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Educar na Infância: perspectivas histórico-sociais

RESENHAS

Educar na infância: perspectivas histórico-sociais

Solange Estanislau Santos

Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Diferenciação Sociocultural (GEPEDISC/Culturas Infantis), Brasil. E-mail: solestani13@yahoo.com.br

Apesar da considerável produção bibliográfica sobre a educação da criança no Brasil ainda somos carentes de estudos com fundamentos mais históricos, filosóficos e sociais que olhem a criança como ser social, histórico e cultural produtor de culturas infantis, e desfaça o olhar majoritariamente psicologizante com que a educação costuma estudar esse sujeito. Por isso, é bem-vindo esse lançamento da Editora Contexto Educar na Infância: perspectivas histórico-sociais, organizado por Gizele de Souza, professora da UFPR - Universidade Federal do Paraná e coordenadora do Nepie - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil, cujos autores/as são doutores/as provenientes de várias instituições nacionalmente reconhecidas.

Desenvolvido em duas partes: História, infância e educação & Políticas e práticas para a infância, este livro traz um apanhado dos debates e estudos históricos que já foram feitos sobre a educação infantil, configurando-se como importante ponto de partida para o pesquisador iniciante na área.

Já no prefácio de Marcos Cezar de Freitas, intitulado Educar na infância: a perspectiva do compromisso, nos deparamos com uma síntese das principais categorias que serviram de base para estudar a criança e sua infância e do compromisso político e social que os estudiosos da infância vêm assumindo nesses estudos. Freitas (p. 12-3, grifos do autor) esclarece que

[...] a

perspectiva do compromisso

mencionada no título deste prefácio está presente não só nos capítulos que, juntos, tornam este livro uma obra que já nasce como referência. O compromisso com os direitos e com o bem-estar da criança é um traço distintivo na trajetória de todos os intelectuais que aceitaram o convite para compor esta coletânea. Por isso, este é um livro singular.

Na primeira parte são apresentadas as discussões de Cynthia Greive Veiga sobre as crianças na história da educação, na qual traça o percurso histórico do momento em que a sociedade adulta percebe a criança como outro distinto. Para isso, considera fundamental "ir além da lógica natural/evolucionista" para "compreender o tempo geracional numa perspectiva relacional", ou seja, está relacionado com a experiência humana que "demandou um longo processo de aprendizagem". Está claro para a autora que a "constituição da infância civilizada se fez em meio às alterações das funções sociais dos adultos, à racionalização das atitudes e à produção de expectativas sobre o lugar do futuro adulto" (p. 26). Logo após apresenta as "práticas civilizadas de educação" e "a escola para todos como espaço de socialização da infância" e finaliza com o seguinte desabafo: "Gostaria de destacar aqui as dificuldades de se escrever uma história da educação sem dar visibilidade aos seus sujeitos, no caso em específico, as crianças" (p. 36).

Em seguida Maria Luiza Marcílio discorre sobre a criança transformada em aluno, com o título De criança a escolar inicia apresentando um panorama sobre a "implantação e difusão do modelo escolar" no Brasil, mas fazendo um paralelo com outros países do ocidente. Mostra claramente como se expandiu a educação popular ou escola de massas nos países europeus e como essa ideia demorou a ser pensada no nosso país, levantando os possíveis fatores estruturais que ocasionaram esse "atraso". Para a autora o paradigma da sociedade disciplinar é o grande ápice do "tempo de confinamento da infância nos locais escolares que lhes foram destinados" (p. 42). Para exemplificar tal afirmação, apresenta de forma sucinta, mas bastante descritiva, "a escolinha de ler e escrever do Império": a arquitetura da escola, os materiais e os móveis que existiam nas salas de aula, isso quando os tinha, pois as condições eram muito precárias, tanto do mobiliário, dos materiais didáticos quanto dos professores, em termos de formação e remuneração. Aponta também para o fato de o calendário escolar ser muito instável, haja vista que "as condições precárias das escolas e o despreparo do professor não atraíam a criança para a aprendizagem" (p. 52). É possível entender, pela descrição realizada pela autora, como ocorreu a "revolução da educação no Brasil: implantação do modelo escolar" e de como os paulistas inovaram propondo a escola normal e os grupos escolares.

Como prova da perspectiva inovadora, apresenta-se Raça e infância no século XIX de Maria Cristina Gouvêa, em que a autora, ao tomar "raça" como categoria para analisar a produção de saberes sobre diferença, deixa claro que seu objetivo é "discutir como a escola e seu sujeito criança/aluno constitui-se como objeto de estudos e intervenção por pesquisadores/as sociais voltados para a apreensão da diferença ao longo daquele período histórico [séc. XIX]" (p. 67). E o caminho escolhido para alcançar tal objetivo é, no mínimo, inusitado, partindo do conceito de "evolução" de Foucault, entra na biologia para rever os processos genéticos de desenvolvimento humano, a fim de "compreender as origens das diferentes formas vivas, analisando sua evolução" e a formação do "homem padrão", na intenção de saber quais foram as repercussões no campo da educação da junção da biologia com a estatística e o conceito de evolução trazidos para a escola em práticas antropométricas.

Moysés Kuhlmann Jr. apresenta Relações sociais, intelectuais e educação da infância na história que antes de discutir Os intelectuais como categoria social e histórica e Os intelectuais e a circulação de ideias sobre a educação da infância chama atenção para o fato de que os estudos da área da educação estão caindo num "educentrismo", que significa compreender as questões educacionais "como se fossem produzidas internamente à educação, mesmo que, posteriormente, venham a ser relacionadas de uma forma subordinada, aos demais aspectos sociais" (p. 81).

Para discutir a Assistência pública à infância Gizlene Neder apresenta a história da ideia de autoridade, principalmente em asilos e escolas no Brasil dos séculos XIX e XX. A autora opta por mostrar o estudo de caso realizado no Asilo de Meninos Cegos e no Instituto de Meninos Cegos, onde analisou os ofícios de diretores e as falas das autoridades.

A organizadora Gizele de Souza nos traz Os jardins de infância públicos no início do século XX, mais especificamente a história dos jardins de infância públicos no Paraná, concluindo que o estado estava em consonância com os discursos da época, em que a educação, como instrução, era vista como reparadora dos problemas sociais e como instrumento para a formação moral e cívica. Destaca, ainda, que "se inicia a preocupação com os tempos do aprender das crianças, com os métodos e materiais destinados a elas, a instauração de um lugar de educação da infância" (p. 135).

Para finalizar a primeira parte, Lívia Fraga Vieira, ao discorrer sobre as Políticasde educação infantil no Brasil no século XX, opta por examinar a legislação estadual de Minas Gerais no século XX. Dividindo-a em três grandes períodos1 1 1908 a 1971; 1973 a 1988; 1988 a 2000. , enfatiza as leis e decretos diretores a fim de entender, dentre outras questões, como a educação de crianças era concebida pela legislação. Como uma de suas conclusões está a de que a "desvalorização da educação infantil é um fenômeno quase universal".

Na segunda parte está o debate de Eloísa Candal Rocha sobre os 30 anos da educação infantil na ANPED, no qual, a pesquisadora da UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina, retoma as análises feitas por ela e por outros pesquisadores2 2 Acrescenta-se o trabalho apresentado nesse GT no ano de 2005, intitulado: Culturas infantis e saberes: caminhos recompostos. dos trabalhos apresentados no GT07 - da educação da criança de 0 a 6 anos - nas reuniões anuais da ANPED - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação nos últimos 30 anos. Verifica-se que ocorreram várias mudanças nas temáticas e nos aportes teóricos dessas pesquisas, o que veio a contribuir para a formação de um campo de investigação que vai além da educação escolar e situa a criança como ator social e histórico, o que vem exigir estudos cada vez mais interdisciplinares. Ao finalizar seu texto, a autora, brilhantemente, pronuncia a inquietação que acompanha todo pesquisador:

Para encerrar este capítulo, mas não as inúmeras possibilidades de análise dessa trajetória, constituída por nós e pela qual também somos constituídas, inspiro-me no poeta Drummond e nas companhias/companheiras de luta e de pesquisa, que nele também têm se inspirado para falar da Verdade: se só

cabe meia verdade de cada vez, e carece optar

, optei também, em certa medida, conforme meu

capricho

, minha

ilusão

e minha

miopia

, mas é isso que mantém aceso um interesse científico, orientado pelo compromisso político de luta contra a exclusão, num permanente estado de indignação! (ROCHA, 2010, p. 167, grifos da autora).

Como não poderia ausentar-se em uma obra que discute essa temática, a pesquisadora da Fundação Carlos Chagas e professora da PUC/SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Fúlvia Rosemberg, dedica-se a problematizar a Educação infantil pós-FUNDEB: avanços e tensões, refletindo sobre "o novo que se descortina". O objetivo é responder a três questões: Qual a causa da educação infantil no Brasil contemporâneo? Qual a dívida da sociedade brasileira para com as crianças pequenas? E quais as tentações que se abrem com o Fundeb - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação? Traçando brevemente um panorama histórico das lutas pela Educação Infantil, a autora responde a primeira pergunta com a afirmação de que devemos continuar nos mobilizando socialmente pela causa e para que a aplicação da lei do Fundeb garanta o bem-estar das crianças e elimine a dívida que a sociedade brasileira tem com elas; Como resposta à segunda pergunta, apresenta dados estatísticos que comprovam a precariedade da oferta de vagas e a qualidade desse serviço; E, para finalizar, responde à terceira pergunta alertando que devemos fugir às tentações que rondam a área e "devemos resistir à política do espetáculo, que pode ganhar visibilidade midiática, e até votos, mas não salda nossa dívida histórica para com a criança pequena" (p. 182).

Marynelma Camargo Garanhani, doutora em psicologia da educação e professora da UFPR, discute A docência na educação infantil ao trazer as características e as dimensões desse profissional, assim como sua relação com os saberes e as especificidades de sua prática. Com isso, verificou as singularidades dessa profissão e a complexidade que envolve a prática pedagógica nessa etapa.

Para fechar, Fabiany Tavares Silva, professora e pesquisadora da UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, escreve sobre as Necessidades Educacionais Especiais, e tomando a discussão sobre currículo pautada nos conceitos de controle e emancipação aborda a criança deficiente e problematiza os rumos da educação inclusiva.

Terminamos nossa leitura com a certeza de que

[...] ao escrever e ao pensar, nos separamos de nós mesmos, de nossas origens, de nossas lembranças, morremos um pouco; nesse mesmo instante, aparecemos, damos a ver, colocamos fugidia luz sobre algo que nos preocupa, sobre algo que dói em nossa época, sobre algo que é belo nestes tempos e paragens e talvez não esteja sendo suficientemente dito (FISCHER, 2005, p. 131).

Trata-se, sem dúvida, de uma obra importante para pesquisadores interessados nas discussões que envolvem a consolidação da educação infantil no Brasil. É possível vislumbrar perspectivas cada vez mais instigantes que enxergam a criança, sua infância e sua educação para além do cognitivo, das competências e do comportamento.

REFERÊNCIA

FISCHER, R. M. B. Escrita acadêmica: arte de assinar o que se lê. In: COSTA, M. V.; BUJES, M. I. E. (Orgs.). Caminhos investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. p. 117-140.

  • 1
    1908 a 1971; 1973 a 1988; 1988 a 2000.
  • 2
    Acrescenta-se o trabalho apresentado nesse GT no ano de 2005, intitulado:
    Culturas infantis e saberes: caminhos recompostos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
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