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"Prendam suas bezerras que o meu garrote está solto!" Interseccionando gênero, sexualidade e lugar nos modos de subjetivação regionais

"Kraal your sheep 'cause my ram is loose!" Intersecting gender, sexuality and place in regional subjectification

Resumos

Este artigo analisa aspectos da produção discursiva da heteronormatividade a partir da intersecção regional. Assumimos, com base em perspectivas pós-críticas, a problematização discursivo-desconstrucionista sobre as experimentações (prescritivas ou contestatórias) da sexualidade e as formas de regulação, normalização ou contestação do gênero. Ocupamo-nos em compreender como o corpo se dispõe como materialidade discursiva das práticas e dos modos de regulação heteronormativos, considerando também esse processo desde os assombros da heterossexualidade compulsória. O trabalho está organizado a partir de recortes de uma pesquisa sobre as práticas pedagógicas na Educação Física escolar, cujo campo e interlocuções se produziram no Vale do Jiquiriçá/BA, região do interior baiano. Os achados deste estudo indicam a imbricada relação entre corpo, gênero e sexualidade na experiência de modos de vida regionais, de maneira que sustentamos a relevância de particularizarmos a vida do lugar como elemento fundamental nas problematizações desses três temas.

heteronormatividade; interseccionalidade; regionalidade; corpo; educação


This paper analyses aspects of the discursive production of heteronormativity at a regional intersection. Inspired by post-critical perspectives, we assume discursive-deconstructionist problematizations about prescriptive or contesting sexual experimentations and forms of regulation, of normalization or of gender contestation. We try to understand how the body constitutes itself as a discursive materiality of practices and of heteronormative regulation manners, also considering this process on compulsory heterosexuality haunts. This work is part of a research project concerning pedagogical practices in Physical Education at school and its field investigation and interlocutions were produced at Vale do Jiquiriçá/BA, in the countryside of Bahia State, Brazil. The discoveries of this study show an imbricate relation between body, gender and sexuality in regional ways of life experience, and so we sustain the relevance of particularizing the life style of the place as a fundamental element in the problematization about those three issues.

heteronormativity; intersectionality; regionality; body; education


"Prendam suas bezerras que o meu garrote está solto!" Interseccionando gênero, sexualidade e lugar nos modos de subjetivação regionais

"Kraal your sheep 'cause my ram is loose!" Intersecting gender, sexuality and place in regional subjectification

Priscila Gomes DornellesI; Fernando Altair PocahyII

IUniversidade Federal do Recôncavo da Bahia. Centro de Formação de Professores. Cruz das Almas, Bahia, Brasil. Rua Rui Barbosa, nº 710 – Centro. CEP: 44380-000

IIUniversidade de Fortaleza. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Fortaleza, Ceará, Brasil. Avenida Washington Soares, nº 1321 – Edson Queiroz. CEP: 60811-905

RESUMO

Este artigo analisa aspectos da produção discursiva da heteronormatividade a partir da intersecção regional. Assumimos, com base em perspectivas pós-críticas, a problematização discursivo-desconstrucionista sobre as experimentações (prescritivas ou contestatórias) da sexualidade e as formas de regulação, normalização ou contestação do gênero. Ocupamo-nos em compreender como o corpo se dispõe como materialidade discursiva das práticas e dos modos de regulação heteronormativos, considerando também esse processo desde os assombros da heterossexualidade compulsória. O trabalho está organizado a partir de recortes de uma pesquisa sobre as práticas pedagógicas na Educação Física escolar, cujo campo e interlocuções se produziram no Vale do Jiquiriçá/BA, região do interior baiano. Os achados deste estudo indicam a imbricada relação entre corpo, gênero e sexualidade na experiência de modos de vida regionais, de maneira que sustentamos a relevância de particularizarmos a vida do lugar como elemento fundamental nas problematizações desses três temas.

Palavras-chave: heteronormatividade; interseccionalidade; regionalidade; corpo; educação

ABSTRACT

This paper analyses aspects of the discursive production of heteronormativity at a regional intersection. Inspired by post-critical perspectives, we assume discursive-deconstructionist problematizations about prescriptive or contesting sexual experimentations and forms of regulation, of normalization or of gender contestation. We try to understand how the body constitutes itself as a discursive materiality of practices and of heteronormative regulation manners, also considering this process on compulsory heterosexuality haunts. This work is part of a research project concerning pedagogical practices in Physical Education at school and its field investigation and interlocutions were produced at Vale do Jiquiriçá/BA, in the countryside of Bahia State, Brazil. The discoveries of this study show an imbricate relation between body, gender and sexuality in regional ways of life experience, and so we sustain the relevance of particularizing the life style of the place as a fundamental element in the problematization about those three issues.

Keywords: heteronormativity; intersectionality; regionality; body; education

Pesquisar o lugar – interseccionando regionalidade e outros marcadores na produção da heteronormatividade

Este trabalho busca acompanhar discursos e práticas discursivas que determinam posições para os sujeitos na cena das experimentações da sexualidade. Interessa-nos compreender as formas como os discursos de gênero cercam essas mesmas experiências, em uma espiral enunciativa sobre masculinidades e feminilidades, diante dos efeitos das políticas de subjetivação quando articuladas aos discursos da heterossexualidade compulsória (RICH, 2001). De modo pontual, investiremos em uma análise do plano heteronormativo – constituidor do cenário escolar e de estratégias pedagógicas da Educação Física escolar no interior baiano – promovendo algumas aproximações iniciais e entrecruzadas entre gênero, sexualidade e regionalidade.

Para isso, é preciso demarcar que o funcionamento de um modelo regulador das relações sociais, tal qual a heteronormatividade, coloca em movimento um regime de saber-poder pautado no sexo – "[...] essa norma que qualifica para toda a vida dentro da esfera da inteligibilidade cultural" (BUTLER, 2010, p. 19, tradução nossa). Sua assunção como critério básico da política de conhecimento sobre os corpos pela Educação Física escolar indica a produção unívoca do desejo heterossexual natural. Contudo, a análise dos materiais fabricados na feitura do campo também aponta que a produção da heterossexualidade não se dá de forma harmônica e/ou sem disputas bem como sinaliza que a heteronormatividade investe na normalização do seu modelo identificatório legitimado – a heterossexualidade. Segundo Guacira Lopes Louro,

[...] o processo de heteronormatividade sustenta e justifica instituições e sistemas educacionais, jurídicos, de saúde e tantos outros. É à imagem e semelhança dos sujeitos heterossexuais que se constroem e se mantêm esses sistemas e instituições – daí que são esses os sujeitos efetivamente qualificados para usufruir de seus serviços e para receber os benefícios do Estado (LOURO, 2007, p. 144).

Atentos a isso, ponderamos o uso da interseccionalidade entre marcadores sociais e culturais neste percurso investigativo. Essa ferramenta-conceito, e posição tática feminista (PISCITELLI, 2008; BILGE, 2009), ofereceu-se aqui como produtiva para compreendermos como determinados aspectos de um lugar e/ou uma região tomam força política na produção das posições que sujeitos assumem (ou por onde são interpelados) em termos de classe, gênero, sexualidade e raça. Assim, desde o recorte de um campo relacionado a práticas educativas, propomos operações analíticas em movimentos de interseccionalidade1 1 Decorrente de sua ampla utilização e de reflexões em diversos outros campos nas Ciências Sociais e Humanas, a interseccionalidade vem se definindo enquanto um paradigma epistemológico. Estudiosas no campo dos feminismos, dos estudos de gênero e da sexualidade discutem seu estatuto político-epistemológico assumindo que se trata de uma teorização derivada de tensões próprias e pertencentes ao campo dos feminismos (DORLIN, 2005; PISCITELLI, 2008; BILGE, 2009; VIGOYA, 2009). Muitas dentre estas pesquisadoras situam a interseccionalidade como uma das quatro principais perspectivas da terceira onda do feminismo, juntamente com as abordagens pós-estruturalistas e pós-modernas, a teoria feminista pós-colonial e as demandas das novas gerações feministas (BILGE, 2009). A articulação prática-conceitual da interseccionalidade surge precisamente do plano das articulações do Black feminism, movimento social que contestou a representação majoritária do feminismo branco e de classe média nos Estados Unidos. Com a proposta de intersectar diferenças – sua posição de subalternidade e sua decorrente desigualdade –, a interseccionalidade evidenciou-se em estudo relativo à violência sofrida por mulheres negras de classes desfavorecidas norte-americanas. O trabalho de investigação da jurista feminista afro-americana Kimberlé Crenshauw é destacado como a primeira aplicação do termo. Sabe-se também que uma formalização do conceito foi produzida também por outras estudiosas do pensamento feminista negro, como Patricia Hill Collins, informando a interseccionalidade como paradigma, e Ange-Marie Hanchok, propondo a sua formalização (DORLIN, 2005; BERENI et al., 2008; BILGE, 2009). A partir das tensões epistemológicas acionadas nas perspectivas teóricas pós-críticas, através do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, articuladas aos campos dos estudos pós-coloniais, étnicos, de gênero, lésbicos, gays, trans e queer, a aplicabilidade e a produtividade do conceito de interseccionalidade se ampliaram. Hoje, muitos são os trabalhos de pesquisa que acionam categorias de articulação sobre corpo, gênero, sexualidade, raça/etnia e deficiência. Sobre isso, ver Pocahy (2013). com gênero e sexualidade como condições políticas e epistemológicas para consubstanciar relações sociais/institucionais e culturais, tanto em suas formas de dominação quanto nas possibilidades de experimentação e de produção de novos modos de vida em seus arranjos éticos, estéticos e políticos, a partir da noção de lugar e de regionalidade (POCAHY, 2013).

Apostamos que a articulação entre formações discursivas difusas e, ao mesmo tempo, relacionais – as quais se materializam no que entendemos como marcadores sociais de identidade – permite-nos mais do que compreender a diversidade de posições que os sujeitos ocupam na produção de modos de vida. Essa articulação, entre outros dispositivos e materialidades discursivas, oferece aos sujeitos e às instituições sociais uma chave de acesso nos jogos da gestão da vida (FOUCAULT, 1997), a partir de prescrições científico-morais, religiosas ou outras expressões da/na cultura que trabalham para a/na produção de normas sociais.

Efetivamente, tratamos de uma posição investigativa que "se encanta" com a visibilidade das artimanhas nos termos de subjetivação e de objetivação na manutenção e na (re)invenção dos jogos de verdade que estabelecem o que é possível ou não em termos de corpo, mas também aquilo que define ou não uma condição social.

De forma mais ampla, nosso interesse de investigação se localiza, portanto, em compreender quais são as concepções de humano e quais são os dispositivos que entram em jogo na produção dos modos como os sujeitos estabelecem relações consigo mesmos e com os outros – diante dos regimes de verdade de seu tempo, lugar e espaço. Para compreender e discutir esse "jogo", especificamente, analisaremos como as práticas institucionais escolares e de uma disciplina escolar – a Educação Física – funcionam materializando corpos (im)possíveis no interior baiano, isto é, verificaremos como os discursos sobre regionalidade são acionados por sujeitos de um determinado contexto educativo para descrever e justificar situações escolares posicionadas como situações pedagógicas com o tema sexualidade na escola. Para isso, contamos com a interlocução de professores e de professoras sobre o investimento pedagógico no trato com a sexualidade na disciplina de Educação Física em escolas localizadas no Vale do Jiquiriçá/BA.

Neste recorte da pesquisa, destacamos um jogo citacional e interpelativo bastante presente no cotidiano do lugar, funcionando como expressão (ditado popular) que oferece uma "marca em brasa" aos corpos engendrados pela cultura regional (contestável, bem evidentemente): "Prendam suas bezerras que o meu garrote está solto!". Esse elemento enunciativo é pensado aqui como uma das entradas de problematização no campo.

Caminhos investigativos

Nosso investimento aponta para um trabalho de pesquisa em perspectiva discursivo-desconstrucionista, filiada aos estudos pós-estruturalistas e em diálogo com os estudos de gênero e de sexualidade. A pesquisa se estabeleceu no Vale do Jiquiriçá, região localizada no interior do estado da Bahia. A delimitação desse campo se justificou pelo empreendimento investigativo da primeira autora deste artigo, enquanto doutoranda vinculada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ao Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (GEERGE) bem como docente2 2 A pesquisa de doutoramento é parte do projeto "Gênero e sexualidade na Educação Física escolar: notas sobre o Vale do Jiquiriçá/BA", registrado em 2010 no Centro de Formação de Professores/UFRB. do curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). O material que compõe este artigo é, então, constituído de partes dos resultados da pesquisa de doutoramento intitulada A (hetero)normalização dos corpos em práticas pedagógicas da Educação Física escolar (DORNELLES, 2013). O trabalho de campo foi realizado em parte da região que compõe o Vale do Jiquiriçá/BA. A sub-região investigada é composta por 9 dos 21 municípios que formam a referida área.

Os sujeitos que colaboraram com a pesquisa foram docentes que ministravam aulas de Educação Física em escolas estaduais distribuídas na sub-região investigada do Vale do Jiquiriçá/BA. Para garantir o contato com esses sujeitos, foram realizados seminários de formação de professores – com a aplicação de questionários como recurso para identificar possíveis docentes colaboradores para as etapas seguintes da pesquisa. Além disso, houve a utilização de um grupo focal3 3 O grupo focal, de 2011, foi constituído a partir de convites a docentes que lecionavam Educação Física na região do Vale do Jiquiriçá/BA e que responderam a um questionário aplicado em 2010. Esses docentes, para integrar o grupo focal, também participaram do I Seminário de Formação Continuada em Educação Física: proposições para o Vale do Jiquiriçá/BA – evento certificado pela UFRB, o qual, além de priorizar as discussões específicas sobre o ensino da cultura corporal na escola, destinava duas horas para a realização dos encontros do grupo focal. Assim, realizaram-se quatro encontros para os quais foram construídos roteiros de trabalho prévios. A participação da moderadora e de dois auxiliares foi contínua e os encontros foram gravados e transcritos. e de entrevistas4 4 As entrevistas ocorreram entre os anos de 2011 e de 2012 seguindo um roteiro semiestruturado composto a partir das informações produzidas com os grupos focais. Os/As docentes foram selecionados/as priorizando aqueles/as que responderam aos questionários aplicados em 2010, que não participaram do grupo focal e que vinham de cidades não representadas na estratégia do grupo focal; estes/estas foram entrevistados/as nas escolas onde lecionavam e as entrevistas foram gravadas e transcritas posteriormente. como estratégias metodológicas principais (7 docentes participaram do grupo focal e 7 docentes participaram das entrevistas) para a produção das informações do campo.

Nas entrevistas e nos grupos focais do estudo amplo, trabalhou-se com 14 professores/as atuantes na disciplina de Educação Física em escolas da sub-região investigada do Vale do Jiquiriçá/BA. Em sua maioria, os/as docentes que participaram dessas etapas metodológicas, privilegiadas na composição deste artigo, atuavam em escolas públicas estaduais, prioritariamente, nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Metade desses/dessas docentes apresentava graduação em Educação Física e/ou já fazia a formação inicial no período da realização do campo da pesquisa mais ampla. Outra metade dos/das docentes possuía formação em outras áreas, tais como Magistério, Licenciatura em História, Licenciatura em Letras (Língua Portuguesa) e Licenciatura em Letras (Língua Inglesa), contudo apresentava certa experiência no exercício da docência em Educação Física na escola, atuando e/ou na região investigada em função de a flexibilização do ensino desta disciplina para professores/as de outras áreas constituir-se como uma ação possível nas redes públicas de ensino daquela região.

Os elementos tomados em análise nesta publicação se referem a algumas passagens do material transcrito a partir do grupo focal e das entrevistas – estratégias metodológicas5 5 A pesquisa de doutoramento que é base deste artigo é composta de um questionário (respondido por 28 docentes em 2010), de um grupo focal com 7 professores/as (em 2011) e de entrevistas com outros/outras 7 docentes (em 2012) de instituições de ensino públicas localizadas nas cidades que compõem o Vale do Jiquiriçá/BA. Além dessas estratégias, a pesquisa incluiu a análise dos projetos político-pedagógicos das escolas nas quais lecionavam os/as docentes participantes do grupo focal e das entrevistas. Todas as estratégias realizadas com pessoas obedeceram a um tratamento ético de negociação para publicação autorizada das informações através do uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os nomes de docentes apresentados no decorrer deste artigo são fictícios. principais para dialogar sobre como tratar pedagogicamente o tema sexualidade nas aulas de Educação Física.

Problematizando cenas de um cotidiano regional: infância(s), gênero(s), sexualidade(s) e trabalho docente

Nos materiais analisados, há investimentos discursivos que apresentam (e sustentam) alguns aspectos regionais como responsáveis por imprimir e/ou reforçar marcas sexualizadas e de gênero nos sujeitos escolares. De forma mais contundente, as análises realizadas apontam para a evocação de uma masculinidade ativa, naturalmente viril, publicamente autorizada a manifestar os seus "instintos sexuais", que podem se expressar de forma "avançada" com as meninas e na rejeição a outros meninos. Efeitos de uma lógica binária do gênero constituída dos atravessamentos de uma concepção biológica, por vezes pautada em etapas e maturacional da sexualidade como algo natural, em que se concebem as crianças pequenas normais como assexuadas e a adolescência como "o" tempo de "desabrochar" das manifestações de sexualidade por parte dos sujeitos escolares. Ao mesmo tempo, parece-nos que essa narração identitária masculina, viril e avançada é reiteradamente utilizada para descrever as razões supostamente incondicionais e atemporais para a abordagem da sexualidade na escola. Há nesse "tabuleiro" discursivo certos tensionamentos, dentre os quais a idade biológica, que aparece (des)articulada com a regionalidade, na definição do que se pode conhecer e de quando se pode conhecer sobre o tema.

Fundamentalmente, essa organização binária do gênero estabelece uma masculinidade "garrote" e uma feminilidade "bezerra" na região investigada. Consideramos que o contexto cultural exterior e imanente à escola disputa a definição dos sujeitos e do conhecimento sobre a sexualidade bem como, de forma aliada ao sexo, naturaliza o "garrote" e a "bezerra" como formações identitárias que posicionam de determinada maneira os sujeitos nas tramas do gênero na Educação Física escolar, os quais estão imbricados e são possíveis a partir de discursos regionalizados.

Como "[...] o sexo é tomado como um princípio de identidade, ele é sempre posicionado num campo de duas identidades mutuamente exclusivas e completamente exaustivas; é-se macho ou fêmea" (BUTLER, 2008, p. 99), essas formações identitárias operam a nomeação e a vivência da sexualidade, restringindo-a a um efeito do sexo (na lógica sexo-gênero-desejo sexual) – o que repercute na assunção da heterossexualidade como produto referente e normativo. Além disso, a base da formação e da demarcação política de tipo identitário rompe com a possibilidade de ambiguidade e de variação na experiência do sujeito com a sexualidade.

Contribuindo com esse debate, Jaya Sharma indica que, no âmbito da pauta da sexualidade, "[...] é importante reconhecer que as identidades capturam apenas o aspecto da realidade que diz respeito ao desejo por pessoa do mesmo sexo e há o perigo de pressupor que isso seja a realidade na sua totalidade" (SHARMA, 2008, p. 113). Na linha dos argumentos da autora, é possível dizer que as diferentes manifestações e experimentações de desejo por pessoas consideradas do mesmo "sexo" extrapolam as classificações identitárias e colocam à margem os sujeitos que transitam, que se movimentam e que flertam com o ambíguo.

Se "[...] a sexualidade é como as línguas, todos podem aprender várias" (PRECIADO, 2010, p. 1, tradução nossa), esse debate sobre os limites e sobre as possibilidades das políticas de identidade para as análises da sexualidade e da relação norma-sujeito é fundamental na compreensão da regulação dos corpos nos Estados-nações. Judith Butler afirma:

[...] Se algumas vidas são consideradas merecedoras de viver, de proteção e de ser choradas, e outras não, então esta maneira de diferenciar as vidas não pode ser entendida como um problema de identidade, nem sequer de sujeito (BUTLER, 2009, p. 163, tradução nossa).

Nessa linha de discussão, há sujeitos escolares que se encaixam na categoria "garrote" ou "bezerra" de forma parcial, pois a materialização da norma nunca se dá plenamente. Entretanto, também há sujeitos que transitam e outros que não podem ser narrados a partir dos referentes regionais e de gênero utilizados para a organização/classificação/definição dos sujeitos escolares. Estamos a jogar sobre as relações de saber-poder contingentes e definidoras do que conta como uma existência habitável e possível na escola.

O entremeio discursivo com o qual operamos (entre gênero, sexualidade e regionalidade) tanto conforma e posiciona quem ocupa o lugar de vida humana respeitada na escola como consubstancia as posições de desigualdade e de margem dos corpos. Assim, em vez de invocar apenas a homossexualidade para problematizar o tratamento diferenciado de meninos nas aulas, com o envio destes para o grupo das meninas (DORNELLES, 2007), essa análise da escola e da Educação Física escolar propõe um rompimento com essencialismos identitários e/ou com articulações conceituais que reificam a hierarquização de dominações.

Para isso, é necessário pautar "[...] uma variedade de posições dinâmicas e de relações dentro do campo político" (BUTLER, 1993, p. 115, tradução nossa), evidenciando a ocupação dessas categorias em suas coalizões, distâncias e interfaces, de forma a tensionar e reelaborar "as condições excludentes de sua produção" (BUTLER, 1993, p. 115, tradução nossa). Assim,

[...] embora a sexualidade permaneça o objeto-chave da análise queer, ela é cada vez mais examinada em relação a outras categorias de saber envolvidas na manutenção das relações de poder desiguais: raça, religião, nacionalidade, idade e classe (SPARGO, 2006, p. 63).

Nesse sentido, um corpo alinhado a "uma" heterossexualidade padrão, como produto das normas reguladoras, não é produzido unicamente nas tramas do gênero – como se isso se desse de forma isolada de relações dependentes e contextuais. Há também práticas regionais, por exemplo, que compõem uma contingência normativa flexionada ao corpo escolar – o que buscamos visibilizar neste artigo, pois compreendemos que as normas de gênero não funcionam de modo prioritário em relação a outros meios (regionalizados) de conformação dos sujeitos sociais (SPARGO, 2006; LOURO, 2007; PINTO, 2007).

Quando docentes afirmam que os sujeitos escolares estão posicionados na trama epistemológica e são possíveis a partir do enunciado "Prendam suas bezerras que o meu garrote está solto!", o que é dito sobre a relação regional e de gênero? Como a regionalidade (re)conduz o funcionamento heteronormativo produtor de uma sexualidade naturalizada como "predadora" para os meninos e, supostamente, passiva e violável para as meninas? Considerando que o significado não seja saturado, fixo e/ou pré-discursivo, o que preenche essas expressões de identidade de forma a inscrever um plano normativo anterior ao sujeito e à sua nomeação como "garrote" ou "bezerra"?

Para dar o que pensar sobre essas questões, tratamos da regionalidade para além das dimensões espaciais que contornam, localizam e delimitam uma área territorial como o Vale do Jiquiriçá/BA. Enveredamos pelas provocações postas por Durval Muniz de Albuquerque Júnior para conceber que "[...] o espaço não preexiste a uma sociedade que o encarna" (2009, p. 35). Dessa forma, esca­pamos da compreensão natural e geográfica como imanente ao trato com a regionalidade, a qual considera o sujeito como produto das condições físicas que o cercam e nas quais ele se localiza. Apesar de reconhecermos a força desse discurso na formação do tipo nordestino nas décadas de 1920 e de 1930 do século XX (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013), interessa-nos politizar o debate sobre o espaço, compreendendo a regionalidade como mais um elemento atuante na produção discursiva definidora das relações locais.

Para o referido autor, "[...] a região é produto de uma batalha, é uma segmentação surgida no espaço dos litigantes. As regiões são aproveitamentos estratégicos diferenciados do espaço" (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 36), visto que sua geografia é viva e constituída de uma política de saber e de um plano do poder que rasuram noções como nordestino, sertanejo e interiorano, postas no singular. Como "[...] produto de uma operação de homogeneização" (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 37), quando tratada como estando imbricada à natureza, a regionalidade indica, repete e retoma o plano normativo que elege e concebe um destino espacial e essencial na produção dos sujeitos regionais. Nessa linha tática, produzem-se, por exemplo, posições econômicas, raciais, geracionais e engendradas (isto é, marcadas por "especificidades de gênero"), conforme Teresa de Lauretis (1994, p. 208), apresentadas como homogêneas e vinculadas ao sujeito regional, o qual só se torna possível e reconhecível à medida que encarna os atributos naturalizados tomados como próprios do espaço.

Em outra direção, Durval Muniz de Albuquerque Júnior discute a invenção cultural e histórica da identidade do nordestino. Ao analisar as narrativas literárias clássicas e as produções regionais (jornais e cordéis), o autor argumenta que alguns discursos sobre a região convergiram na produção desse tipo regional. Assim, a determinação das condições físicas regionais, a formação de uma "raça nordestina" e as tramas discursivas do gênero na formação de um "tipo" masculino viril convergiam e se sobrepunham.

É na reação a este mundo moderno, que parecia querer embaralhar as fronteiras entre os gêneros, que vinha feminizando perigosamente a sociedade e a região. E vinha provocando a desvirilização dos homens e a masculinização das mulheres, que o nordestino é inventado como um tipo regional destinado a resgatar padrões de masculinidade que estariam em perigo, um verdadeiro macho capaz de restaurar o lugar que seu espaço estava perdendo nas relações de poder em nível nacional (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 226).

Considerando que "a sexualidade não se constitui num campo externo a outros modos de diferença, como as de raça, etnicidade, nacionalidade, religião ou classe" (LOURO, 2007, p. 146) e que a (in)viabilidade dos sujeitos, suas subversões e a ampliação das margens definidoras de sua existência são dependentes de um contexto prescritivo-restritivo, interessa-nos problematizar o que é necessário fazer, ou suportar de modo geral, e na educação escolar, para permanecer como sujeito respeitável ou aceder a esse grau no plano regionalizado e de gênero.

A nomeação do "garrote" e da "bezerra", ao fim e ao cabo, é a própria ação que encarna e torna possíveis os corpos nas linhas do reconhecimento. Isso significa considerar que o sujeito é constituído performativamente e, com isso, assumir a radicalidade dos atos de fala, os quais "[...] operam efeitos de identidades de gênero sem que haja necessariamente troca lexical e articulam os elementos que citei (classe, raça, idade, prática sexual) nas relações em torno do corpo" (PINTO, 2007, p. 23), não só citando uma norma pregressa, mas realizando e incorporando o que nomeiam.

Na organização das unidades analíticas do material de campo da pesquisa, fundamentalmente, evidenciamos que a produção do sujeito reconhecível e sustentável se dá através das bases normativas do gênero binário em alianças eficientes com uma regionalidade filiada ao heterossexismo. Nesse "tabuleiro" de poder-saber complexo, implicado e, por vezes, contraditório, a Educação Física escolar apresenta-se produzindo regimes de inteligibilidade e práticas pedagógico-restritivas que, basicamente, referenciam o "garrote" nessa disciplina escolar, ao naturalizar as situações nas quais os meninos "avançam o sinal" com as meninas.

Nas atividades com o grupo focal, ao discutirmos a relação direta e implicada entre a disciplina de Educação Física e o conteúdo sexualidade na escola, alguns/algumas colaboradores/as relatam uma situação escolar que seria comum nas aulas dessa disciplina.

Arão: Rapaz! [...] Os meninos se aproveitam da situação do jogo, da brincadeira para, de alguma forma, se aproximar das meninas em algum momento. Acho que é muito visível isso. Mas, em certos momentos, acho que não é fingir que não está vendo, mas é encarar aquilo como natural do jogo, da vivência deles, da idade deles. Acho que muitas das coisas que acontecem nas aulas são situações normais. Alguns são exagerados e passam a mão onde não devem, às vezes fazem algo que não devem.

Priscila: Tipo o quê?

Arão: Passar a mão nas partes íntimas [das meninas] durante o jogo. Aí, os meninos podem se aproveitar dessa situação ou durante o jogo se utilizar de um gesto que é considerado obsceno – um dedo, uma palavra, uma agressão verbal ou um xingamento em relação ao colega. Acho que temos que estar atentos, mas algumas coisas são naturais até da própria relação deles, ali do convívio (DORNELLES, 2013, Grupo Focal, 3 set. 2011, p. 9-10, encontro I).

Não é novidade para o campo acadêmico a indicação de que há certa "exacerbação dos interesses sexuais" (ALTMANN; AYOUB; AMARAL, 2011, p. 498) nas aulas de Educação Física em formato misto. A assunção do desejo de meninos por meninas como algo "natural do jogo" e característico das aulas mistas aponta para as táticas do funcionamento normativo do gênero binário – o qual investe na "[...] incorporação de certos ideais de feminilidade e masculinidade, ideais que, quase sempre, se relacionam com a idealização do vínculo heterossexual" (BUTLER, 1993, p. 231-232, tradução nossa) – em articulação com uma regionalidade que naturaliza a "própria relação deles, ali do convívio" de meninos e meninas.

O movimento atrevido e o contato intencional de meninos em relação aos corpos das meninas nas aulas, e/ou as diversas formas de anúncio do seu desejo desinibido, são considerados "situações normais". São ações possíveis por operarem uma forma de conhecer a sexualidade circunscrita e referenciada à heterossexualidade como padrão e são concebíveis por se legitimarem a partir da força do enunciado "Prendam suas bezerras que o meu garrote está solto!". Apontamos que há um regime normativo movimentando a compulsoriedade da heterossexualidade nas tramas do reconhecimento das situações de sexualidade nas aulas de Educação Física. Uma heteronormatividade produzida em articulação com a regionalidade investe, assim, na essencialização do desejo masculino atrevido, instintivo (e, desse modo, conectado à dimensão cronológica) e impulsivo. De forma correlata, há o investimento no posicionamento "passivo" das meninas pela referida disciplina escolar.

Sujeitos desse jogo de saber-poder, docentes elaboram determinadas práticas pedagógicas, as quais, em geral, assumem como premissa a (fabricada) proximidade do "garrote" e da "bezerra" à norma. Essas expressões performativas "[...] repetem como um eco outras ações anteriores e acumulam a força da autoridade através da repetição ou da citação de um conjunto anterior de práticas autorizáveis" (BUTLER, 1993, p. 226-227, tradução nossa). Isso significa considerar que o trabalho pedagógico na Educação Física escolar recita normas que constringem os corpos nos "[...] limites das ontologias acessíveis, dos esquemas de inteligibilidade disponíveis" (BUTLER, 1993, p. 224, tradução nossa).

Parece-nos que a aceitação/essencialização do binário "garrote-bezerra" e/ou as discretas posições de contestação pedagógica são justificadas por "uma cultura daqui". Um contexto cultural de uma região do interior baiano e nordestino invoca, assim, a regionalidade entremeada ao plano discursivo do gênero para definir quem são e como são os corpos engendrados (LAURETIS, 1994) no cotidiano da escola. Um contexto que, em suas distinções e peculiaridades, recita e incorpora "um macho exacerbado" (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 209) e "a matutinha sonhadora do interior" (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 145).

Na análise do que é posicionado como identificador da região e dos/das seus/suas moradores/as, a ampla presença de alunos/as da zona rural é situada como uma característica comum das escolas localizadas na sede dos municípios do Vale do Jiquiriçá/BA.

Élida: Cultura baiana machista e no interior é pior ainda, viu? Por quê? Eu não sei. Talvez, na capital, os meninos tenham mais contato físico e humano. E o que se fala, o que se vê, o que se aprecia é mais... É tipo assim, mentalmente, é mais desenvolvido. E, no interior, não. As meninas são mais... Porque há muita gente de zona rural, né. Pela manhã mesmo, é mais de 50% [de discentes] da zona rural [na escola].

Priscila: Pela manhã? As turmas da manhã?

Élida: É. Pela tarde, é urbana. E aí [pela manhã] a gente vê muita menina tímida. Muitas com dificuldade, têm vergonha de tudo. Não consigo fazer com que as meninas façam nada. Se deixar, a menina vira uma estátua. A menina muito tímida. Tem que, com jeitinho e de forma separada, conversar com elas para dizer que é normal, é natural e que aqui é para a saúde, "pro" benefício seu, "pro" seu desenvolvimento físico, motor, emocional, psicológico. E os meninos são assim bravos, todos roceiros, "todos coisos" também. É futebol, é a bola e, se deixar, se deixar manter a cultura, é uma resistência, uma dificuldade muito grande a minha (DORNELLES, 2013, Élida, 8 mar. 2012, entrevista).

Em um tom essencialista, a colaboradora Élida indica a ausência de contato físico entre meninos e a presença de certa aspereza no trato cotidiano como características de uma masculinidade do interior baiano – um sujeito tipo "roceiro" ou "todo coiso". De forma dependente, o mínimo de participação nas aulas de Educação Física, a timidez extrema, a passividade e a falta de iniciativa são características mencionadas para descrever uma feminilidade regional posta como natural "da terra" – um tipo de "matutinha sonhadora do interior" (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 145) contemporâneo e, talvez, reatualizado discursivamente.

Argumentamos que os jogos de saber-poder definidores do território também investem na concepção do que seja pautado como humano e na consequente regulação dos modos de vida dos sujeitos sociais nesse espaço. Isso significa considerar que "[...] os discursos sobre o espaço [devam ser tomados] como o[s] discurso[s] da política do espaço" (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 35). Assim, regionalidade, gênero e sexualidade contornam e delineiam a figura do "garrote". Uma regionalidade que dá forma ao corpo e, alinhavada ao gênero, reitera alguns atributos masculinos e femininos como universais dos sujeitos regionais.

Os sentidos de atividade e de passividade são associados ao universo das práticas e à essência masculina e feminina, respectivamente, por estudos focados em áreas distintas, mas que indicam uma inteligibilidade comum às sociedades contemporâneas e ocidentais (ALMEIDA, 1996; MARTIN, 2006). Especificamente com relação às aulas de Educação Física na escola, docentes dessa disciplina descrevem a passividade das meninas e o "estilo cavalão" dos meninos como justificativas para as aulas ocorrerem com separação entre "os sexos" de forma cotidiana (DORNELLES, 2007). No caso da região analisada neste artigo, a regulação dos sujeitos escolares reitera essas expressões naturalizadas do gênero, mas também incorpora outras descrições como universais.

Arrumações (in)conclusivas

Construída no decorrer deste artigo, a análise das relações entre gênero, sexualidade e lugar na formação de uma existência habitável no espaço escolar constitui-se como uma direção potente para a fuga dos caminhos de articulação entre marcadores. A ignorância6 6 Utilizamos o termo "ignorância" no sentido exposto por Guacira Lopes Louro (2004), posicionando-o como uma forma de conhecer. Afastamo-nos de uma posição do senso comum que identifique esse conceito como a ausência de conhecimento formal e historicamente construído. com relação às políticas e aos estudos sobre a produção do sujeito no âmbito dos feminismos pode ser efervescida por estratégias teórico-políticas interseccionais, as quais aliançam marcadores na visibilidade dos modos heteronormativos de como os corpos se tornam explicáveis e (im)possíveis na contemporaneidade.

Dessa maneira, para dar conta dessa posição/desse desejo feminista, discutimos como as práticas pedagógicas da disciplina de Educação Física na escola atuam como engrenagens funcionais no gerenciamento das populações para os Estados-nações na modernidade. Esse caminho nos permitiu discutir os jogos de poder-saber acionados pela heteronorma, potencializando o diálogo com as questões sobre lugar e/ou regionalidade, as quais consideramos pouco enfatizadas pela teorização feminista.

Focamos a compreensão do sexo como um referente institucional para a promoção de práticas pedagógicas no interior baiano. Enfatizamos como a dimensão cronológica é tratada de forma fixa e como a questão regional é posta como algo restrito ao espaço quando articuladas aos processos identificatórios em relação à sexualidade na Educação Física escolar na região investigada. Com isso, as práticas pedagógicas promovidas por essa disciplina na escola pautavam, basicamente, o pressuposto da assunção unilinear (sexo-gênero-prática sexual) da sexualidade a partir da adolescência. Quando a sexualidade "se manifestava" em períodos anteriores, a regionalidade "entrava em cena" para explicar os conhecimentos prévios e/ou exacerbados dos sujeitos escolares.

Consideramos que o investimento na constituição histórica e relacional dos jogos de verdade na época atual pode evidenciar as formações discursivas amalgamadas e condicionantes da eficácia da heteronorma. Desse modo, esse tipo de análise micropolítica da Educação Física escolar, em linhas foucaultianas, pode repercutir na viabilidade de questionamentos sobre os seus efeitos tanto no plano do que seja possível conhecer quanto com relação à conformação dos corpos. Abre-se, assim, um caminho para descrever "[...] o nexo saber/poder de maneira que possamos compreender o que converte um sistema em aceitável" (BUTLER, 2004, p. 27, tradução nossa) na educação escolar e na vida cotidiana da contemporaneidade.

Texto recebido em 19 de maio de 2014

Texto aprovado em 20 de maio de 2014

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  • 1
    Decorrente de sua ampla utilização e de reflexões em diversos outros campos nas Ciências Sociais e Humanas, a interseccionalidade vem se definindo enquanto um paradigma epistemológico. Estudiosas no campo dos feminismos, dos estudos de gênero e da sexualidade discutem seu estatuto político-epistemológico assumindo que se trata de uma teorização derivada de tensões próprias e pertencentes ao campo dos feminismos (DORLIN, 2005; PISCITELLI, 2008; BILGE, 2009; VIGOYA, 2009). Muitas dentre estas pesquisadoras situam a interseccionalidade como uma das quatro principais perspectivas da terceira onda do feminismo, juntamente com as abordagens pós-estruturalistas e pós-modernas, a teoria feminista pós-colonial e as demandas das novas gerações feministas (BILGE, 2009). A articulação prática-conceitual da interseccionalidade surge precisamente do plano das articulações do
    Black feminism, movimento social que contestou a representação majoritária do feminismo branco e de classe média nos Estados Unidos. Com a proposta de intersectar diferenças – sua posição de subalternidade e sua decorrente desigualdade –, a interseccionalidade evidenciou-se em estudo relativo à violência sofrida por mulheres negras de classes desfavorecidas norte-americanas. O trabalho de investigação da jurista feminista afro-americana Kimberlé Crenshauw é destacado como a primeira aplicação do termo. Sabe-se também que uma formalização do conceito foi produzida também por outras estudiosas do pensamento feminista negro, como Patricia Hill Collins, informando a interseccionalidade como paradigma, e Ange-Marie Hanchok, propondo a sua formalização (DORLIN, 2005; BERENI
    et al., 2008; BILGE, 2009). A partir das tensões epistemológicas acionadas nas perspectivas teóricas pós-críticas, através do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, articuladas aos campos dos estudos pós-coloniais, étnicos, de gênero, lésbicos,
    gays, trans e
    queer, a aplicabilidade e a produtividade do conceito de interseccionalidade se ampliaram. Hoje, muitos são os trabalhos de pesquisa que acionam categorias de articulação sobre corpo, gênero, sexualidade, raça/etnia e deficiência. Sobre isso, ver Pocahy (2013).
  • 2
    A pesquisa de doutoramento é parte do projeto "Gênero e sexualidade na Educação Física escolar: notas sobre o Vale do Jiquiriçá/BA", registrado em 2010 no Centro de Formação de Professores/UFRB.
  • 3
    O grupo focal, de 2011, foi constituído a partir de convites a docentes que lecionavam Educação Física na região do Vale do Jiquiriçá/BA e que responderam a um questionário aplicado em 2010. Esses docentes, para integrar o grupo focal, também participaram do I Seminário de Formação Continuada em Educação Física: proposições para o Vale do Jiquiriçá/BA – evento certificado pela UFRB, o qual, além de priorizar as discussões específicas sobre o ensino da cultura corporal na escola, destinava duas horas para a realização dos encontros do grupo focal. Assim, realizaram-se quatro encontros para os quais foram construídos roteiros de trabalho prévios. A participação da moderadora e de dois auxiliares foi contínua e os encontros foram gravados e transcritos.
  • 4
    As entrevistas ocorreram entre os anos de 2011 e de 2012 seguindo um roteiro semiestruturado composto a partir das informações produzidas com os grupos focais. Os/As docentes foram selecionados/as priorizando aqueles/as que responderam aos questionários aplicados em 2010, que não participaram do grupo focal e que vinham de cidades não representadas na estratégia do grupo focal; estes/estas foram entrevistados/as nas escolas onde lecionavam e as entrevistas foram gravadas e transcritas posteriormente.
  • 5
    A pesquisa de doutoramento que é base deste artigo é composta de um questionário (respondido por 28 docentes em 2010), de um grupo focal com 7 professores/as (em 2011) e de entrevistas com outros/outras 7 docentes (em 2012) de instituições de ensino públicas localizadas nas cidades que compõem o Vale do Jiquiriçá/BA. Além dessas estratégias, a pesquisa incluiu a análise dos projetos político-pedagógicos das escolas nas quais lecionavam os/as docentes participantes do grupo focal e das entrevistas. Todas as estratégias realizadas com pessoas obedeceram a um tratamento ético de negociação para publicação autorizada das informações através do uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os nomes de docentes apresentados no decorrer deste artigo são fictícios.
  • 6
    Utilizamos o termo "ignorância" no sentido exposto por Guacira Lopes Louro (2004), posicionando-o como uma forma de conhecer. Afastamo-nos de uma posição do senso comum que identifique esse conceito como a ausência de conhecimento formal e historicamente construído.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jun 2014
    • Data do Fascículo
      2014

    Histórico

    • Aceito
      20 Maio 2014
    • Recebido
      19 Maio 2014
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