Acessibilidade / Reportar erro

A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica

RESENHA

A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica

Marco de Oliveira

Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná; pesquisador e militante nos movimentos sociais de negros e negras e LGBT, no Paraná, Brasil. E-mail: marclive@ig.com.br

ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Museu Afro Brasil, 2010.

A primeira edição de A mão afro-brasileira data de 1988, como parte das comemorações "dos 100 anos da abolição" (Emanoel ARAUJO, 2010, p. 103, v. II)1 1 Como propõe Débora Cristina de Araujo (2010, p. 14, nota 3), "por defender uma educação não-sexista, [...] além de utilizar os gêneros feminino e masculino para me referir às pessoas em geral, adoto também outra postura originada dos Estudos Feministas: o destaque dos/as autores/as citados/as. Sendo assim, na primeira vez que há a citação de um/a autor/a, transcrevo seu nome completo para a identificação do sexo (gênero) e, consequentemente, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e estudiosas [...]". da escravização da população negra no Brasil. Nossa análise, porém, é da segunda edição, revista e ampliada, publicada em 2010, numa realização conjunta do Museu Afro Brasil, da Imprensa Oficial e do Governo do Estado de São Paulo, patrocinada pela EDP – Energias do Brasil, Lei de Incentivo à Cultura e pelo Ministério da Cultura.

Na edição de 2010, a apresentação é feita por Mário Soares, presidente de Portugal entre 1986 e 1996, e por Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil entre 1995 e 2002. Nessa edição, são duas as introduções – "Introdução e Proposição", que é o mesmo texto da primeira edição, e "Introdução à Segunda Edição" – ambas assinadas por Emanoel Araujo, responsável pela organização da obra.

A mão afro-brasileira é uma publicação bilíngue (português/inglês), amplamente ilustrada, impressa em cores, com 415 páginas, dividida em dois volumes. No Volume I são três capítulos: I – O Barroco e o Rococó; II – O Século XIX: a academia e os acadêmicos; III – A herança africana e as artes de origem popular. No Volume II são apenas dois capítulos: IV – O Século XX: arte moderna e contemporânea; V – Múltiplas contribuições.

No Volume I, Emanoel Araujo reuniu treze autores e três autoras, subdividindo o Capítulo I em seis partes, o Capítulo II em três partes e o Capítulo III em oito. No Volume II, são seis autores e duas autoras que escrevem as três partes do Capítulo IV e as dez partes do Capítulo V. Alguns autores, como José Roberto Teixeira Leite, Emanoel Araujo, Oswaldo Camargo e Haroldo Costa, têm dois textos publicados cada um.

Permanências

Como A mão afro-brasileira é uma obra com muitos/as autores/as, as fontes utilizadas também foram bastante diversificadas – livros, artigos, ensaios, depoimentos de viajantes estrangeiros etc. –, exigindo um imenso trabalho de pesquisa que "varreu arquivos, bibliotecas e publicações à procura de personagens escondidos pela poeira de histórias mal contadas ou pelo branqueamento comum a todo personagem que ascende socialmente no Brasil" (ARAUJO, 2010, p. 104, v. II).

Apesar de existir "uma vasta bibliografia sobre o negro" (ARAUJO, 2010, p. 15, v. I) no Brasil, Araujo chama a atenção para o fato de que muitas publicações tratam especificamente do regime escravista e que operam, em nossa opinião, para reafirmar a existência de uma hierarquia entre as raças onde a população negra seria inferior em relação às demais.

É justamente no período escravista que A mão afro-brasileira localiza, "rastreando pistas a partir de documentos históricos ou de depoimentos de viajantes estrangeiros que aqui estiveram no período da escravidão" (ARAUJO, 2010, p. 104), as primeiras contribuições da população negra para as artes plásticas brasileiras. Porém, em algumas situações, identificamos discursos que reforçam a ideia de que ser escravizado era uma característica inata da população negra e que havia por parte da maioria das pessoas pertencentes a esse grupo racial aceitação e conformismo com tal situação, sendo "ladinos, hábeis e dedicados, tendo amor pela casa, esses escravos urbanos estruturavam o viver dos senhores e sinhazinhas" (José Luiz MENEZES, 2010, 114, v. I) e que o conhecimento era um capital pertencente à população branca, que o repassava à população negra escravizada, a fim de educá-la para realizar as mais variadas tarefas: "aos escravos se transmitiram conhecimentos e deles se recebeu trabalho dedicado" (MENEZES, 2010, p. 114, v. I). Essa transmissão podia ocorrer de maneira informal, mas também ocorria em espaços próprios, como as oficinas de artes e ofícios criadas pelos padres jesuítas:

Foram, assim, os jesuítas os que, talvez em paralelo com os mestres de obras vindos para os engenhos, logo no início da colonização, se preocuparam com o ensino dos ofícios aos negros e consequentemente aos mulatos, aos pardos, naquelas oficinas e onde os padres, mestres em ofícios, transmitiam os primeiros conhecimentos aos escravizados (MENEZES, 2010, p. 114, v. I, grifo nosso).

Em outras situações, identificamos afirmações que questionam a qualidade do trabalho desenvolvido pela população negra e que "a maioria dos escravos negros e crioulos empregados em obras eram serventes. Poucos dentre eles eram oficiais e só alguns conseguiram alforria" (Jaelson Britan TRINDADE, 2010, p. 168, v. I) e que sua mão de obra só foi empregada pela "[...] carência da mão de obra branca" (MENEZES, 2010, p. 87, v. I) e que "obrigavam ao emprego do homem de cor, negro ou pardo" (MENEZES, 2010, p. 87, v. I).

A presença de artistas negros em atividade durante o período colonial também estaria, em certa medida, associada à falta de artistas brancos "por evidente tradição preconceituosa dos portugueses, muito recessivos no dedicar-se a atividades manuais" (Aracy AMARAL, 2010, p. 10, v. II). Quando o trabalhador branco é identificado, competindo diretamente com o trabalhador negro, sua superioridade é confirmada, já que entre os "os artífices mulatos, poucos eram os que atingiam aquela perícia atribuída a tantos oficiais brancos" (TRINDADE, 2010, p. 169).

Outra forma de hierarquização racial que identificamos foi a classificação de popular e primitiva atribuída à arte e às "culturas não europeias" (Arthur RAMOS, 2010, p. 213, v. I), que indica "a existência do preconceito europoide ou ocidentaloide que aferiu os valores culturais e artísticos pelos seus próprios padrões de cultura" (RAMOS, 2010, p. 213, v. I). Não é possível afirmar, mas podemos questionar que essa visão equivocada esteja associada ao fato de que os/as autores/as convocados/as por Araujo para escrever sobre a presença negra nas artes brasileiras durante os séculos XVIII e XIX sejam autores/as, antes desse projeto, que nunca tinham discutido relações raciais e acabaram reproduzindo o pensamento hegemônico na sociedade brasileira, utilizando, inclusive, os conceitos de pardo, mestiço e mulato em voga no final dos anos de 1980, quando a obra foi publicada pela primeira vez. O único autor que trabalha especificamente com o conceito de negro é Arthur Ramos, curiosamente em um texto que foi publicado pela primeira vez em 1949.2 2 Texto originalmente publicado em 1949, na revista Cultura, n. 2. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Saúde, jan.-abr., p.189-212.

Nessa segunda edição, revista e ampliada, não encontramos nenhuma nota discutindo tais conceitos ou explicando sua manutenção, já que são bastante questionados por pesquisadores/as e ativistas ligados/as aos movimentos sociais de negros e negras.3 3 O próprio Emanoel Araujo, contrariando o que reivindicam os movimentos sociais de negras e negros, ao explicar que a pesquisa documental empreendida durante a realização do projeto A mão afro-brasileira procurava "comprovar o que se dizia de passagem ou apenas se insinuava sobre artistas negros, pardos e mulatos, procurando saber quem eram eles de fato" (2010, p. 105).

Tais autores/as parecem confortáveis em suas posições, ao contrário de Luiz Marques, que, nas primeiras linhas de seu artigo, afirma que "situar o homem negro ou mulato no Oitocentos brasileiro não parece tarefa fácil [...] quando o artista negro não parece dele participar de maneira artística ou sociologicamente específica" (2010, p. 137, v. I).

Afirmação

A afirmativa feita por Marques alerta para o fato de que resquícios de um pensamento eugenista ainda estão em operação na sociedade brasileira e podem ser identificados em ações que procuram sustentar a existência de uma suposta hierarquia racial entre negros/as e brancos/as, como no silêncio quase absoluto em relação à arte e à cultura africana e afro-brasileira observado na historiografia brasileira.

O silêncio, nesse caso, é compreendido como uma estratégia ideológica que "opera para ocultar o processo social de desigualdade racial" (Paulo Vinicius Baptista da SILVA, 2012, p. 114), orientado por uma ideologia que procura "manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas" (THOMPSON, 2009, p. 79).

Ao quebrar esse silêncio, apesar de algumas permanências, A mão afro-brasileira adquire uma importância singular e pode ser considerada uma obra afirmativa, pois reconhece a participação da população negra de maneira positiva nas artes plásticas brasileiras e identifica artistas negros/as em atividade em todos os períodos da arte brasileira, ora reproduzindo, ora interferindo e alterando de maneira intencional a estética importada da Europa.

Respeitando a cronologia dos períodos da história da arte brasileira, o livro procura descrever o trajeto de artistas afro-brasileiros desde o período Barroco, no século XVIII, passando pelo período Acadêmico, pela Arte Moderna e Contemporânea até chegar ao século XXI, identificando artistas negros/as em todas as regiões do país, integrados/as às novas linguagens, sem que isso represente um rompimento com a ancestralidade e as tradições africanas, como a religiosidade, por exemplo.

O livro reconhece também que em alguns momentos a arte europeia que chegava ao Brasil já vinha impregnada de marcas de africanidades, como a pintura de Matisse e Picasso e a escultura produzida por Modigliani, Lipschitz e Archipenko, possibilitando ao artista liberdade plástica, visão do essencial e o impulso de expressão simbólica (RAMOS, 2010, p. 250, v. I).

O contato e a apropriação da estética africana com e pela arte moderna europeia revelava que as ideias do "negro bárbaro" foram uma criação "do europeu otimista e cego que julgava a vida e a arte através dos seus próprios valores, subestimando o vasto mundo [...] que saía do seu ângulo de visão" (RAMOS, 2010, p. 250).

O livro é o mais ousado da historiografia brasileira relacionada à participação negra nas artes plásticas, uma vez que até a sua publicação "não existia nenhum trabalho mais sistemático de alguma profundidade sobre o tema" (ARAUJO, 2010, p. 103, v. II) e procura elencar o maior número de artistas, trazendo informações, algumas precisas, outras nem tanto, a respeito de suas biografias e leituras analíticas de boa parte das obras apresentadas, a fim de cumprir "a proposta de recuperar, pelo menos parcialmente, a participação do negro e do mestiço na formação das artes e da cultura nacional" (ARAUJO, 2010, p. 103, v. II).

Considerações

Com mais informações visuais que escritas, A mão afro-brasileira também inova ao revelar um grande cuidado com a escolha das imagens, evitando aquelas que possam reforçar estereótipos ou delimitar espaços para a população negra na geografia social do país.

Tanto os textos quanto as imagens, de maneira geral, cumprem o objetivo proposto e mostram a população negra de maneira positiva, transitando por todos os períodos da história da arte brasileira, seja como tema, seja como produtora de arte. Como resultado, tem-se um livro onde fica evidente a "afirmação de um povo, cuja vingança é uma obra que está aí para julgamento de todos" (ARAUJO, 2010, p. 113, v. II).

Texto recebido em 15 de junho de 2012.

Texto aprovado em 10 de agosto de 2012.

  • ARAUJO, Débora Cristina de. Relações raciais, discurso e literatura infanto-juvenil. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010.
  • SILVA, Paulo Vinicius Baptista da. O silêncio como estratégia ideológica no discurso racista brasileiro. Currículo sem Fronteiras, v. 12, p. 110-129, 2012.
  • THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna Petrópolis: Vozes, 2009.
  • 1
    Como propõe Débora Cristina de Araujo (2010, p. 14, nota 3), "por defender uma educação não-sexista, [...] além de utilizar os gêneros feminino e masculino para me referir às pessoas em geral, adoto também outra postura originada dos Estudos Feministas: o destaque dos/as autores/as citados/as. Sendo assim, na primeira vez que há a citação de um/a autor/a, transcrevo seu nome completo para a identificação do sexo (gênero) e, consequentemente, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e estudiosas [...]".
  • 2
    Texto originalmente publicado em 1949, na revista
    Cultura, n. 2. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Saúde, jan.-abr., p.189-212.
  • 3
    O próprio Emanoel Araujo, contrariando o que reivindicam os movimentos sociais de negras e negros, ao explicar que a pesquisa documental empreendida durante a realização do projeto
    A mão afro-brasileira procurava "comprovar o que se dizia de passagem ou apenas se insinuava sobre artistas negros, pardos e mulatos, procurando saber quem eram eles de fato" (2010, p. 105).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013
    Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
    E-mail: educar@ufpr.br