Acessibilidade / Reportar erro

As universidades, a inserção e a aprendizagem profissionais: que lugar para a pedagogia?

Universities, transition to work and professional learning: what is the place for pedagogy?

Resumo:

A universidade, enquanto instituição formadora, tem preocupações profissionais desde as suas origens medievais, no sentido em que, entre as suas missões, se inclui a preparação dos alunos para o exercício de atividades profissionais. Contudo, na contemporaneidade, essas preocupações têm sido objeto de uma atenção e preocupação crescentes no quadro das políticas educativas, bem como por parte dos académicos e da sociedade em geral, veiculando frequentemente a ideia de que importa repensar o ensino superior numa lógica de resposta a necessidades (quantitativas e qualitativas) da economia e do mercado de trabalho. O objetivo deste artigo é enriquecer a reflexividade sobre este tipo de posicionamentos e sobre as respectivas implicações no campo da pedagogia universitária. Procura-se, deste modo, identificar tensões e desafios subjacentes aos modos de funcionamento e aos modelos curriculares e pedagógicos das universidades na atualidade, reforçando a importância de favorecer uma perspetiva educativa sobre a pedagogia universitária que não a subordine às supostas necessidades do mercado de trabalho.

Palavras-chave:
universidade; ensino superior; inserção profissional; empregabilidade; pedagogia

Abstract:

The universities as training institutions have professional concerns since their medieval origins, given that among their missions it is included the preparation of students to perform professional activities. However, in contemporary times such concerns have been the object of increasing attention and apprehension both in the context of educational policies, as well as for academics and the society as a whole. This situation often conveys the idea that here is the need to rethink higher education following the logic of responding to both quantitative and qualitative needs of the economy and the labour market. The aim of this paper is to enrich the reflexivity about this type of understandings and on their implications in the field of university pedagogy. Thus, the paper's underlying attempt is to identify tensions and challenges within the modes of operation and the curricular and pedagogical models in universities nowadays, reinforcing the importance of fostering an educational perspective on university pedagogy not controlled by the alleged needs of the labour market.

Keywords:
university; higher education; transition to work; employability; pedagogy

A universidade como instituição formadora de profissionais

A universidade, enquanto instituição formadora, tem preocupações profissionais desde as suas origens medievais, no sentido em que, entre as suas missões, se inclui a habilitação dos alunos para o exercício de atividades profissionais. De facto, importa salientar que, embora o profissionalismo medieval fosse muito pouco diversificado, existiam duas profissões de nível superior permanentemente consideradas necessárias e indispensáveis por parte do poder régio: direito e medicina. Foi, em parte, para que a boa formação de uns e de outros pudesse ser obtida, que se impôs a criação de universidades na Europa desde finais do século XII. É curioso notar que, já no século XVII, diversos autores denunciavam e preocupavam-se com o excesso de diplomados face às necessidades existentes, assim como questionavam a adequação de uma formação académica demasiado intelectualizada tendo em conta as necessidades do mundo profissional. (Charle & Verger, 1994CHARLE, C.; VERGER, J. Histoire des universités. Paris: Presses Universitaires de France (Que Sais-Je?), 1994.).

Todavia, é inequívoco que, historicamente, é a partir de finais do século XX que mudanças significativas nas dinâmicas do mercado de trabalho, e nas suas articulações com os diplomas escolares, justificam uma preocupação crescente com o emprego e o trabalho dos graduados. (Alves, 2010bALVES, M. G. A inserção profissional de graduados em Portugal: notas sobre um campo de investigação em construção. In: MARQUES, A. P.; ALVES, M. G.Inserção profissional de graduados em Portugal: (re)configurações teóricas e empíricas. Braga: Edições Húmus, 2010b. p. 31-50.). Noutros termos, ainda que a preocupação em torno da quantidade e da qualidade da formação de profissionais no contexto universitário não seja algo recente, é inquestionável que, na contemporaneidade, essas preocupações assumem uma visibilidade crescente revestindo-se de especificidades marcantes que procuramos identificar.

Assim, num primeiro momento, procura-se explicitar os contornos da temática da formação de profissionais nas universidades1 1 Neste artigo, a proposta é refletir sobre o caso específico das universidades. Não obstante, o ensino superior em Portugal é composto por universidades e institutos politécnicos. Estes últimos foram criados com a intenção de que estabelecessem uma articulação mais estreita com o mundo do trabalho e com a sociedade envolvente do que a que é característica das universidades. , quer no plano das políticas de ensino superior, quer em termos dos discursos públicos e sociais, refletindo sobre as respectivas particularidades. Numa segunda parte do artigo, sistematizam-se as características dos procesos de aprendizagem profissional de estudantes e diplomados na contemporaneidade, esclarecendo o lugar da universidade nesse âmbito. Finalmente, conclui-se identificando um conjunto de tensões e desafios que subjazem, na atualidade, às inter-relações entre as universidades, a inserção e a aprendizagem profissionais. Procura-se, globalmente, enriquecer a reflexividade sobre a centralidade crescente das preocupações em torno da formação de profissionais nas universidades, incluindo as respectivas implicações no plano da pedagogia. É que, um dos vários fatores que exigem repensar a prática pedagógica na educação superior, "[...] refere-se à competitividade no mundo do trabalho, que vem abalando a organização académica". (Cunha, 2010CUNHA, M. I. Impasses contemporâneos para a pedagogia universitária no Brasil: implicações para os currículos e a prática pedagógica. In: LEITE, C. (Org.). Sentidos da pedagogia no ensino superior. Porto: Legis Editora, 2010. p. 63-74., p. 71).

Políticas educativas, universidades e inserção profissional na contemporaneidade

As universidades medievais, que constituem a origem histórica do ensino superior contemporâneo, transformaram-se, entretanto, em instituições educativas frequentadas por uma quantidade e diversidade de públicos assinável. Ao longo dos tempos, mas sobretudo na segunda metade do século XX, verificou-se um processo de progressiva democratização deste nível de ensino, ao mesmo tempo que se alteraram os seus modos de funcionamento e princípios estruturantes. Os sistemas educativos, e o ensino superior em particular, são hoje amplamente reconhecidos como elementos importantes para o progresso social e económico, sendo objeto de procura social pelas populações e alvo de regulamentação por parte dos governos.

Assim, se é verdade que as preocupações em torno da quantidade e da qualidade de profissionais formados nas universidades acompanharam o respectivo desenvolvimento, observa-se que essas preocupações têm vindo a assumir nas últimas décadas uma visibilidade acentuada e novos significados nos debates públicos e políticos. Nesses debates sobressaem, principalmente nos primeiros anos do século XXI, dois posicionamentos tendencialmente hegemónicos com profundas implicações no modo como se entendem os processos de aprendizagem protagonizados pelos seus estudantes e, consequentemente, em termos de pedagogia universitária e do papel dos docentes deste nível de ensino.

Um desses posicionamentos corresponde a um entendimento segundo o qual a universidade deverá adaptar o seu funcionamento, incluindo decisões sobre a respectiva oferta formativa e sobre modelos curriculares e pedagógicos, aos requisitos e necessidades existentes no mercado de trabalho. O outro desses posicionamentos, articulado com o primeiro, remete para a generalização da ideia de que os estudantes nas universidades procuram essencialmente ofertas formativas ajustadas ao mercado de trabalho, ou seja, certificações que lhes garantam melhores perspetivas de inserção profissional, as quais estarão, em grande medida, dependentes dos esforços pessoais de cada um. A aceitação destes posicionamentos conduz a entender a universidade "[...] enquanto instrumento de produção de capital humano, funcionalmente adaptada às exigências do crescimento económico e da competitividade" (Lima, 2008LIMA, L. A educação de adultos em Portugal (1974-2004): entre as lógicas da educação popular e da gestão de recursos humanos. In: CANÁRIO, R.; CABRITO, B. (Orgs.). Educação e formação de adultos: mutações e convergências., Lisboa: Educa, 2008. p. 31-60., p. 45), definindo "a educação como um bem privado" (Nóvoa, 2009NÓVOA, A. Educação 2021: para uma história do futuro. Revista Iberoamericana de Educación, n. 49, p. 1-18, 2009., p. 11) numa lógica de competitividade entre escolas e entre indivíduos, o que se considera uma visão redutora dos sentidos e significados do ensino superior.

Porém, constata-se que esses posicionamentos assumem um carácter muitas vezes hegemóniconos debates públicos e políticos na contemporaneidade, observando-se que, de algum modo, enformam decisões de política educativa, quer no plano institucional sugerindo novos modelos de organização e funcionamento das universidades, quer nas orientações estratégicas assumidas pelos governos e organismos supranacionais. No plano institucional, nota-se que assume significativa relevância a ideia de que os planos de estudos, as unidades curriculares e as modalidades de ensino-aprendizagem privilegiadas devem ser estruturados em função de necessidades profissionais, tornando a frequência da universidade, essencialmente, um processo de certificação de indivíduos com vista à sua inserção no mercado de trabalho. Nesse processo, alguns autores (Boden & Nedeva, 2010BODEN, R.; NEDEVA, M. Employing discourse: universities and graduate employability. Journal of Education Policy, v. 25, n. 1, p. 37-54, 2010.) apontam uma tendência atual para os académicos serem condicionados, nas suas decisões sobre modelos curriculares e pedagogia, pelos mecanismos de regulação e controlo estatal, o que contrasta com uma situação anterior em que as universidades seriam mais confiáveis no que respeita a esse tipo de decisões.

Nas universidades portuguesas, existem já reformas curriculares que, precisamente, são justificadas pelo propósito de melhorar a inserção profissional dos seus diplomados2 2 A título ilustrativo pode consultar-se informação sobre a reforma curricular implementada em 2012/13 na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa: <http://www.fct.unl.pt/ensino/perfil-curricular-fct>, último acesso em 21 ago. 2015. . Em muitos casos, essas reformas têm em comum a intenção de promover modelos de organização curricular e funcionamento pedagógico que favoreçam o desenvolvimento de competências gerais (muitas vezes designadas de pessoais e/ou sociais), de capacidades de empreendedorismo e, frequentemente, preconizam a realização de estágios em contexto profissional.

A análise dessas reformas, bem como dos seus efeitos, justificaria um estudo aprofundado, mas por agora limitamo-nos a constatar a sua existência e as razões que são apresentadas para a sua concretização. É que, longe de constituir uma especificidade portuguesa, verifica-se no ensino superior em vários países que, tanto os alunos como os professores, enfrentam dilemas pedagógicos que decorrem da tensão latente entre, por um lado, o conhecimento disciplinar e os programas baseados em disciplinas e, por outro lado, o conhecimento tácito e o desenvolvimento de competências. (Guile, 2008GUILE, D. O que distingue a economia do conhecimento? Implicações para a educação. Cadernos de Pesquisa, v. 38, n. 135, p. 612-636, 2008.). Para o autor, "[...] o ensino superior é visto como o foco da economia do conhecimento" (Guile, 2008GUILE, D. O que distingue a economia do conhecimento? Implicações para a educação. Cadernos de Pesquisa, v. 38, n. 135, p. 612-636, 2008., p. 630), sendo marcado pela distinção entre uma concepção tradicional, em que o conhecimento representa uma combinação de ideias, e uma concepção utilitária, segundo a qual o conhecimento é um meio para atingir um fim.

Saliente-se, portanto, que a ênfase colocada na formação de profissionais para ingressar no mercado de trabalho é contemporânea ao destaque conferido à promoção e desenvolvimento de competências, o qual se constitui como um elemento chave de reformas curriculares preconizadas nas políticas educativas em vários países. Referindo-se à situação nos Estados Unidos da América, Hanson (2008HANSON, C. Curriculum, technology, and Higher Education. Thought & Action - The NEA Higher Education Journal, p. 71-79, 2008.) assinala o surgimento de um movimento gestionário no ensino superior que privilegia os currículos orientados para competências e apela a modos de trabalho pedagógico que sejam centrados nos estudantes e focados nos aprendentes. Estas expressões são muito semelhantes às que são utilizadas, no contexto europeu, para promover o processo de Bolonha que originou reformas curriculares no ensino superior de dezenas de países desde o início do século XXI. Recorde-se que um dos objetivos centrais deste conjunto de reformas é o de promover a mobilidade e a empregabilidade dos diplomados no espaço europeu, incrementando a competitividade económica da região.

No caso português, o processo de Bolonha está associado a mudanças significativas na estrutura da oferta formativa do ensino superior, designadamente com a generalização de um modelo com três ciclos de formação: a licenciatura tipicamente com três anos de duração, o mestrado com dois e o doutoramento com três ou quatro, tal como preconizado no Decreto-lei nº 74/2006. Em paralelo, o mesmo texto legislativo sublinha a importância de privilegiar a aprendizagem centrada nos alunos, sugerindo que o processo de Bolonha tem "[...] implicações diretas nas práticas de ensino e aprendizagem", ao mesmo tempo que se enquadra num "[...] movimento mais vasto de construção de novos sentidos para o ensino superior, radicado em mudanças profundas no papel que as universidades hoje desempenham". (Vieira, 2009VIEIRA, F. Prefácio. In: VIEIRA, F. (Org.). Transformar a pedagogia na universidade: narrativas da prática. Santo Tirso: De Facto, 2009. p. 9-16., p. 9). Nesse contexto, importa sublinhar que "[...] o conceito de formação que acompanha o chamado discurso de Bolonha não despreza os conhecimentos mas também não termina na sua aquisição, pois tem como mira desenvolver competências imprescindíveis à intervenção". (Leite & Ramos, 2012LEITE, C.; RAMOS, K. Formação para a docência universitária: uma reflexão sobre o desafio de humanizar a cultura científica., Revista Portuguesa de Educação v. 25, n. 1, p. 7-27, 2012., p. 10).

Esse conjunto de mudanças legislativas e organizativas, algumas já concretizadas e outras apenas preconizadas, configura, globalmente, uma reconceptualização do ensino superior. Nessa reconceptualização, uma das vertentes que parece ter vindo a assumir, progressivamente, maior destaque é uma visão instrumental das instituições deste nível de ensino, nomeadamente visando solucionar dificuldades relativas à inserção profissional dos seus diplomados. A aceitação deste tipo de posicionamentos e perspetivas implica que a qualidade da formação universitária deverá ser aferida, em parte, pela sua eficácia em termos de inserção profissional dos respectivos diplomados. Tal já vem acontecendo na maioria dos países europeus segundo um relatório recente (Commission/EACEA/Eurydice, 2014COMMISSION/EACEA/EURYDICE, E. Modernisation of Higher Education in Europe: access, retention and employability 2014 Luxembourg: Publications Office of the European Union, 2014.), pois as instituições de ensino superior têm de fornecer informações relativas à empregabilidade3 3 O termo empregabilidade é habitualmente utilizado nos discursos públicos e políticos como sinónimo de taxa de emprego, embora o mesmo termo também possa remeter a abordagens centradas nas competências adequadas para o desempenho profissional. Sobre este conceito pode consultar-se Knight e Yorke (2004). dos seus diplomados às agências de qualidade e de acreditação de cursos. Ora, neste contexto, colocam-se desafios à pedagogia neste nível de ensino, decorrentes de se enfatizar, significativamente, o ajustamento dos planos de estudos e modelos de ensino-aprendizagem às necessidades identificadas no mercado de trabalho.

Noutros termos, os contributos das universidades para o desenvolvimento dos cidadãos e do conhecimento parecem, em larga medida, ter vindo a ser reformulados, passando a estar tendencialmente mais centrados na formação de profissionais. Sobre esta reformulação é, aliás, particularmente ilustrativa a opção do governo português que, nos últimos três anos, condicionou a decisão sobre o número de vagas disponíveis nos cursos de licenciatura do ensino superior aos índices de desemprego registado dos respectivos diplomados4 4 As decisões sobre fixação de número de vagas em Portugal podem ser consultadas em: <http://www.dges.mctes.pt/DGES/pt/Instituicoes/InstrucaoProcessos/FixacaoVagas/>, último acesso em 21 ago. 2015. . Neste âmbito, o índice de desemprego registado justifica decisões de aumento, manutenção ou redução das vagas existentes num determinado curso de licenciatura. Não obstante, os dados sobre desemprego disponíveis apresentam diversas lacunas e insuficiências, não permitindo retratar com exatidão a dimensão real e os contornos precisos do desemprego entre os licenciados em Portugal.

Importa não escamotear, que todos esses debates e mudanças acontecem num contexto político em que a redução do papel do Estado, na esfera da educação, tem sido recomendada e tem reunido muitos apoios. Como assinalam Boden e Nedeva (2010BODEN, R.; NEDEVA, M. Employing discourse: universities and graduate employability. Journal of Education Policy, v. 25, n. 1, p. 37-54, 2010.), as novas noções sobre o que a educação na universidade é (ou deve ser), incluindo a reconceptualização dos seus contributos centrando-os na formação de profissionais, têm de ser equacionadas no quadro do surgimento denovas formas de regulação das relações entre as instituições de ensino superior e os Estados. Essas formas de regulação são marcadas, em grande medida, pela generalização de uma lógica neoliberal de competitividade entre instituições e de privatização de serviços de educação, a qual é identificável na Europa, mas também se verifica na América Latina onde terá até tido início anteriormente. (Teodoro & Guilherme, 2014TEODORO, A.; GUILHERME, M. Conclusion. In:; TEODORO, A. GUILHERME, M. (Orgs.). European and Latin America higher education between mirrors: Conceptual frameworks and policies of equity and social cohesion. Rotterdam/Boston/Taipai: Sense Publishers, 2014. p. 213-215.). Alguns autores assinalam que "[...] mesmo que com diferenças pontuais, a América Latina assumiu a perspetiva neoliberal que se instalava, anunciando a apologia do Estado Mínimo e da ineficiência do aparato público na prestação de serviços básicos, incluindo, certamente, saúde e educação". (Cunha, 2010CUNHA, M. I. Impasses contemporâneos para a pedagogia universitária no Brasil: implicações para os currículos e a prática pedagógica. In: LEITE, C. (Org.). Sentidos da pedagogia no ensino superior. Porto: Legis Editora, 2010. p. 63-74., p. 66).

Tendo em conta a centralidade que as preocupações com a inserção profissional dos diplomados vêm assumindo nos debates públicos e políticos, e até mesmo nos modos de regulação estatal do ensino superior, antecipa-se que essas mesmas preocupações tenham profundas implicações sobre os modelos de organização e modos de trabalho pedagógico nas universidades. Embora não se pretenda defender neste texto que as universidades devam ignorar por completo as tendências evolutivas da economia e dos mercados de trabalho, considera-se crucial discutir se estes aspetos podem ser os referentes predominantes para equacionar modos de funcionamento e de organização pedagógica neste nível de ensino. Por isso, na secção seguinte deste artigo procura-se refletir sobre as condições (onde? quando? como?) nas quais se desenrolam os processos de aprendizagem profissional, por forma a estabelecer quais são, e podem ser, os contributos da universidade para esses processos protagonizados pelos seus estudantes e diplomados. Uma tal reflexão permitirá alicerçar algumas notas críticas sobre as tendências recentemente observadas nas políticas educativas e nas formas de organização do ensino superior, contribuindo, em conclusão, para perspetivar um outro lugar para a pedagogia universitária.

A universidade como espaço e tempo de aprendizagem profissional

Aprender a desempenhar uma profissão é hoje, como terá sido sempre, um processo que se prolonga ao largo e ao longo da vida. Afinal, tal como se argumenta noutro texto (Alves, 2010aALVES, M. G. Aprendizagem ao longo da vida: entre a novidade e a reprodução de velhas desigualdades. Revista Portuguesa de Educação, v. 23, n. 1, p. 7-28, 2010a.), a aprendizagem ao longo da vida pode constituir uma novidade no plano dos discursos e das medidas de política educativa, mas está longe de se configurar substantivamente como um processo novo.

Esse carácter permanente e transversal de que a aprendizagem se reveste desde sempreno plano substantivo, é hoje genericamente reconhecido e valorizado num contexto em que se aceita que nenhum nível e tipo de formação inicial dispensam a frequência de outras formações ou a realização de múltiplas aprendizagens, em várias modalidades, no decurso da vida dos sujeitos. A aceitação destes pressupostos implica recusar concepções que herdámos das sociedades modernas, as quais remetem para a existência de correspondência entre diplomas escolares e postos de trabalho e para a sequencialidade entre etapas em que se estuda e fases em que se trabalha no decurso dos ciclos de vida. Essas concepções são agora fortemente questionadas, tendo em conta as tendências observáveis nas trajetórias de educação e trabalho protagonizadas pela generalidade dos indivíduos (Alves, 2010aALVES, M. G. Aprendizagem ao longo da vida: entre a novidade e a reprodução de velhas desigualdades. Revista Portuguesa de Educação, v. 23, n. 1, p. 7-28, 2010a.), e resultam de referenciais de pensamento inspirados nas versões iniciais da teoria do capital humano. Nesse enquadramento, aceitaria-se que a frequência escolar estivesse circunscrita às idades mais jovens e que seria possível ajustar a oferta formativa às necessidades profissionais, identificando os desajustamentos entre ambas com vista à respectiva eliminação.

Argumenta-se, contudo, que na contemporaneidade é crucial uma compreensão aprofundada sobre os processos de aprendizagem profissional que ocorrem ao largo e ao longo da vida, por forma a equacionar o lugar que a universidade neles ocupa. Na verdade, se a aprendizagem pode ocorrer em diferentes espaços e tempos, note-se que é sobre modelos de organização institucional e modos de trabalho pedagógico na universidade que pretendemos refletir. Ou seja, pretendemos mapear dinâmicas de aprendizagem para repensar práticas de educação nas universidades, no sentido que é conferido ao termo educação por Young (2010YOUNG, M. Alternative educational futures for a knowledge society. European Educational Research Journal, v. 9, n. 1, p. 1-12, 2010.), isto é, um processo institucional que envolve uma relação pedagógica e que permite aos aprendentes construir conhecimento que os transporta para além das suas experiências e que não poderiam construir isoladamente nos seus quotidianos.

Assim sendo, interessa destacar que a universidade constitui (apenas) um dos espaços em que se desenrola a aprendizagem profissional, sendo que, neste âmbito, a aprendizagem assume um carácter marcadamente intencional e estruturado, tal como é característico dos sistemas educativos. Adaptando uma proposta analítica de Ileris (2009ILERIS, K. Transfer of learning in the learning society: how can the barriers between different learning spaces be surmounted, an how can the gap betweeb learning inside and outside schools be bridged?. International Journal of Lifelong Education, v. 28, n. 2, p. 137-148, 2009.) que procura mapear espaços de aprendizagem, considera-se que acrescem à universidade outros três espaços ao largo da vida em que também decorre a aprendizagem profissional: no contexto de trabalho, seja através de experiências e atividades imbuídas no quotidiano de trabalho, seja assumindo formas mais estruturadas (ex: cursos e sessões ou ações de formação); no quotidiano das vidas dos sujeitos sem associação a nenhuma atividade especificamente definida; em função de interesses pessoais e em diferentes atividades (ex: associações e comunidades). Ora, se os estudantes aprendem dentro e fora das universidades, importa estabelecer ligações entre esses vários espaços, beneficiando o processo educativo dos alunos e a respectiva construção de conhecimento.

Acresce, ainda, que afirmar que a aprendizagem se desenrola ao longo da vida tem pelo menos duas grandes implicações para a reflexão sobre o papel da universidade. Por um lado, reconhece-se que a frequência universitária inicial corresponde a uma primeira fase de um processo que se vai estender às etapas de vida subsequentes. Nesse âmbito, é expectável que o processo de aprendizagem profissional seja afectado pela idade dos indivíduos, pois, como aponta Jarvis (2009JARVIS, P. Learning to be a person in society London and New York: Routledge, 2009.), os mais jovens têm uma atitude muito mais instrumental perante a aprendizagem do que em fases posteriores da vida. Por outro lado, sublinha-se que é cada vez mais frequente que os indivíduos reingressem na universidade em diferentes momentos ao longo das suas trajetórias profissionais. Como indica Bélanger (2011BÉLANGER, P. Theories in adult learning and educationOpladen & Farmington Hills: Barbara Budrich Publishers, 2011.), a participação dos adultos em educação e formação não é uma realidade marginal na contemporaneidade, sendo afinal uma marca significativa das sociedades em que vivemos.

Nessas condições, diversos aspetos da oferta formativa universitária, e do seu funcionamento e organização pedagógica, precisam ser equacionados assumindo os pressupostos de que a formação inicial terá continuidade e que, cada vez mais frequentemente, existirão alunos adultos que apresentam particularidades relativamente aos jovens que tradicionalmente constituem o público estudantil predominante nas universidades. Não obstante, é notório que nem todas as organizações do trabalho incentivam a procura e frequência de oportunidades educativas por parte dos seus trabalhadores, tendo em conta que numa pesquisa anterior encontrámos indícios de que as entidades empregadoras nem sempre facilitam a frequência de formação por parte dos seus colaboradores, em particular no que respeita a cursos de pós-graduação no ensino superior. (Alves et al., 2010ALVES, M.; CABRITO, B.; LOPES, M. C.; MARTINS, A.; PIRES, A. L. Universidade e formação ao longo da vida. Caparica: Edições UIED, 2010.).

Entender a universidade como (apenas) um dos espaços e tempos de aprendizagem profissional exige a reflexão sobre a natureza do conhecimento que está subjacente a este tipo de aprendizagem. A consideração de várias pesquisas sobre inserção profissional de diplomados e trajetórias de formação ao longo da vida (Alves, 2010bALVES, M. G. A inserção profissional de graduados em Portugal: notas sobre um campo de investigação em construção. In: MARQUES, A. P.; ALVES, M. G.Inserção profissional de graduados em Portugal: (re)configurações teóricas e empíricas. Braga: Edições Húmus, 2010b. p. 31-50.; Alves et al., 2010ALVES, M.; CABRITO, B.; LOPES, M. C.; MARTINS, A.; PIRES, A. L. Universidade e formação ao longo da vida. Caparica: Edições UIED, 2010.) conduz a esclarecer que não é ajustada uma concepção de conhecimento circunscrito a credenciais escolares e a qualificações formais, nem o respectivo entendimento como um conjunto de dados e informações que possa ser rigorosamente controlado, medido e quantificado. Ou seja, recusam-se concepções cumulativas, predominantes no âmbito da forma escolar mais tradicional de educação, segundo as quais o conhecimento é exterior relativamente quer aos contextos de vida quer aos próprios aprendentes. (Canário, 1999CANÁRIO, R. Educação de adultos: um campo e uma problemática Lisboa: Educa, 1999.). Também se recusa perspetivar o conhecimento como uma espécie de serviço educativo que se adquire no ensino superior, privilegiando em alternativa o respectivo entendimento enquanto construção pessoal. (Teodoro & Guilherme, 2014TEODORO, A.; GUILHERME, M. Conclusion. In:; TEODORO, A. GUILHERME, M. (Orgs.). European and Latin America higher education between mirrors: Conceptual frameworks and policies of equity and social cohesion. Rotterdam/Boston/Taipai: Sense Publishers, 2014. p. 213-215.).

Noutros termos, argumenta-se que o conhecimento envolvido nos processos de aprendizagem profissional deve ser compreendido como algo de indissociável do próprio sujeito, das experiências que vivencia e das especificidades dos contextos que vai atravessando. (Jarvis, 2009JARVIS, P. Learning to be a person in society London and New York: Routledge, 2009.). Neste sentido, partilhamos da ideia de que o conhecimento não pode ser visto como inteiramente prévio à ação, pois ele é continuamente reconstruído no decurso do agir profissional. De resto, admite-se que o conhecimento profissional é também construído noutras esferas da existência humana, não decorrendo somente das experiências de educação e/ou de trabalho.

Contudo, se aceitarmos que o ensino superior tende, tradicionalmente, a valorizar o conhecimento formal e descontextualizado, compreende-se que os jovens após concluírem uma formação inicial na universidade sejam culturalmente ingénuos relativamente ao conhecimento tácito para agir em contexto de trabalho. (Knight & Yorke, 2004KNIGHT, P.; YORKE, M. Learning, curriculum and employability in higher education. London and New York: Routledge Falmer , 2004.). De facto, como sublinha Guile (2008GUILE, D. O que distingue a economia do conhecimento? Implicações para a educação. Cadernos de Pesquisa, v. 38, n. 135, p. 612-636, 2008.), o conhecimento integra várias componentes e, adoptando uma perspetiva holística, abrange uma dimensão teórica, mas também uma outra de natureza tácita.

Nessas condições, é relevante refletir sobre os modos de trabalho pedagógico que promovam, para além da construção de conhecimento teórico, o desenvolvimento de competências que favoreçam o agir e o interagir em contexto profissional. Trata-se de reconhecer que a formação nas universidades não visa simplesmente equipar as pessoas com um perfil profissional padrão, exigindo "[...] contemplar o desenvolvimento pessoal, articulado ao desenvolvimento de conhecimentos e competências específicas, e possibilitar uma visão mais ampla do mercado de trabalho a fim de criar condições para nesse se agir com maior autonomia". (Leite & Ramos, 2012LEITE, C.; RAMOS, K. Formação para a docência universitária: uma reflexão sobre o desafio de humanizar a cultura científica., Revista Portuguesa de Educação v. 25, n. 1, p. 7-27, 2012., p. 13).

A esse propósito é importante recordar que, como alerta Young (2010YOUNG, M. Alternative educational futures for a knowledge society. European Educational Research Journal, v. 9, n. 1, p. 1-12, 2010.), é necessário considerar articuladamente conteúdos, conceitos e competências, evitando duas tendências contrastantes que o autor identifica como negativas: ou se coloca a enfâse em currículos escolares desadequados por serem baseados em conteúdos (nos quais o conhecimento é tratado como dados e informação a acumular) ou se privilegia currículos focados no desenvolvimento de competências desligadas de conteúdos e conceitos. Adicionalmente, considerar a aprendizagem profissional como um processo que remete para o devir e não tanto para o ter(determinados conhecimentos e competências por exemplo) ou ser(comportar-se segundo este ou aquele modelo) (Biesta, 2010BIESTA, G. Good education in an age of measurement: ethics, politics, democracy Boulder-London: Paradigm Publishers, 2010.; Jarvis, 2009JARVIS, P. Learning to be a person in society London and New York: Routledge, 2009.), significa que do ponto de vista educativo (neste caso no plano da pedagogia universitária) é importante assegurar possibilidades para expor os aprendentes a outros e à diferença expandindo as experiências e possibilidades de cada sujeito e permitindo a emergência das suas especificidades. (Biesta, 2010).

Globalmente, procura-se destacar que a pedagogia universitária tem um lugar circunscrito no quadro dos processos de aprendizagem profissional protagonizados pelos seus estudantes e diplomados. Porém, compreender qual é esse lugar revela-se da maior importância, não para melhor ajustar o que é aprendido ao que é requerido no mercado de trabalho, mas para potenciar a aprendizagem nas universidades em articulação com os outros espaços e tempos nos quais ela também se desenrola. As características de um ciclo de estudos no ensino superior - como sejam o tipo de aulas, os trabalhos de grupo, a participação em projetos de pesquisa, os estágios, a aprendizagem baseada em projetos ou problemas, os trabalhos escritos, as apresentações orais pelos estudantes - terão poucos efeitos nas oportunidades de obter um emprego, mas a consideração de vários estudos sobre inserção profissional revela que parecem ter efeitos significativos nos modos como os graduados desempenham a sua profissão. (ALVES, 2010bALVES, M.; CABRITO, B.; LOPES, M. C.; MARTINS, A.; PIRES, A. L. Universidade e formação ao longo da vida. Caparica: Edições UIED, 2010.).

Conclusão: por uma perspetiva educativa sobre a pedagogia universitária

Neste artigo, argumenta-se que importa manter sob escrutínio ideias que vêm tendo cada vez mais ampla difusão e aceitação, segundo as quais a principal finalidade das universidades é formar profissionais, devendo os estudantes deste nível de ensino ser entendidos como compradores de um serviço educativo visando, essencialmente, uma inserção mais facilitada no mercado de trabalho. Assinalou-se que este tipo de inquietações não é novo no contexto do ensino superior, visto que a universidade teve sempre subjacente, ao longo dos séculos, preocupações com a quantidade e a qualidade no plano da formação dos profissionais.

No entanto, se essas preocupações tendem hoje a ser hegemónicas e a condicionar quer a regulação estatal das instituições de ensino superior, quer decisões sobre os respectivos modos de funcionamento e modelos de organização curricular e pedagógica, importa interrogar, como também sugerem Boden e Nedeva (2010BODEN, R.; NEDEVA, M. Employing discourse: universities and graduate employability. Journal of Education Policy, v. 25, n. 1, p. 37-54, 2010.), que evidências existem de que as universidades sejam as únicas (ou mesmo as principais) responsáveis pela inserção profissional dos seus diplomados. No que respeita ao acesso ao emprego, a análise de várias pesquisas demonstra "[...] que não existe linearidade nas articulações entre diploma de ensino superior e posição no mercado de trabalho, assim como se tem ilustrado a multiplicidade de fatores e a complexidade dos contextos que condicionam essas articulações". (Alves, 2010bALVES, M. G. A inserção profissional de graduados em Portugal: notas sobre um campo de investigação em construção. In: MARQUES, A. P.; ALVES, M. G.Inserção profissional de graduados em Portugal: (re)configurações teóricas e empíricas. Braga: Edições Húmus, 2010b. p. 31-50., p. 45). Relativamente ao desempenho profissional dos diplomados, note-se, como explicitámos na secção anterior deste texto, que ele depende das aprendizagens que realizam nas universidades, mas também noutros espaços e tempos das suas vidas.

Nessas condições, urge contribuir para uma perspetiva alternativa sobre a pedagogia universitária, em que ela não seja equacionada, meramente, como um conjunto de capacidades técnicas e conhecimentos factuais que permitam ajustar a formação dos alunos às necessidades associadas à sua inserção profissional. A proposta subjacente a este texto é a de que é necessário reflectir sobre a pedagogia universitária numa perspetiva educativa, o que significa superar três equívocos, a saber: as universidades têm como principal finalidade preparar o número e tipo de profissionais necessários ao mercado de trabalho; os alunos são consumidores de um serviço educativo que visa a sua inserção profissional; os académicos são técnicos que implementam orientações relativas a modos de funcionamento e modelos de organização curricular e pedagógica.

Superar esses equívocos adoptando uma perspetiva educativa significa que se partilha da ideia de que "[...] education, be it in the form of schooling, workplace learning, vocational training or learning through life, is by its very nature a process with direction and purpose" (Biesta, 2010BIESTA, G. Good education in an age of measurement: ethics, politics, democracy Boulder-London: Paradigm Publishers, 2010., p. 2), reconhecendo-se a necessidade de refletir sobre as finalidades da formação nas universidades em abordagens que não se limitem a evidenciar opções pessoais e individuais. Noutras palavras, a reflexão sobre a pedagogia universitária não pode ser encarada como um conjunto de questões técnicas e gestionárias ou como o resultado de preferências pessoais, nem pode ocultar o debate crucial sobre as intencionalidades subjacentes a qualquer acto, prática ou sistema educativo. (Vieira, 2009VIEIRA, F. Prefácio. In: VIEIRA, F. (Org.). Transformar a pedagogia na universidade: narrativas da prática. Santo Tirso: De Facto, 2009. p. 9-16.; Biesta, 2010).

Com base nesse pressuposto, argumenta-se que é educacionalmente desejável (Biesta, 2010BIESTA, G. Good education in an age of measurement: ethics, politics, democracy Boulder-London: Paradigm Publishers, 2010.) equacionar as finalidades da pedagogia universitária não como mera resposta a um conjunto de requisitos decorrentes das dinâmicas do mercado de trabalho, mas sim como um contributo para que os graduados possam desempenhar uma profissão, apreciando alternativas ao seu agir profissional com consciência das implicações éticas e sociais das suas atividades.

De facto, julga-se inadequado avaliar a formação nas universidades predominantemente numa lógica de subjugação às necessidades profissionais, embora seja imprescindível ter estas em consideração na análise dos processos através dos quais os indivíduos aprendem a desempenhar uma profissão. E isto porque, nas palavras de Lima (2008LIMA, L. A educação de adultos em Portugal (1974-2004): entre as lógicas da educação popular e da gestão de recursos humanos. In: CANÁRIO, R.; CABRITO, B. (Orgs.). Educação e formação de adultos: mutações e convergências., Lisboa: Educa, 2008. p. 31-60.),

[...] a educação é realmente indispensável ao desenvolvimento social, e à modernização económica [...]. [Mas] uma educação aprisionada e domesticada por objetivos meramente instrumentais, ou por interesses particulares, deixa simplesmente de o ser, em termos de educação crítica, para a liberdade e democracia. (Lima, 2008LIMA, L. A educação de adultos em Portugal (1974-2004): entre as lógicas da educação popular e da gestão de recursos humanos. In: CANÁRIO, R.; CABRITO, B. (Orgs.). Educação e formação de adultos: mutações e convergências., Lisboa: Educa, 2008. p. 31-60., p. 56).

A universidade deve favorecer a aprendizagem profissional, ainda que não seja o único lugar onde essa mesma aprendizagem se desenrola, mas importa também que neste subsistema de ensino se fomente a reflexão sobre formas alternativas de ação e de organização profissional e sobre as desigualdades e injustiças existentes nos ambientes de trabalho. Noutros termos, embora não se pretenda defender neste texto que as universidades se devam organizar numa estratégia em que se assumem como torres de marfim, ou seja, ignorando as tendências evolutivas da economia e dos mercados de trabalho, importa esclarecer que se argumenta que estes aspetos não podem ser os referentes preponderantes para equacionar modos de funcionamento e organização pedagógica neste nível de ensino.

Porém, considera-se que uma das tensões latentes nas universidades contemporâneas corresponde, precisamente, ao contraponto entre, por um lado, a subjugação a lógicas do mercado de trabalho e, por outro lado, uma "[...] pedagogia emancipatória, assente numa articulação dinâmica entre ser, conhecer e agir". (Vieira, 2009VIEIRA, F. Prefácio. In: VIEIRA, F. (Org.). Transformar a pedagogia na universidade: narrativas da prática. Santo Tirso: De Facto, 2009. p. 9-16., p. 9). Esta última opção pedagógica parece-nos convergente com o desafio contemporâneo de fazer da universidade uma comunidade de aprendizagem aberta à mudança, capaz de estimular a conscientização e de se constituir como um espaço de construção de conhecimento que é utilizado como um bem público, em vez de ser entendido como uma vantagem competitiva. (Teodoro & Guilherme, 2014TEODORO, A.; GUILHERME, M. Conclusion. In:; TEODORO, A. GUILHERME, M. (Orgs.). European and Latin America higher education between mirrors: Conceptual frameworks and policies of equity and social cohesion. Rotterdam/Boston/Taipai: Sense Publishers, 2014. p. 213-215.). Trata-se, afinal, de sublinhar o valor da "[...] educação humanista com vista ao desenvolvimento humano e social da generalidade dos cidadãos". (Lima, 2008LIMA, L. A educação de adultos em Portugal (1974-2004): entre as lógicas da educação popular e da gestão de recursos humanos. In: CANÁRIO, R.; CABRITO, B. (Orgs.). Educação e formação de adultos: mutações e convergências., Lisboa: Educa, 2008. p. 31-60., p. 45), argumentando pela necessidade de ultrapassar a visão do estudante como consumidor, de modo a veicular a importância do ensino superior como um espaço de diálogo, análise e interpretação crítica. (Giroux, 2009GIROUX, H. Democracy's nemesis: the rise of the Corporate University. Cultura Studies-Critical Methodologies, v. 9, n. 5, p. 669-695, 2009.).

Afinal, a pedagogia universitária preenche um lugar que se estende para além dos alunos que frequentam essas instituições, no sentido em que é desejável que as universidades contribuam para informar e envolver a sociedade civil, promovendo o pensamento crítico sobre modalidades e dinâmicas de organização social e de cidadania. (Boden & Nedeva, 2010BODEN, R.; NEDEVA, M. Employing discourse: universities and graduate employability. Journal of Education Policy, v. 25, n. 1, p. 37-54, 2010.). Como refere Giroux (2009GIROUX, H. Democracy's nemesis: the rise of the Corporate University. Cultura Studies-Critical Methodologies, v. 9, n. 5, p. 669-695, 2009.), trata-se de favorecer modelos e práticas pedagógicas que facilitem o diálogo e o questionamento, a identificação de novas relações globais e o pensamento crítico que possibilite reforçar os valores e as práticas democráticas.

Defender essa visão alternativa encerra profundas implicações para o papel dos professores de ensino superior e da pedagogia universitária, designadamente porque se abandona um registo de tecnicidade e de correspondência entre formação e trabalho. Em alternativa, privilegia-se a imprevisibilidade dos processos de ensino e aprendizagem e a sua constante reformulação, com vista a promover o desenvolvimento dos sujeitos e a propiciar condições para desenvolver o seu pensamento e ação críticos nos locais de trabalho e na sociedade em geral.

A possibilidade efetiva de reforçar essa visão alternativa articula-se, estreitamente, com as práticas de formação dos docentes das universidades. Neste domínio, sabemos que tradicionalmente, e em vários países, a quase totalidade dos professores deste nível de escolaridade não teve qualquer formação docente inicial e que, em muitos casos, eles se mantêm afastados da formação pedagógica ao longo do seu percurso profissional, mas considera-se necessário alterar essa situação. (Cunha, 2010CUNHA, M. I. Impasses contemporâneos para a pedagogia universitária no Brasil: implicações para os currículos e a prática pedagógica. In: LEITE, C. (Org.). Sentidos da pedagogia no ensino superior. Porto: Legis Editora, 2010. p. 63-74.; Leite & Ramos, 2012LEITE, C.; RAMOS, K. Formação para a docência universitária: uma reflexão sobre o desafio de humanizar a cultura científica., Revista Portuguesa de Educação v. 25, n. 1, p. 7-27, 2012.). É que promover uma pedagogia universitária não subordinada à lógica das necessidades do mercado de trabalho dos seus diplomados exige o desenvolvimento de espaços e tempos de formação pedagógica de docentes que permitam que os académicos avaliem as possibilidades de defender a universidade como um bem público e democrático, bem como considerem preocupações e valores relacionados com a igualdade e a justiça e com uma visão alternativa sobre as finalidades do ensino superior e sobre o seu papel na sociedade. (Giroux, 2009GIROUX, H. Democracy's nemesis: the rise of the Corporate University. Cultura Studies-Critical Methodologies, v. 9, n. 5, p. 669-695, 2009.).

A ação profissional dos docentes universitários, tal como a de qualquer outro profissional em educação, não tem um cariz tecnológico, exigindo a produção de juízos normativos sobre o que é educacionalmente desejável. Importa evitar uma visão tecnicista do ensino e da aprendizagem, reconstruindo a profissionalidade no meio académico e configurando "[...] o estudo e avanço da pedagogia [...] como uma estratégia de interrogação e transformação das culturas pedagógicas dominantes, abrindo espaços de problematização das questões da qualidade do ensino e da aprendizagem". (Vieira, 2009VIEIRA, F. Prefácio. In: VIEIRA, F. (Org.). Transformar a pedagogia na universidade: narrativas da prática. Santo Tirso: De Facto, 2009. p. 9-16., p. 10).

Referências

  • ALVES, M. G. Aprendizagem ao longo da vida: entre a novidade e a reprodução de velhas desigualdades. Revista Portuguesa de Educação, v. 23, n. 1, p. 7-28, 2010a.
  • ALVES, M. G. A inserção profissional de graduados em Portugal: notas sobre um campo de investigação em construção. In: MARQUES, A. P.; ALVES, M. G.Inserção profissional de graduados em Portugal: (re)configurações teóricas e empíricas. Braga: Edições Húmus, 2010b. p. 31-50.
  • ALVES, M.; CABRITO, B.; LOPES, M. C.; MARTINS, A.; PIRES, A. L. Universidade e formação ao longo da vida. Caparica: Edições UIED, 2010.
  • BÉLANGER, P. Theories in adult learning and educationOpladen & Farmington Hills: Barbara Budrich Publishers, 2011.
  • BIESTA, G. Good education in an age of measurement: ethics, politics, democracy Boulder-London: Paradigm Publishers, 2010.
  • BODEN, R.; NEDEVA, M. Employing discourse: universities and graduate employability. Journal of Education Policy, v. 25, n. 1, p. 37-54, 2010.
  • CANÁRIO, R. Educação de adultos: um campo e uma problemática Lisboa: Educa, 1999.
  • CHARLE, C.; VERGER, J. Histoire des universités. Paris: Presses Universitaires de France (Que Sais-Je?), 1994.
  • COMMISSION/EACEA/EURYDICE, E. Modernisation of Higher Education in Europe: access, retention and employability 2014 Luxembourg: Publications Office of the European Union, 2014.
  • CUNHA, M. I. Impasses contemporâneos para a pedagogia universitária no Brasil: implicações para os currículos e a prática pedagógica. In: LEITE, C. (Org.). Sentidos da pedagogia no ensino superior Porto: Legis Editora, 2010. p. 63-74.
  • GIROUX, H. Democracy's nemesis: the rise of the Corporate University. Cultura Studies-Critical Methodologies, v. 9, n. 5, p. 669-695, 2009.
  • GUILE, D. O que distingue a economia do conhecimento? Implicações para a educação. Cadernos de Pesquisa, v. 38, n. 135, p. 612-636, 2008.
  • HANSON, C. Curriculum, technology, and Higher Education. Thought & Action - The NEA Higher Education Journal, p. 71-79, 2008.
  • ILERIS, K. Transfer of learning in the learning society: how can the barriers between different learning spaces be surmounted, an how can the gap betweeb learning inside and outside schools be bridged?. International Journal of Lifelong Education, v. 28, n. 2, p. 137-148, 2009.
  • JARVIS, P. Learning to be a person in society London and New York: Routledge, 2009.
  • KNIGHT, P.; YORKE, M. Learning, curriculum and employability in higher education. London and New York: Routledge Falmer , 2004.
  • LEITE, C.; RAMOS, K. Formação para a docência universitária: uma reflexão sobre o desafio de humanizar a cultura científica., Revista Portuguesa de Educação v. 25, n. 1, p. 7-27, 2012.
  • LIMA, L. A educação de adultos em Portugal (1974-2004): entre as lógicas da educação popular e da gestão de recursos humanos. In: CANÁRIO, R.; CABRITO, B. (Orgs.). Educação e formação de adultos: mutações e convergências., Lisboa: Educa, 2008. p. 31-60.
  • NÓVOA, A. Educação 2021: para uma história do futuro. Revista Iberoamericana de Educación, n. 49, p. 1-18, 2009.
  • TEODORO, A.; GUILHERME, M. Conclusion. In:; TEODORO, A. GUILHERME, M. (Orgs.). European and Latin America higher education between mirrors: Conceptual frameworks and policies of equity and social cohesion. Rotterdam/Boston/Taipai: Sense Publishers, 2014. p. 213-215.
  • VIEIRA, F. Prefácio. In: VIEIRA, F. (Org.). Transformar a pedagogia na universidade: narrativas da prática. Santo Tirso: De Facto, 2009. p. 9-16.
  • YOUNG, M. Alternative educational futures for a knowledge society. European Educational Research Journal, v. 9, n. 1, p. 1-12, 2010.
  • 1
    Neste artigo, a proposta é refletir sobre o caso específico das universidades. Não obstante, o ensino superior em Portugal é composto por universidades e institutos politécnicos. Estes últimos foram criados com a intenção de que estabelecessem uma articulação mais estreita com o mundo do trabalho e com a sociedade envolvente do que a que é característica das universidades.
  • 2
    A título ilustrativo pode consultar-se informação sobre a reforma curricular implementada em 2012/13 na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa: <http://www.fct.unl.pt/ensino/perfil-curricular-fct>, último acesso em 21 ago. 2015.
  • 3
    O termo empregabilidade é habitualmente utilizado nos discursos públicos e políticos como sinónimo de taxa de emprego, embora o mesmo termo também possa remeter a abordagens centradas nas competências adequadas para o desempenho profissional. Sobre este conceito pode consultar-se Knight e Yorke (2004).
  • 4
    As decisões sobre fixação de número de vagas em Portugal podem ser consultadas em: <http://www.dges.mctes.pt/DGES/pt/Instituicoes/InstrucaoProcessos/FixacaoVagas/>, último acesso em 21 ago. 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2015
  • Aceito
    17 Ago 2015
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: educar@ufpr.br