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Leitura e ortografia: além dos primeiros passos

NUNES, Terezinha; BRYANT, Peter. Tradução de: NICKEL, Vivian. Leitura e ortografia. : além dos primeiros passos. Porto Alegre: Penso, 2014

A temática que engloba o processo de alfabetização é complexa e desafiadora aos que atuam diretamente com os aprendizes e àqueles que investigam a respeito. No sentido de dar respostas a inúmeros questionamentos feitos por professores e psicólogos, os pesquisadores Terezinha Nunes e Peter Bryant reuniram um importante referencial no livro intitulado Leitura e ortografia: além dos primeiros passos, publicado originalmente em inglês em 2009, pela Wiley-Blackwell e traduzido para o português por Viviane Neckel, em 2014, sendo publicado pela Editora Penso. Esta obra reúne o conhecimento elaborado pelos autores e seus colaboradores após vinte anos de profícuas investigações e reflexões críticas a respeito da aquisição e do aperfeiçoamento da leitura e da escrita.

A edição da obra aqui resenhada é produto de uma vasta revisão de literatura realizada pelos autores supracitados, com o objetivo de apresentar um arcabouço teórico sobre como as habilidades de leitura e escrita das crianças são desenvolvidas, indo além das fases iniciais de sua aquisição. Além disso, a obra aponta as lacunas na literatura, indicando que questões ainda precisam ser respondidas pelos estudiosos, abrindo espaço para pesquisas futuras.

Os resultados dos estudos empíricos apresentados e discutidos pelos autores evidenciam a forma como as crianças se desenvolvem em relação à leitura e como o conhecimento da ortografia pode influenciar tanto na compreensão leitora quanto na produção escrita por meio de sua aprendizagem gerativa. Tais evidências demonstram, ainda, como as crianças usam tanto experiências informais como instruções formais para elaborar as próprias regras de ortografia. Dentre as implicações educacionais apontadas, é ressaltada a necessidade de se proporcionar práticas que se voltem explicitamente para o ensino dos morfemas.

O livro é formado por oito capítulos e apresenta um panorama atual, revelando os principais resultados de pesquisas realizadas no Brasil e em países de língua inglesa.

No primeiro capítulo, os autores apresentam uma introdução do tema que será abordado no livro, focalizando a leitura e a escrita como um processo gerativo. Duas abordagens acerca da relação entre língua oral e língua escrita são: (i) a concepção notacional, que trata a língua como um sistema de signos e relaciona diretamente, de modo dependente, as habilidades de leitura e escrita à língua oral; e (ii) a concepção que relaciona língua escrita e língua oral com um sistema abstrato linguístico. Os autores indicam que o foco do livro se concentra para além da pesquisa sobre a aprendizagem das correspondências simples entre letras e sons, e que para ler de modo fluente e escrever ortograficamente, este domínio, ainda que necessário, não seria suficiente.

Percebe-se, a partir da leitura do capítulo introdutório, que apesar de apresentar uma dicotomia conceitual na concepção que se tem a respeito de como ocorre a alfabetização, os autores mostram que ambas as abordagens devem ser consideradas e que para aperfeiçoar a compreensão que o aprendiz tem sobre a linguagem escrita é necessário investir em novas investigações que expliquem determinadas dificuldades na leitura e na escrita e que esclareçam o impacto na aprendizagem quando se aborda a instrução de regras em prol do aperfeiçoamento da leitura e da escrita.

Dando sequência às informações pertinentes ao desenvolvimento ortográfico e aperfeiçoamento da leitura, Terezinha Nunes e Peter Bryant apresentam como ocorre a transição das relações entre sons e letras para as relações entre grafemas e fonemas. Neste capítulo os autores comentam acerca de alguns desafios enfrentados pelas crianças após compreenderem o princípio alfabético. Os dígrafos são destacados como um dos grandes vilões neste período de aperfeiçoamento da leitura e da escrita. São eles que fornecem representações ortográficas para os sons consonantais que não são representados por uma única letra.

No caso do inglês - língua menos transparente - sua complexidade demanda intervenções baseadas no uso de regras e os estudos apresentados no segundo capítulo mostram o quanto são valiosas as intervenções pedagógicas que objetivam o ensino destas regras para que as crianças possam avançar no uso gerativo delas e melhorar sua capacidade de leitura e de escrita. Já no português, a escassez de estudos a respeito de como as crianças que usam a hipótese alfabética interpretam os dígrafos provoca o leitor a indagar sobre as lacunas que ainda se observam neste campo temático. De modo geral, os autores indicam a importância de se abordar o conceito de grafema, pois será este entendimento que auxiliará a extrapolar a noção de correspondência unívoca entre letras e sons, a qual a impede de melhorar na leitura e na escrita. O capítulo mostra ao leitor que o uso de regras condicionais pode representar um obstáculo para as crianças e que há a necessidade de se ampliar a discussão acerca de quais implicações e impactos que este tipo de trabalho poderá ter no aprendizado da leitura e da escrita.

Prosseguindo à exposição das ideias, os autores abrem o terceiro capítulo mostrando a relação entre a ortografia e os sons vocálicos (grafemas simples e complexos). Eles propõem uma reflexão sobre o campo investigativo desenvolvido sobre o inglês, o qual pode subsidiar concepções metodológicas para uma abordagem no português. No inglês há 20 sons vocálicos que podem ser representados por diferentes letras e no português existem 12. Essa discrepância entre número de sons vocálicos e quantidade de letras que podem ser utilizadas para representá-los é apresentada como mais um aspecto que pode impedir o avanço da aprendizagem da leitura e da escrita.

Os resultados obtidos nos estudos realizados na língua inglesa demonstram que, em situações de escrita inicial, as crianças se utilizam de uma letra apenas para representar os sons vocálicos e que isso as remete ao sucesso em situações em que essa relação ocorre de fato. No entanto, o aprendizado sobre dígrafos é mais complexo e demanda o auxílio da memória e da utilização de regras formais. Os autores ressaltam a importância do aprendizado dos dígrafos na ortografia em inglês como um passo decisivo no processo de alfabetização, pois com esta compreensão a língua escrita será analisada de maneira flexível, contextualizando as letras no interior da palavra e favorecendo o aperfeiçoamento das habilidades de leitura e escrita.

Ao apresentar estudos conduzidos no português, os autores afirmam que a diferença entre quantidade de sons vocálicos e letras que os representa não se mostra contundente na ortografia do português brasileiro, com exceção das palavras acentuadas nas vogais /ê/ e /é/ e /ô/ e /ó/. Além disso, outro problema poderia ser reconhecido nas vogais nasalizadas, porém isso parece simples, visto que as regras se apresentam como sendo de forma (por exemplo: em palavras como campo e ponto o "m" e o "n" funcionam como sinal de nasalidade da vogal anterior, equivalendo a um TIL) e não de função. Este capítulo evidencia que no português, apesar das dificuldades encontradas após a compreensão do princípio alfabético, a criança pode ser ensinada a respeito de regras contextuais as quais contribuirão para o avanço na aprendizagem da leitura e da escrita.

No capítulo quatro, os autores apresentam pesquisas a respeito de como as crianças aprendem regras fonológicas condicionais e de ações efetivas de seu ensino. Desenvolver a ortografia, pautando-se na compreensão de regras fonológicas condicionais, demanda uma noção complexa. O capítulo inicia-se com um grande dilema enfrentado por professores e pesquisadores: o fato da pesquisa acadêmica caminhar atrás da prática instaurada nas escolas, visto que o ensino da leitura e da escrita já ocorre muito antes das teorias que explicitam e respaldam como as crianças desenvolvem tais habilidades e sobre a conexão entre leitura e ortografia.

Os estudos mencionados destacam três níveis no processo de ensino-aprendizagem da leitura e escrita. Assim, tem-se primeiramente o foco apenas na natureza alfabética do sistema de escrita; em segundo lugar, destaca-se a necessidade do conhecimento e uso de regras contextuais (por exemplo, o uso do RR, GU, M/N antes de consoante, etc.); no terceiro nível são focalizados os aspectos morfológicos.

O capítulo trata, ainda, de algumas teorias de estágios do desenvolvimento cognitivo, o que leva o leitor a compreender o aprendizado da leitura e da escrita enquanto mudança de conhecimento que se dá qualitativa e quantitativamente de modo progressivo. Este progresso ocorre desde as primeiras relações que a criança estabelece entre letras e sons, dígrafos, regras de contexto, pelo uso de tipos específicos de regularidade. Os estudos desenvolvidos pelos autores e apresentados nesta obra evidenciam que, no inglês, a instrução de regras pautadas no mesmo princípio favorece as crianças a desenvolver o conceito mais abstrato de regras e isso se evidencia de modo gerativo, na medida em que os resultados se observam tanto em palavras quanto em pseudopalavras.

Assim, como destacam os autores, fica evidente que há um espaço produtivo para novas investigações e que há muito por se desvendar sobre esta temática no português brasileiro, visto que este tipo de pesquisa não foi encontrado pelos autores no momento da publicação do livro.

No capítulo cinco, a estrutura morfológica das palavras é discutida com base na apresentação de um estudo pormenorizado de alguns morfemas, visando conhecer mais aprofundadamente a natureza destes, suas funções e particularidades das relações que estabelecem no interior dos vocábulos, sempre por meio de análises sobre a estrutura morfológica das palavras fundadas na discussão da relação ortografia-morfemas.

Analisando como as crianças lidam com os princípios fonográfico e semiográfico no início do processo de leitura e escrita, observou-se que as crianças tendiam a dar mais atenção às relações grafema-fonema do que às regras morfológicas que permeiam a ortografia. Isso reforça que neste momento da escolaridade as regras fonográficas ainda são consideradas mais relevantes para o atendimento de suas necessidades imediatas de leitura e escrita, razão que justifica o fato de muitas crianças em processo de alfabetização não escreverem corretamente palavras que envolvem regras ortográficas.

Na reflexão proposta pelos autores, procura-se mostrar que ampliar a gama de conhecimentos sobre a estrutura morfológica traz benefícios para a leitura e a escrita. Isso ocorre pelo fato de os morfemas serem escritos da mesma forma em diferentes palavras, permitindo ao leitor reconhecer uma palavra nova por meio da inferência, a partir da observação dos significados subjacentes aos elementos mórficos - sejam eles radicais, afixos ou desinências - preservados na escrita.

Com esse estudo, os autores comprovam que conhecimentos típicos da consciência morfológica abrem caminhos para possibilidades gráficas e de compreensão das palavras, o que contribui não só para o reconhecimento de palavras, uma vez que a escrita de muitas delas é construída de padrões morfológicos, indo além das relações grafema-fonema, mas também para a proficiência em leitura.

No capítulo seis, a partir da análise de estudos desenvolvidos na Inglaterra, que investigaram os progressos no desempenho de estudantes na utilização de morfemas na ortografia, procurou-se mostrar a relevância de se trabalhar com a morfologia no processo de ensino da leitura e da escrita. Destaca-se que, nessas pesquisas, as capacidades de cada aprendiz, bem como a natureza da relação entre a consciência morfológica e a aprendizagem, foram levadas em consideração. Além disso, foram esclarecidas questões relativas à influência das diferenças individuais no uso dos morfemas para gerar palavras novas. As possibilidades gerativas são intrínsecas aos morfemas, uma vez que eles se constituem fragmentos mínimos capazes de exprimir sentido ou significado a uma palavra. Assim, diante de vocábulos com os quais o aprendiz ainda não tenha contatado, mas que sejam compostos por morfemas já conhecidos, há considerável probabilidade de inferir o significado destes.

Nesse capítulo também se discute a necessidade de se instituir nos programas de ensino, de modo especial da Inglaterra, a discussão e a avaliação da consciência morfológica. Isso porque, neste país, conforme os autores, esta habilidade não é suficientemente explicitada no processo de ensino. Assim, as crianças acabam tendo que sozinhas, sem qualquer mediação, desenvolver habilidades de percepção das relações morfológicas presentes no interior das palavras.

No capítulo sete, com base em estudos cujo objetivo foi averiguar o desenvolvimento da referida consciência via ensino sistemático, apresenta-se um panorama dos reflexos desse ensino no desempenho em leitura e escrita.

Relacionando esses estudos com o que foi discutido no capítulo anterior, consegue-se coletar argumentos suficientes para comprovar e reafirmar que o desenvolvimento de atividades de consciência morfológica na alfabetização contribui para o bom desempenho no reconhecimento de palavras e na realização de conexões semânticas que acabam por trazer reflexos positivos diretamente para a proficiência em leitura. Na análise, foram considerados estudos de intervenção tanto com alunos que não apresentam dificuldades específicas em leitura e escrita quanto com alunos que demonstram algum atraso. Os resultados permitiram concluir que, para os primeiros, as intervenções repercutiram mais em prol da leitura das palavras e sobre a ortografia; já para o segundo grupo as intervenções fonológicas tiveram mais efeito sobre a ortografia; em ambos as intervenções fonológicas repercutiram sobre a ortografia. Esses dados corroboram a ideia de que seria produtivo, no processo de alfabetização, estabelecer a instrução morfológica como aspecto básico, pois tanto leitores que apresentam progresso normal quanto os com dificuldades poderiam se beneficiar.

Nesse capítulo, ainda são discutidos estudos desenvolvidos no sentido de promover a consciência morfológica com dois propósitos: o de avaliar se os professores se interessavam pelas atividades elaboradas e se essas, na prática, surtiam resultados positivos, assim como o de verificar a forma de agir de professores frente ao controle do ensino de atividades morfológicas.

Constatou-se, por meio desta iniciativa, que as crianças que participaram de grupos com intervenção tiveram mais progresso do que as crianças privadas disso, em todos os aspectos mensurados, destacando que as crianças que participaram da intervenção manifestaram grande motivação. Esse resultado reitera os argumentos anteriormente citados sobre a relevância do ensino da morfologia nas classes de alfabetização.

No capítulo oito, faz-se uma reflexão contextualizando os aspectos discutidos ao longo da obra, pontuando argumentos que tornam incontestável a importância de se desenvolver um trabalho efetivo com a morfologia após os "primeiros passos" para a aprendizagem da leitura e da escrita, que são marcados pela consolidação da escrita alfabética. De acordo com os autores, tal consolidação se configura em forte indício de que o ensino da leitura e da escrita deve ir além das relações grafema-fonema, pelo fato de a escrita ser um sistema que ultrapassa os liames desse pressuposto.

Nesse sentido, os autores propõem a ampliação de um debate científico, abordando-o de modo mais detalhado, quando ele se referir a questões que envolvem a morfologia e a alfabetização.

A partir das reflexões presentes nas páginas do livro, é possível reconhecer linhas de interpretação referentes ao processo de aperfeiçoamento da leitura e da escrita, as quais instigam o leitor a rever antigos enigmas da aprendizagem e a considerá-los dentro de uma nova perspectiva teórica. Com base nisso, os autores sugerem que o fato de a escola dar atenção especial às representações dos sons certamente trará reflexos positivos na aprendizagem e no desenvolvimento da leitura e da escrita devido à variedade de possibilidades que os elementos morfológicos apresentam. Isso porque grande parte dos sons é representada por mais de uma letra e a marcação da sílaba tônica varia nas palavras primitivas e derivadas, entre outros aspectos. Assim, a aprendizagem de regras fonográficas de contexto, bem como as de representação dos morfemas, constitui passo indispensável no estudo da língua escrita.

Concluindo, afirma-se que é incontestável a contribuição da obra para estudantes e pesquisadores que se ocupam do processo de aprendizagem e aperfeiçoamento da leitura e da escrita.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2016
  • Aceito
    30 Ago 2016
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