uma avaliação para ver como cuidava do meu filho... se sabia cuidar. E vim. Deram-me o regulamento... com muitas regras! Li... Não concordava... Tiraram-me o telemóvel... Só temos o telemóvel uma hora das 10-11h da noite E na Roménia é muito tarde, quando falo com os meus pais. Chorava muito!

Se nos concentrarmos na explicitação de alguns dos ingredientes educacionais da instituição, eles confrontam com experiências interiorizadas de vida de trabalho e formação

Não posso entrar no curso porque vou embora. Às vezes, fazemos tarefas... Às vezes estamos na cadeira quase a dormir... Às vezes faço o trabalho da casa com materiais, bonecos, carros, carteiras... Quando não tenho mesmo paciência para nada estamos a falar... Eu estou habituada a trabalhar e a estar com os meus amigos... porque aqui não considero ninguém amigo, são colegas... duma instituição.

Nos seus próprios termos, está a ser apenas tratada e avaliada, num contexto em que sublinha não haver lugar para afetos e amizades com pares. Sente-se desesperada, sem perspectivas, revoltada... num quotidiano sem rumo, o que explica a sua agressividade e culpabilidade.

Sou uma pessoa muito agressiva aqui dentro, mesmo se agora neste momento estou a mostrar que estou calma é só para conseguir sair daqui. Estive algumas vezes agressiva com o meu filho, por causa desta instituição. O tribunal não achou piada e mandou-me ficar imenso tempo aqui. Depois há alguns meses atrás fugi desta instituição com o meu filho, já não aguentava mais. Queria voltar para a Roménia. Mas, voltei para o Porto... Preciso de autorização para ir. E levei consequências durante dois meses e meio. Nunca fiquei tanto tempo fechada! Perdi a paciência, não conseguia ouvir a criança chorar... Estou-me a sentir muito responsável. Ele está colado a mim. Só penso

: já sou uma mãe, tenho de ter mais responsabilidade para mostrar ao meu filho

A vida de Dalila apresenta um conjunto de tópicos pertinentes para equacionar a complexidade do trabalho sócioeducativo institucional, que serão acrescentados e cruzados com as visões de Daniela.

Experiência institucional de Daniela: "à força mas ainda bem que estou aqui"

Apesar da família da Daniela ser alvo de acompanhamento da Segurança Social anterior, devido a vulnerabilidades múltiplas, o seu processo de institucionalização decorre por ausência de condições no contexto familiar para cuidar do bebê. Isto, aliado à desresponsabilização e fuga do namorado à paternidade. Ao mesmo tempo, o seu relato evidencia como os múltiplos procedimentos de trabalho e politicas estatais (sociais, educativas e de saúde) parecem ineficazes para lidar com as dinâmicas das sexualidades prevenidas, gravidez, aborto e maternidade presentes:

A minha técnica, antes de vir para cá esteve a falar comigo. E disse, "mais vale tu abortares e ficares cá". E eu "Não quero". Ela propôs isto. E eu "se for para ir para lá fujo para Espanha ou para a beira do meu pai". A minha técnica apareceu lá de surpresa sem eu saber. [...]

Mandou-me para cá porque a minha mãe também estava grávida e não dava jeito ter dois bebês em casa. Ui, passei-me, só vim para cá porque foi lá a Polícia me buscar, senão não vinha.

As tensões e fronteiras entre os modelos de proteção social, judicial e terapêutico de ação estatal para "proteger" os interesses das jovens e crianças, legitimam a "reclusão", neste caso tratando a vítima, as mães e menores. O desespero de ser "acolhida à força", sem alternativa e poder, expressa a fragilidade deste grupo.

A gente só está cá por causa dos bebês, senão ninguém estava aqui.

Apesar da negação inicial deste processo de internamento forçado, após a fase de acolhimento e adaptação à sua condição de mãeinstitucionalizada, a Daniela apresenta este contexto como um potencial de mudança na sua vida, porque lhe permite a distância necessária para se proteger de possíveis "asneiras" e "irracionalidades", que poderiam ocorrer, caso continuasse no seu contexto de vida.

Nunca quis vir para aqui, mas... vim. Ainda bem que estou cá. Estava com 2 meses e até agora ainda estou com o meu filho. Em casa não tinha condições... Se tivesse lá já tinha feito asneiras... Se visse o pai do meu filho matava-o. A sorte dele é não o apanhar

Os quotidianos da instituição são muito regulados em termos de tarefas e horários. Daniela ressalta com negatividade a sua vida, quase circunscrita à educação, higiene e rotinas das práticas de boa mãe. São aprendizagens percebidas como importantes para o papel de mães, mas que pouco mudam a situação que, "sabem a pouco" e trazem vidas "paradas" e de pouco cuidado de si.

O meu filho normalmente acorda às 5h e não me deixa dormir até às 8h, depois a gente levanta-se às 6h45. Dou-lhe de mamar às 7h, a partir daí nunca mais dorme, só às 3h é que adormece. Mudo-lhe a fralda, dou-lhe de mamar, lavo-lhe a carinha, meto-lhe creme, visto-o, meto-o logo no berçário, para arrumar o meu quarto. Depois tomo o pequeno-almoço às 8h...

Esse controle alia-se à dificuldade de regulação das relações internas e externas, o que se expressa no reforço dos castigos, da fragmentação dos tempos, na regulação dos contatos com o exterior, como se percebe no caso dos telefonemas

A princípio havia sempre discussão, a gente levava mais consequências [castigos], agora não.

Na sala de convívio só podemos mandar mensagens e não fazer telefonemas. Só usamos o telemóvel uma hora por dia à noite. Agora, as minhas amigas, são daqui da [instituição] porque quando vou lá fora...

Este "enclausuramento" não parece evitar a necessidade que Daniela tem de continuar a manter contato com o pai do filho que a abandonou. Parece até revelar a dependência e a ilusão de uma possível mudança e "regresso" romântico

A gente falava por mensagens ou ele ligava-me a saber como é que o menino estava.

O meu filho nasceu. Correu bem, foi rápido até. Mandei mensagem ao pai do meu filho. E ele "então, no fim-de-semana vou vê-lo". Até hoje...

A instituição parece projetar uma intervenção mais centrada na sua condição de mães, pelo que se produz muitas vezes nas jovens um vazio educativo, que dá a sensação de tempo de "espera" e não de viver, como deseja.

Em síntese: a realidade vivida por Dalila e Daniela interrogam seriamente a complexidade e natureza que envolve o trabalho social e educativo, legal e terapêutico nestes contextos. Como reconhecer as fronteiras e simultaneidades das raparigas como jovens e como mães?

Considerações finais

Neste texto debatemos as vidas de duas raparigas que, no mesmo tempo histórico, apesar de nascidas e criadas em pontos tão distantes como a Romenia e Norte de Portugal, se cruzaram na mesma comunidade de inserção. A presença conjunta, na mesma geografia espacial e temporal, está relacionada com a universalidade da gravidez adolescente como problema social local/global, do sujeito mulher com poucos recursos. Este, é devido a relacionamentos e sexualidades desprevenidas que ambas enfrentaram e que originaram gravidez e maternidade e, por isso, são alvo de proteção pública como "Outras" vulneráveis/transgressoras. Assim, mais do que conhecer a complexidade do sistema de proteção social e de acolhimento de menores, o primeiro desafio deste trabalho é produzir conhecimento sobre sujeitos protegidos, a partir e interpretando os seus "vividos" e subjetividades construídas, antes e durante o tempo de institucionalização. Como são vistas e contadas as experiências e as instituições educativas a partir de quem está por dentro? Como é que as jovens sentem e compreendem essas acções de intervenção e "ajuda"? Afinal, pouco é escutada a voz e o sentido dos principais sujeitos-mães alvo da intervenção social, educativa e terapêutica.

Em ambos os casos a gravidez "acontece" e é prosseguida, mesmo tendo sido abandonadas pelos namorados, o que ainda evidencia importantes atravessamentos estruturais de gênero nos dois contextos, na modernidade tardia. Também, estes percursos são precedidos de desconexão com a escola (e trabalho), sendo investida muita energia feminina para ter/manter namorado. Os relacionamentos sexuais acontecem regularmente em casa das famílias dos seus namorados, enquadrados no "compromisso sério" do namoro. Para as raparigas, esta medida parece conferir segurança e proteção para escapar ao escrutínio de "mulher fácil". Para os rapazes, uma oportunidade suportada, legitimada e fácil de realizar sexo. Neste contexto, as jovens mais facilmente "aceitam" ter sexo, confiando romanticamente, quando os namorados reclamam para si a capacidade de controlar e proteger as relações sexuais. Contudo, em ambas as geografias de feminilidade do séc. XXI globalizado se destacam, ainda que com diferentes acentuações, idênticas pressões, vergonhas e conflitos interiores nas relações íntimas a dificuldade de negociar sexo e prevenção. Isto revela como a variabilidade da reprodução social está expandida e construída nas dinâmicas de poder que os sujeitos experimentam e subjetivam, relacionando consentimento e censura masculina, ao mesmo tempo que feminilidades rebeldes/submissas dispõem de pouco poder.

A transgressão à regulação da sexualidade é denunciada pelo imprevisto da gravidez, cuja visibilidade revela a desadequação, acusada inclusive pelos pais das suas crianças. Esta associação simbólica deixa transparecer relações recriminatórias entre maternidade adolescente e desvio, por desafio da regra sexualidade na conjugalidade.

Uma segunda contribuição decorre do olhar sobre a experiência da gravidez e maternidade como motivo de institucionalização. Com efeito, a interpretação realça tanto o sentido protetor estatal, como a marca recriminatória de regulação/controle, sobre a categoria problemática feminina, a precisar de ser tratada/educada. Ora estas jovens, sem deixarem de reconhecer o valor e como a experiência institucional se tornou segura e importante nas suas vidas, também exprimem este conflito vivido contraditório da maternidade como "único" centro de preocupação e ação institucional. A interpretação das suas histórias e percursos, quando cruzados com a experiência institucional, coloca na agenda dimensões educativas importantes para desafiar estas organizações como lugar seguro e de bem-estar. Desde logo a satisfação das condições de vida básicas; proteção a possíveis "desvios"; criação de espaços para estar consigo próprias - cidadania íntima; acesso a redes e ambientes sensitivos; existência de alguns dispositivos de aprendizagem; benefício de ajuda e mediação.

Estas peças institucionais conjugam hoje dinâmicas e proximidades de percursos locais-globais. As culturas institucionais confrontam-se com multiculturalidade de experiências, sujeitos e noções sócioantropológicas, produzindo-se "comunidades interpretativas" e novas abordagens educativas e de cidadania. Todas estas questões têm certamente implicações profundas nos saberes e práticas sócioeducativas para enfrentar a universalidade da problemática da gravidez e maternidade jovem.

Texto recebido em 20 de março de 2010

Texto aprovado em 26 de julho de 2010

ERRATA

No artigo "Cidadania, educação e responsabilidade social: percursos biográficos de jovens grávidas em contextos de protecção social";, publicado no número 39, Educar em Revista, na página 257, onde se lê:

José Manuel Peixoto Caldas

Leia-se:

Laura Fonseca; José Manuel Peixoto Caldas

  • APF Mamãs de Palmo e Meio: Gravidez e Maternidade na Adolescência. Lisboa: APF, 2004.
  • ARNOT, M.; DAVID, M.; WEINER, G. Closing the Gender Gap. Oxford: Polity Press, 1999.
  • ARAÚJO, H. Em torno das subjectividades e de Verstehen em histórias de vida de professoras primárias nas primeiras décadas do século XX. In: ABRAHÃO, H. (Org.). A aventura (Auto) biográfica - teoria e empiria, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 311-327.
  • FONSECA, L. Justiça social e educação. Vozes, silêncios e ruídos na escolarização das raparigas ciganas e Paya. Porto: Afrontamento, 2009.
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  • 1
    Sob tutela da Segurança Social, ao abrigo da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP, 1999).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      20 Mar 2010
    • Aceito
      26 Jul 2010
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