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Apresentação

DOSSIÊ

EDUCAÇÃO E DITADURAS NA IBERO-AMÉRICA

Apresentação

Considerando que em março de 2014 cumprimos 50 anos do golpe de estado que instaurou no Brasil a Ditadura Civil-Militar que perdurou até 1985, a proposta deste dossiê é discutir formas variadas de educação presentes em diferentes países - Brasil, Argentina, Chile, Espanha e Portugal - que sofreram os arbítrios de regimes de exceção, marcados pela violência, pelo terror, pela exclusão, em uma mesma temporalidade.

Partindo dos fenômenos educativos como possibilidade de desenvolvimento de sensibilidades adaptadas às formas autoritárias, mas também buscando pelas práticas de resistência, o propósito foi mobilizar diferentes pesquisadores para inquirir as relações entre educação e ditaduras, na perspectiva de que o conhecimento do passado possa nos acautelar em relação aos refluxos autoritários do presente, para as quais concorreram e concorrem em larga medida diferentes práticas culturais e, especialmente, muitas práticas educativas.

Os textos aqui reunidos, produzidos por experimentados pesquisadores, percorrem, assim, distintos suportes documentais e historiográficos, focalizando a contingência histórica de cada uma das experiências autoritárias, ainda que estas estejam enfeixadas pela particularidade da supressão da vida pública no seu sentido mais pleno. Nosso intento é, a partir de tentativas diversas de reelaborar o passado, permitir que as sociedades que sofreram/acolheram aquelas experiências possam refletir sobre seus horrores, para que aquilo que é público possa, efetivamente, ser reivindicado como direito de todos, e não de indivíduos ou grupos que, no seu apreço às vezes sanguinolento pelo poder, alijaram o debate, a crítica, a diferença, a pluralidade do âmbito da vida cotidiana. Ao contrário, investiram no medo, no terror, na censura, na tortura, na morte como estratégias para calar o dissenso, a polêmica, a criatividade, motores do nosso cuidado com o mundo.

Na sequência dos trabalhos aqui apresentados podemos observar desde o autoritarismo buscando pontificar sobre a vida da sociedade, até ecos de formas de resistência - por vezes atenuadas - que insistiam em exercitar sua voz diante do fechamento sofrido pelos mais diversos tipos de instituição.

Assim, abre o dossiê o trabalho do professor Antonio Viñao Frago, catedrático da Universidad de Murcia, na Espanha, que traça um significativo panorama dos efeitos da ditadura de Francisco Franco sobre a vida, em particular a educação, na Espanha após a Guerra Civil. Problematiza especialmente as mudanças educativas observadas no país Ibérico, e os seus efeitos sobre a alfabetização, a escolarização e a feminização educativa lá observadas.

Maria do Carmo Martins, professora da Universidade Estadual de Campinas, retoma o tema que notabilizou sua tese doutoral, para discutir o quanto a reforma educacional realizada durante a ditadura militar brasileira afetou, tanto a continuidade, quanto a criação de disciplinas escolares tais como: Estudos Sociais, Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política do Brasil (OSPB). Seu argumento é que aquelas conferiram nova "configuração ao ensino das humanidades no contexto de uma pedagogia autoritária de ênfase na tríade 'formar', 'cultivar', 'disciplinar'". Seu texto ajuda a indagar formas prescritivas que pretendiam produzir novas sensibilidades, aquilo que a autora chama de "a afinação de consciências ao poder instituído".

Alberto Moreno-Doña e Rodrigo Gamboa Jiménez, docentes da Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, Chile, por sua vez analisam as políticas educativas chilenas desde o início da ditadura de Augusto Pinochet. Mostram como muitas daquelas políticas podem ser situadas no âmbito das reformas neoliberais levadas a cabo em inúmeros países desde os anos 1980, as quais reforçaram um sistema de profunda exclusão e discriminação. Problematizam, ainda, o fato de, mesmo após o final do regime ditatorial, as políticas educativas terem permanecido nos mesmos marcos doutrinários, caracterizando um verdadeiro legado do autoritarismo.

Em seguida, na perspectiva comparativa, Eurize Caldas Pessanha e Fabiany de Cássia Tavares Silva, professoras da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, localizam um conjunto de dispositivos legais produzidos em diferentes momentos da sociedade brasileira, desde o governo provisório de Getúlio Vargas, passando pela ditadura do Estado Novo, até o período da última ditadura militar. Percorrendo o que denominam história da escola pública, as autoras colocam o seu foco na organização do espaço, do tempo e do trabalho e nas mudanças dessas dimensões sofridas no período.

A professora Suzete de Paula Bornatto, da Universidade Federal do Paraná, produz uma interpretação para a história dos livros didáticos para o ensino de Português, focando a produção brasileira a partir da década de 1960. Argumenta que os livros destinados para as escolas não sofreram os mesmos rigores da censura, ainda que tacitamente alguns autores pudessem ter seus nomes retirados dos processos de seleção, como Graciliano Ramos. Ainda assim, mostra como muitos autores que faziam críticas ao regime constavam entre aqueles tratados nas escolas. Complementa o seu argumento analisando o caso de Stanislaw Ponte Preta, autor indicado para o ensino escolar a partir dos seus textos de característica humorística, sendo completamente esquecidos aqueles nos quais produzia críticas ao regime.

Para o caso Argentino, Pablo Pineau, da Universidad de Buenos Aires, defende o argumento de que a ditadura daquele país se fundamentou em duas estratégias para configurar sua política educativa. A primeira delas, caracterizada como estratégia repressiva, que buscava o desparecimento de quaisquer iniciativas renovadoras no âmbito educativo. A segunda, caracterizada como estratégia disciplinadora, que propunha um sistema educativo profundamente fragmentado que fazia tabula rasa das clivagens sociais, políticas e econômicas.

Katya Braghini, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mobilizando ampla documentação, aborda um tema pouco explorado pela historiografia, qual seja a produção do aluno excedente no ensino superior brasileiro ao longo dos anos 1960, fruto das políticas de expansão da escola secundária. Aquele fenômeno era constantemente retratado como um estímulo à participação dos jovens nas manifestações que cortavam o Brasil no período, uma vez que o entrave entre a passagem do secundário para o ensino superior produzia um excedente para o qual a ditadura produziria uma série de dispositivos compensatórios.

O trabalho dos professores António Gomes Ferreira e Luís Mota, pesquisadores na Universidade de Coimbra, tratam da redefinição do ensino liceal em Portugal, no período compreendido entre as décadas de 1930 e 1950, que cobriu parte do Estado Novo português sob a batuta de António de Oliveira Salazar. O texto se centra na reflexão sobre os objetivos definidos para o ensino liceal e na sua organização curricular. No interior da redefinição do seu papel, os autores perscrutam a controvérsia em torno do regime de classe e do regime de disciplinas, relacionando o seu desenvolvimento com objetivos do ensino liceal, a sua organização curricular e a democratização da sociedade portuguesa.

No artigo seguinte, Marcus Taborda de Oliveira, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, percorre uma série de documentos imagéticos do período final da ditadura e dos anos iniciais da volta à democracia, para mostrar como a sociedade civil procurou recuperar o seu protagonismo na história política e cultural do país. Argumenta que muitas das iniciativas daqueles anos de 1980 ainda hoje fazem parte da pauta política dos movimentos sociais brasileiros. Por um lado, aquelas iniciativas parecem ter fragmentado as possibilidades de lutas da população brasileira, uma vez que elas se tornaram parcelares. Por outro, é inegável que alguns dos seus resultados são evidentes, hoje, sobretudo no que se refere ao atendimento às reivindicações de determinadas minorias. De todo modo, o texto evidencia que muito do que foi silenciado em duas décadas de regime autoritário pode explodir como uma lufada de renovação das forças representativas dos interesses do conjunto da população brasileira.

O dossiê foi completado com duas outras contribuições. Eduardo Galak, professor da Universidad Nacional de Avellaneda, na Argentina, resenha a obra El principio del fin. Políticas y memorias de la educación en la última dictadura militar (1976-1983) de Pablo Pineau, Marcelo Mariño, Nicolás Arata e Belén Mercado.

Por fim, também é de Katya Braghini o texto sobre a Revista Realidade, riquíssima fonte de pesquisa para aqueles que se interessam pela História da Educação. O destaque recai sobre a edição especial de 1967, que tinha como título "A Juventude Brasileira, hoje".

Agradecemos ao Conselho Editorial da Educar em Revista pela acolhida da proposta de dossiê que deu origem a esta publicação.

A Capes, o CNPq e a Fapemig têm contribuído com recursos na forma de fomento e bolsas, que viabilizam os trabalhos de pesquisa e divulgação do NUPES - Núcleo de Pesquisas sobre a Educação dos Sentidos e das Sensibilidades, da UFMG, o qual engloba pesquisadores de diferentes instituições brasileiras e do exterior.

Não podemos deixar de agradecer aos autores pela confiança depositada no nosso trabalho, e pelo atendimento aos fluxos de produção por nós estabelecidos, em uma tentativa de fazer recuperar ecos de tempos autoritários que insistem em ressoar nos tempos atuais.

Este trabalho coletivo é uma homenagem a todas as pessoas que resistiram, criticaram, inventaram, criaram, sucumbiram, em um tempo em que a privatização autoritária da dimensão pública transformou a vida da maioria em um joguete na mão de escroques.

Suzete de Paula Bornatto (UFPR)

Marcus Aurelio Taborda de Oliveira (UFMG)

Organizadores

31 de março de 1964/31 de março de 2014

50 anos do golpe militar que lançou o Brasil

em um obscuro mundo de medo e luta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Abr 2014
  • Data do Fascículo
    Mar 2014
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