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“Terminologia Musical” e “Origem do Fado”: cultura política e identidade nacional nos estudos musicológicos de Mário de Andrade, publicados na revista Illustração Musical (1930-1931)

Musical Terminology and Origin of Fado: political culture and national identity in the musicological studies of Mário de Andrade, published in the Illustração Musical magazine (1930-1931)

RESUMO

O horizonte do presente artigo é as questões do Modernismo e sua vinculação com a cultura política, pela perspectiva da identidade nacional, nos estudos musicológicos “Terminologia Musical” e “Origem do Fado”, escritos por Mário de Andrade e publicados na revista Illustração Musical. Esse periódico é a principal fonte documental mobilizada neste trabalho. A revista, dirigida pelo maestro Oscar Lorenzo Fernândez, circulou entre músicos, educadores, frequentadores de teatros, salas de concerto, conservatórios e escolas de música do Brasil entre 1930 e 1931. A discussão aqui proposta indica que Andrade ressaltava a necessidade de uma terminologia musical originalmente nacional e reivindicava a brasilidade na origem do fado, porém, sem desvalorizar a produção e a aceitação portuguesas desse estilo musical. Percebe-se que a construção de uma terminologia musical nacional significava uma possível conexão do Movimento Modernista com a cultura política iniciada no Governo Vargas e, ao mesmo tempo, uma continuidade que contrapunha as ideias dos críticos que condenavam o Modernismo, considerando-o apenas um evento (Semana de Arte Moderna, que aconteceu na cidade de São Paulo, em fevereiro de 1922), com data específica e público glamoroso. Observa-se, também, que Andrade entendia o “achado da origem” do fado como parte do processo de consolidação da cultura nacionalista brasileira, capaz de captar recursos do Estado, visando à ampliação da arte nacionalista em expansão naquele período.

Palavras-chave:
Mário de Andrade; Cultura política; Identidade nacional; Terminologia.

ABSTRACT

The horizon of this article is the questions about modernism and their relations with political culture, from the perspective of a national identity, in the musicological studies Musical Terminology and the Origin of Fado (Terminologia Musical e a Origem do Fado), both written by Mário de Andrade and published in Illustração Musical magazine. The periodic is the main documented source used in the present study. The magazine, managed by Maestro Oscar Lorenzo Fernândez, circulated among musicians, educators, theatergoers, concert halls, conservatories and music schools in Brazil, through the years 1930 and 1931. The discussion proposed here indicates that Andrade emphasized the necessity of a nationally original musical terminology and tried to rescue the Brazilian origin of Fado, but without devaluing the Portuguese production and acceptance of the musical style. It is perceived that the construction of a national musical terminology hints at possible relations between the modernist movement and the political culture that had origin in Vargas Government. In addition, at the same time, this construction meant a continuity that countered the opinions of the critics who detracted the modernism, considering it just an event, with specific date and glamorous public (that is, the Modern Art Week, which happened at the city of São Paulo, in February 1922). It is also understood that Mário de Andrade proposed the discovery of the origin of fado as part of the process of consolidation of Brazilian nationalist culture consolidation, which, able to gather resources from the Government, aimed to expand the nationalist Art growing in that period.

Keywords:
Mário de Andrade; Political culture; National identity; Musical terminology; Fado.

Introdução

O presente artigo tem como horizonte as relações da cultura política com os aspectos do Modernismo em dois estudos musicológicos de Mário de Andrade, na perspectiva da construção da identidade nacional legitimamente brasileira, por meio do afastamento da herança lusitana. Ambas as investigações foram publicadas na revista Illustração Musical. O primeiro trabalho do modernista, tratado neste artigo, é intitulado “Terminologia Musical”, veiculado no nº 4, do referido periódico, em março de 1930. O segundo texto, em baila, o artista chamou de “Origem do Fado”, o qual foi publicado na condição de primeiro artigo, no primeiro número da revista, ou seja, estreou o impresso artístico, pedagógico e científico acerca do tema.

Acredito que por meio do artigo “Origem do Fado”, escrito por Mário de Andrade, o diretor da revista Illustração Musical - o maestro e também modernista Oscar Lorenzo Fernândez - buscava apresentar aos leitores o perfil artístico do periódico e sua consonância com a política que se instaurava no Brasil, no primeiro ano do longo governo de Getúlio Vargas. Vale destacar que este impresso, além dos colaboradores do Rio de Janeiro, então capital da República, contava com articulistas de São Paulo, a exemplo de Mário de Andrade, e de outras cidades: Belo Horizonte, Manaus, Belém, Paraíba, Recife, Salvador, Curitiba, Porto Alegre e Pelotas.

Havia também a colaboração de pessoas de outros países: “Alemanha, Espanha, França, Estados Unidos, Itália e Portugal. Além de representantes do impresso musical em Buenos Aires (Argentina), Santiago (Chile), Havana (Cuba), Nova Iorque (EUA), México, Assunção (Paraguai) e Lima (Peru)” (MONTI, 2016MONTI, E. M. G. Propostas pedagógicas de Oscar Lorenzo Fernandez para o ensino da música nas escolas públicas brasileiras (1930-1931). História da Educação, Santa Maria, v. 20, n. 49, p. 227-238, ago. 2016., p. 229). Ratificando essas informações, “o Expediente do primeiro número do periódico indica que a revista estava vinculada às atividades pedagógicas e musicais dos vários Estados brasileiros e, igualmente, com contatos estabelecidos em diferentes países” (MONTI, 2016MONTI, E. M. G. Propostas pedagógicas de Oscar Lorenzo Fernandez para o ensino da música nas escolas públicas brasileiras (1930-1931). História da Educação, Santa Maria, v. 20, n. 49, p. 227-238, ago. 2016., p. 229), fomentando a cultura nacional desejada pelo poder instituído na figura de Getúlio Vargas, líder do governo provisório (1930-1934).

Estas fontes, os exemplares da revista Illustração Musical, foram consultadas no acervo do Centro de Memória da Educação Brasileira, sediado no Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro. Sobre as análises desses documentos, embasadas nas ideias de Catani (2013CATANI, D. B. A imprensa periódica pedagógica e a história dos estudos educacionais no Brasil. In: DÍAZ, J. M. H. (Org.). Prensa pedagógica y patrimonio histórico educativo. 1. ed. Salamanca: Aquilafuente, 2013. v. 1, p. 115-121.), entendo que o cruzamento entre a política e os anseios dos educadores são traduzidos em palavras e divulgados em periódicos que guardam “conhecimentos pedagógicos considerados relevantes e úteis” (CATANI, 2013CATANI, D. B. A imprensa periódica pedagógica e a história dos estudos educacionais no Brasil. In: DÍAZ, J. M. H. (Org.). Prensa pedagógica y patrimonio histórico educativo. 1. ed. Salamanca: Aquilafuente, 2013. v. 1, p. 115-121., p. 116) para a História da Educação no Brasil. Por tudo isso, a pergunta que norteia este artigo é: como os estudos musicológicos “Terminologia Musical” e “Origem do Fado”, de Mário de Andrade, publicados na revista Illustração Musical, expressam um afastamento das heranças lusitanas e uma aproximação dos ideais nacionalistas do governo vigente nos anos 30, do século XX, no Brasil?

Sobre a estrutura do texto, organizei-a em três tópicos. No primeiro, apresento questões conceituais sobre a relação do movimento modernista com as políticas de construção da brasilidade, focalizando as ideias do musicólogo e professor de piano do Conservatório Musical Dramático de São Paulo, Mário de Andrade. Segue, como segunda seção, interpretações sobre a concepção de uma legítima terminologia musical brasileira e seus envolvimentos políticos. E, como terceira e última parte, nem por isso menos importante, a questão da origem do fado como um dispositivo no processo de construção da identidade nacional, um desejo comum dos modernistas e do governo provisório.

Arte nacionalista e cultura política

Mário de Andrade estava entre os artistas que trabalhavam, nas primeiras décadas do século XX, com o intuito de expressar anseios de construção da brasilidade e da identidade nacional. Para Souza (2007SOUZA, R. L. de. Mário de Andrade e a construção da identidade nacional: impasses de um projeto. Esboços (UFSC), v. 15, p. 149-172, 2007.), no seu estudo sobre a construção da identidade nacional, a concepção andradiana sobre arte nacionalista tem como principal base a perspectiva da tradição no Modernismo. Por esse motivo, o legado do musicólogo modernista envolve a preservação da memória, já que a História era indispensável ao seu ideal e à produção artística.

Andrade, como professor de piano no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, encarou dificuldades frente aos responsáveis dos seus discentes, que ficaram receosos e perplexos com o texto intitulado “O Meu Poeta Futurista”, publicado em 1921. Como resposta, escreveu àquela comunidade educativa um artigo, no qual explica sua concepção como modernista e, ao mesmo tempo, rejeita a categorização de futurista que recebeu por meio do artigo de Oswald de Andrade (ELEUTÉRIO, 1989ELEUTÉRIO, M. de L. Oswald: itinerário de um homem sem profissão. Campinas: EdUNICAMP, 1989.). Na redarguição, o modernista destacou que a construção da brasilidade envolve a conveniência de utilizar ou resgatar o passado artisticamente. Em vista disso, considerava o ato de conservação um elemento indispensável no processo de construção da identidade.

Juntamente com Souza, entende-se que a proposta modernista, na qual Andrade foi uma figura central, teve relevância política fundamental nas primeiras décadas do século XX, “já que a criação imperativa de uma arte brasileira transcende o terreno artístico e se transforma em instrumento para construção da identidade nacional” (SOUZA, 2007SOUZA, R. L. de. Mário de Andrade e a construção da identidade nacional: impasses de um projeto. Esboços (UFSC), v. 15, p. 149-172, 2007., p. 165). Neste movimento, cabia ao artista “resgatar e materializar os elementos ainda inconscientes existentes na alma do brasileiro e dar-lhes vida, criando e dando contornos definidos ao próprio caráter brasileiro” (SOUZA, 2007SOUZA, R. L. de. Mário de Andrade e a construção da identidade nacional: impasses de um projeto. Esboços (UFSC), v. 15, p. 149-172, 2007., p. 165), protagonizando o folclórico e o seu caráter afastado da sua condição híbrida e indistinta. Vale ressaltar que, neste processo, demandava saber o que era brasileiro, como tratá-lo e compreendê-lo corretamente. Por esse motivo, o musicólogo criticou as ênfases ao exotismo, considerando-as como recursos sonoros simplistas, cópias de cantos e danças populares que tinham como objetivo apenas agradar ao público estrangeiro, sem compromisso com a identidade nacional.

Portanto, para Mário de Andrade, exige-se uma procura, um esforço do compositor em encontrar o nacional sutil, sem exotismos. Nas palavras do artista:

[...] aceitar como brasileiro só o excessivo característico, cai num exotismo que é exótico até para nós. O que faz a riqueza das principais escolas europeias é justamente um caráter nacional incontestável, mas na maioria dos casos indefinível, porém. (ANDRADE, 1962ANDRADE, M. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962., p. 27).

Vale destacar que, no seu texto “Crônica Musical”, o compositor faz considerações e críticas à apreciação pouco consciente da elite tradicional brasileira, ao que era interpretado e composto pelos músicos europeus. No artigo, ele tenta educar seus leitores sobre a necessidade de uma profunda mudança de foco, apontando a consolidação do discurso musical do país, da cultura brasileira, que ganhava força e forma no início do século XX. O texto sinaliza que o perfil autônomo da arte folclórica e da música popular agrega reputação, que, naquele momento de estruturação de um projeto rumo à nacionalização, se baseava, sobretudo, na responsabilidade do artista em buscar os aspectos da cultura agrária e rural do país.

Nessa mesma perspectiva, o músico e poeta nacionalista, que ganhou grande destaque na Semana de Arte Moderna, em 1922, deixa registrada sua preterição ao legado lusitano, ao mencionar que: “nós só seremos brasileiros no dia em que não fizermos caso de coincidir ou não com Portugal, essa espécie de passado que temos.” (ANDRADE, 1976ANDRADE, M. Os filhos da Candinha. São Paulo: Martins/INL/MEC, 1976., p. 168). Mário entendia que o Brasil precisava superar um somatório de contextos culturais desarticulados, pois se tratava de uma nação que não havia consolidado uma síntese cultural autêntica. Isso não significa que o professor de piano destoava da conjuntura histórica da tradição sonora de outros países daquele tempo. Com os estudos de Contier (2000CONTIER, A. D. Mário de Andrade e o (re)descobrimento do Brasil. Projeto História, n. 20. São Paulo: PUC-SP, 2000. p. 195-220.), é possível entender que Andrade, como um intelectual modernista, propunha uma concepção de arte culta em consonância com o contexto brasileiro dos anos 1920 e 1930 do século XX. Não negava integralmente a importância dos portugueses, porém colocava a herança lusitana no mesmo patamar da obra de Schoenberg ou de Stravinsky, ressaltando que essas sonoridades europeias “eram incompatíveis com o ‘rosto’ ou o ‘perfil sonoro’ do Brasil.” (CONTIER, 2000CONTIER, A. D. Mário de Andrade e o (re)descobrimento do Brasil. Projeto História, n. 20. São Paulo: PUC-SP, 2000. p. 195-220., p. 198).

Em vista disso, vislumbra-se que os estudos musicológicos de Mário de Andrade, publicados entre 1930 e 1931, na revista Illustração Musical, estão situados num cenário no qual a cultura musical estava permeada pelas ferramentas e pelos dispositivos composicionais oriundos da Europa, e por ideais de um projeto que comprometia a brasilidade. Essa articulação mobilizava as estruturas musicais dos colonizadores europeus com os elementos do folclore brasileiro e seguia conectando a expressão artística brasileira na arte universal. Ou seja, esta conjuntura gerava a busca por estudos e conhecimentos musicológicos oriundos de outros países para serem utilizados no contexto artístico brasileiro.

A ausência de uma consolidação da identidade brasileira mantinha abertas as portas do país à cultura musical dos colonizadores europeus, que era facilmente importada, incorporada, imitada e absorvida de maneira rasa. Em outras palavras, para Mário de Andrade, faltava aos brasileiros uma tradição que tornasse o povo mais educado e criterioso na seleção e no consumo da cultura musical. Para Souza, o artista modernista considerava “esse tal consumo”, simultaneamente voraz e superficial, e não orgânico. “Tudo era aceito, mas nada era devidamente assimilado, porque faltava ao brasileiro o fundamental: uma tradição que servisse de parâmetro para a devida avaliação e deglutição da cultura importada” (SOUZA, 2007SOUZA, R. L. de. Mário de Andrade e a construção da identidade nacional: impasses de um projeto. Esboços (UFSC), v. 15, p. 149-172, 2007., p. 154).

Sendo assim, o processo de consolidação da identidade nacional brasileira requeria também, segundo Mário de Andrade (1962ANDRADE, M. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962.), uma disputa com as influências portuguesas. O professor de piano do Conservatório Dramático Musical de São Paulo ficou engajado por décadas neste “combate” contra a música europeia, porém não deixava de reconhecer o seu valor. Contier (2000CONTIER, A. D. Mário de Andrade e o (re)descobrimento do Brasil. Projeto História, n. 20. São Paulo: PUC-SP, 2000. p. 195-220.) elucida que, para explicar esta contradição, Mário justifica a relevância estética e histórica de compositores como Bach, Mozart e Beethoven, amparando-se na ideia de que esses músicos escreveram inicialmente suas obras como nacionais e, que, somente depois, ganharam status de composições universais.

Com o estudo Políticas Culturais no Brasil: subsídios para construções de brasilidade, de Cláudia Engler Cury (2002CURY, C. E. Políticas culturais no Brasil: subsídios para a construção da brasilidade. 2002. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2002.), é possível perceber que a compreensão de identidade nacional do artista brasileiro descortinava chances de incorporação da diversidade cultural, ainda que numa perspectiva “folclorizada”. Nessa perspectiva, a autora sinaliza que Andrade percebeu que suas ideias, conectadas naquilo que se refere ao projeto de uma nação, poderiam ser acolhidas pelas políticas do governo vigente nos anos 1930 do século XX. Sendo assim, no período em que Getúlio Vargas governou o Brasil, mais especificamente na fase conhecida como Estado Novo, Andrade investiu e emplacou o seu anteprojeto de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que posteriormente se consolidou com o Decreto-lei nº 25 e que pode ser considerado como o início das políticas culturais no Brasil republicano.

Depreende-se, então, que Mário de Andrade compartilhou do projeto de construção de uma nova nação, que tentava dar conta, de alguma maneira, das diversidades culturais e, ao mesmo tempo, da unidade, criando seus próprios referenciais culturais, livrando-se das influências estéticas, que eram impositivas das vanguardas europeias, segundo a visão dos intelectuais modernistas do período.

Na Era Vargas, segundo Cury (2002CURY, C. E. O papel dos intelectuais na configuração da brasilidade e das políticas de Educação: cultura nos anos trinta do século XX. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO HISTÓRIA MEMÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA, 2., 2002, Natal (RN). Anais... v. 1, 2002.), com certo rompimento com a cultura europeia e a valorização da arte nacionalista, a relação de Mário de Andrade - conjuntamente com Rodrigo de Melo Franco Andrade, entre 1936 e 1937 - com o governo levou à institucionalização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), instituição que talvez seja, no bojo do Brasil republicano, na área da Cultura, a maior organização. Denominado como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), até o fim do governo da presidenta Dilma Vana Rousseff, ganhou muito prestígio, tornando-se uma das áreas de maior alocação de recursos orçamentários públicos ao longo da história.

Não obstante, sabe-se que Mário de Andrade se posicionou contra a implantação do Estado Novo, e que esta posição acarretou na sua exoneração da Direção do Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo. Ao constatar as dificuldades com o governo da época, o musicólogo “não desistiu de suas concepções a respeito da arte e cultura brasileiras e investiu na elaboração de um enorme dossiê, coordenado por ele, sobre manifestações populares brasileiras” (CURY, 2002CURY, C. E. Políticas culturais no Brasil: subsídios para a construção da brasilidade. 2002. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2002., p. 45).

Herança lusitana: fragilidade da terminologia musical

Na revista Illustração Musical, nº 4, publicada em novembro de 1930, Andrade, numa perspectiva de fomentar a música nacionalista brasileira, distinta do legado lusitano, apresenta críticas à terminologia1 1 “A terminologia é um conjunto de unidades cognitivas, ou termos, que representam o conhecimento especializado”. (DIAS, 2000, p. 90-91). musical portuguesa, que perpassa as obras dos compositores que produziam peças que buscavam a construção da identidade artística nacional do país que está localizado na margem americana do Oceano Atlântico. Isso no ano 1930 em que houve, no Brasil, o início de profundas mudanças políticas com a chegada de Getúlio Vargas ao Poder Executivo, sob um governo provisório marcado pelo Populismo.

Mário de Andrade abre o artigo retomando os questionamentos do educador musical Antônio Leal de Sá Pereira, professor do então Instituto Nacional de Música - hoje Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro -, que também escreveu um texto de gênero idêntico sobre o mesmo tema, no mês de outubro, no número anterior da Illustração Musical. O articulista paulistano caracteriza Sá Pereira como um músico sério e condena a “gente pouco séria, que pouco toma a sério a sua arte e no geral caminha por palpites” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Terminologia Musical. Revista llustração Musical , v. 1, n. 4, p. 119, 1930., p. 119).

Sá Pereira, um ativo catedrático no “então Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, entre 1932 e 1955, teve uma carreira notável como professor e disseminador de ideias inovadoras no campo da Pedagogia Musical” (CORVISIER, 2011CORVISIER, F. G. M. A trajetória musical de Antônio Leal de Sá Pereira. Revista do Conservatório de Música, v. 4, p. 162-193, 2011., p. 163). Conhecido no meio musical como o “europeu baiano”, pois viveu praticamente duas décadas na Europa - experiência que tornou o seu sotaque muito particular para os ouvidos dos músicos que transitavam nas instituições de ensino e nos teatros do Distrito Federal -, foi um expoente entre os educadores musicais nacionalistas. (MONTI, 2015MONTI, E. M. G. Polifonias políticas, identitárias e pedagógicas: Villa-Lobos no Instituto de Educação do Rio de Janeiro na Era Vargas. 2015. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro. 2015.). Ciente desse status, Mário de Andrade segue o texto como se fosse uma continuação das ideias do colega que vivia no Rio de Janeiro.

Andrade reafirma a necessidade de uma terminologia musical especificamente brasileira, ressaltando que “a importância do problema [...] é mais nacional do que exclusivamente musical, [pois] um indivíduo pode falar errado todos os termos musicais e fazer boa música” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Terminologia Musical. Revista llustração Musical , v. 1, n. 4, p. 119, 1930., p. 119). O escritor considera que uma terminologia técnica nacional deve ter uma postura política, sobretudo num país como o Brasil, onde há grande lastro de importação da cultura portuguesa como um contundente espectro. Mário de Andrade acredita que as palavras herdadas dos colonizadores europeus precisavam passar por um processo de brasilidade para se tornar “mais um obstáculo à estrangeirização que músicos importados, conscientemente ou inconscientemente” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Terminologia Musical. Revista llustração Musical , v. 1, n. 4, p. 119, 1930., p. 119) trouxeram para o país.

O poeta fiança essa ideia também mencionando “fragilidades”, ressaltando aspectos da fala dos portugueses - relativamente pobre em terminologia artística geral - que os tempos de colônia nos fizeram herdar. “Tão pobre em termos de artes como rica em termos náuticos. As artes no geral evoluíram sem a colaboração de Portugal; a musicologia luso-brasileira é paupérrima, das mais pobres do universo” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Terminologia Musical. Revista llustração Musical , v. 1, n. 4, p. 119, 1930., p. 119). O crítico literário acredita que a “pobreza” do vocabulário lusitano fomentava a “estrangeirização” na arte nacional. Nas palavras de Mário de Andrade,

Isso faz com que tudo que lemos e sabemos a respeito de artes, seja colhido em livros, em livros de outras línguas, especialmente franceses. Só muito recente e beneficamente a língua alemã está entrando em concorrência com a francesa. Ora, quando a gente escreve sobre qualquer arte, em língua nacional, a todo momento esbarra em vácuos vocabulares penosíssimos. E não me censurem por falar “esbarrar em vácuos” porquê quem já andou de aeroplano sabe como a expressão está verdadeira. (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Terminologia Musical. Revista llustração Musical , v. 1, n. 4, p. 119, 1930., p. 119).

Percebe-se, assim, que esta postura sobre a terminologia musical, distante da cultura lusitana, aproximava as ideias de Mário de Andrade das pretensões do governo brasileiro com as propostas lideradas pelo então presidente da República: medidas governamentais que configuraram leis e intervenções, tornando obrigatório o ensino exclusivamente por meio da língua nacional. Em outras palavras, as demais línguas - tais como o francês e o alemão - poderiam estar presentes nas instituições de ensino apenas como segunda língua; porém, a disciplina Música e Canto Orfeônico, por exemplo, obrigatória na Era Vargas, deveria ser ministrada, exclusivamente, na língua oficial do Brasil.

À vista disso, a brasilidade das terminologias musicais configurava uma interessante estratégia para o aprimoramento da língua nacional, que deveria ser utilizada nas instituições de ensino em todo o país. Ação capaz, sincronicamente, de fomentar o processo de concatenação da identidade e o afastamento tanto da língua francesa quanto da língua germânica, nas aulas da disciplina de Música e de Canto Orfeônico que, por meio do músico nacionalista Heitor Villa-Lobos, começavam a ganhar força nas escolas por sua intencionalidade cívica e patriótica.

Em confronto com a terminologia musical oriunda de Portugal, Andrade sinaliza consonância com as demandas de práticas que se fundiram e configuraram leis. Fato que aconteceu alguns anos depois com a Lei da Nacionalização, Decreto Federal nº 406, de 04 de maio de 1938. Para tanto, o musicólogo brasileiro demonstra a necessidade da terminologia musical brasileira, sobretudo por acreditar que “a música brasileira [sem] dúvida nenhuma é a mais desenvolvida das artes nacionais” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Terminologia Musical. Revista llustração Musical , v. 1, n. 4, p. 119, 1930., p. 119). Crendo assim, o poeta escreveu uma proposta de evento, conforme segue: “acho mesmo que não seria impossível organizarmos um congresso, composto de músicos e conhecedores profundos da nossa fala, para organização dum vocabulário musical” (ANDRADE, 1930, p. 119). E, como repercussão desse encontro acadêmico, as escolas e conservatórios “poderiam muito bem tomar a peito impresso, cujos resultados seriam trazer a paz aos nossos espíritos” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Terminologia Musical. Revista llustração Musical , v. 1, n. 4, p. 119, 1930., p. 119).

No artigo, Mário de Andrade sublinha que promover o encontro, com financiamento do governo provisório, não seria difícil. Contudo, o ensaísta brasileiro demarca como desafio a premência de encarar a infinidade e a riqueza do que seria a terminologia musical propriamente brasileira, principalmente do emprego dos termos populares que são incompatíveis com a herança lusitana. Nesse sentido, menciona o poeta a experiência vivenciada numa viagem investigativa ao Nordeste brasileiro, em setembro de 1930, na qual ele tinha como objetivo registrar autênticos acompanhamentos de viola, melodias caipiras, motivos rítmicos-melódicos e romances rurais cantados pelos artistas nordestinos.

Sobre os “achados” nessa peregrinação, Mário de Andrade escreveu, na Illustração Musical, que os romances cantados em Portugal se distinguem dos nordestinos. Uma distinção constante que o folclorista brasileiro percebeu foi o tamanho das peças. A “verborragia nordestina leva os cantores de lá a construir peças enormes. O português, muito mais casmurro e pouco amigo das falas, constrói na infinita maioria dos casos, romances curtos que atingem no geral as vizinhanças de vinte versos” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Terminologia Musical. Revista llustração Musical , v. 1, n. 4, p. 119, 1930., p. 119). Sendo assim, Mário de Andrade encontrou uma disparidade, conforme demonstra em suas palavras:

Ora, a todo instante eles falavam em “modinhas” por “modas”, gêneros musicais que na terminologia geral que herdamos dos portugueses são diferentíssimos. Mas na verdade os meus caipiras nordestinos não estavam trocando um termo pelo outro não; era simplesmente uma precisão de acarinhar, tão brasileira! que nos levava a substituir “moda” pelo diminutivo, mais delicado e carinhoso (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Terminologia Musical. Revista llustração Musical , v. 1, n. 4, p. 119, 1930., p. 119).

No caso transcrito, não havia entre os termos uma confusão com significado diverso, mas somente uma colisão, pelo emprego de um diminutivo de fundo sentimental. Mas em outras situações narradas por Mário de Andrade, percebe-se que o povo brasileiro trocava um termo pelo outro, provocando muitos equívocos. Esta conjuntura gerava desconforto no artista, que, ao observar e registrar o populário poético-musical brasileiro, ficava “desesperado pra descobrir o conceito legítimo a que uma palavra portuguesa [descontextualizada] se referia” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Terminologia Musical. Revista llustração Musical , v. 1, n. 4, p. 119, 1930., p. 119).

Para Contier (2000CONTIER, A. D. Mário de Andrade e o (re)descobrimento do Brasil. Projeto História, n. 20. São Paulo: PUC-SP, 2000. p. 195-220., p. 197), foram esses tipos de “conflitos” - ocorridos nas primeiras décadas do século XX, e vivenciados pelos “compositores eruditos - que favoreceram um pluralismo estilístico, propiciando conceitos sobre o modernismo musical”. Na esfera política, repercutiu “paralelamente essa fragmentação, interpretada como democrática sob diversas visões culturais e políticas pelos partidos ou frações de classes liberais e nacionalistas” (CONTIER, 2000CONTIER, A. D. Mário de Andrade e o (re)descobrimento do Brasil. Projeto História, n. 20. São Paulo: PUC-SP, 2000. p. 195-220., p. 197).

Por conseguinte, a incorporação de novos conceitos na terminologia musical brasileira pelos músicos nacionalistas - que em alguma medida descaracterizava a terminologia musical portuguesa no Brasil -, tipificada principalmente pelas práticas culturais nacionais, foi entendida como pertinente pelos diferentes segmentos do país. Ou seja, artistas e políticos perceberam que esta reestruturação era necessária e compatível com a proposta de nação que se configurava no início da década de 1930.

Compreende-se, por esta conjuntura, que, no âmbito musical e cultural brasileiros, os textos escritos por Mário de Andrade e publicados nos periódicos que circulavam pelas instituições de ensino de música no Brasil - é o caso dos artigos aqui abordados, impressos na revista Illustração Musical -, embasavam teoricamente os artistas ou, no mínimo, eram usados pelos músicos e pelos compositores nacionalistas como inspiração para ações artísticas, em grande parte chanceladas pelo governo que investia numa ideologia nacionalista.

Isso posto, não se pode negar o uso político e intencional dessas ideias por Getúlio Vargas, dentro de uma concepção nacionalista que procurava levantar a autoestima dos brasileiros pelas artes. Era esta uma estratégia de manutenção da esperança que se pretendia configurar numa República forte e no afastamento da memória dos tempos do Brasil Colônia. É possível pensar que essas valorizações, intimamente ligadas à parte humana da estima dos cidadãos, podem ter sido tão importantes para a boa reputação do governo no período quanto os direitos efetivamente conquistados na Era Vargas.

Numa perspectiva de caráter nacionalista, além das questões técnicas referentes à terminologia musical aqui abordadas, Mário de Andrade também coloca em baila, na revista Illustração Musical, a origem de alguns estilos musicais. Dentre outros estudos musicológicos, em agosto de 1930 - como primeiro artigo, no primeiro número do periódico, dirigido pelo músico também nacionalista Oscar Lorenzo Fernândez -, é publicado o texto intitulado “Origem do Fado”.

Origem do fado

No artigo “Origem do Fado”, Mário de Andrade toca num ponto “nevrálgico”, tanto para o nacionalismo português quanto para o brasileiro. Apesar de não conseguir demarcar um parecer definitivo sobre em qual país o estilo musical teria realmente nascido, apresenta argumentos na tentativa de conscientizar os que vivem no Brasil sobre a necessidade de priorizar a cultura política nacionalista, sobretudo por meio de questionamentos do discurso português referente ao fado.

Se, por um lado, no artigo “Terminologia Musical”, o modernista apresenta fragilidades da musicologia lusitana, por outro, no texto “Origem do Fado”, o musicólogo brasileiro indica, com base documental, que o estilo que melhor pode representar a canção nacional daquele país ibérico europeu possivelmente tenha sua origem na outra margem do Oceano Atlântico.

Desde o século XIX, há evidências do fado como expressão artística da alma lusitana, um discurso artístico cultural que conquistou significativo destaque, visto que o espírito ou o caráter nacional ganhou contornos mais específicos nos primeiros anos do século XX. Entretanto, vale destacar que, no interior oitocentista, o estilo musical passou por uma transição social. Fato que Mário de Andrade não aborda nos seus estudos musicológicos, talvez porque não quisesse vincular a política e a arte nacionalista brasileiras com um momento que Gasparotto (2014GASPAROTTO, L. A. Alma e destino do povo português: o fado como identidade nacional lusa no limiar do Estado Novo (1927-1933). Oficina do Historiador, v. 7, p. 80-96, 2014.) indica estar o fado “degenerado”.

Para Gasparotto (2014GASPAROTTO, L. A. Alma e destino do povo português: o fado como identidade nacional lusa no limiar do Estado Novo (1927-1933). Oficina do Historiador, v. 7, p. 80-96, 2014., p. 84), o fado, na cultura portuguesa, passou por profunda ascensão social que “remonta ao início do século XIX, ligado à imagem mítica de Maria Severa, prostituta, cantadeira e guitarrista, falecida em novembro de 1846. Originalmente restrito às tabernas e aos bordéis localizados nos bairros populares da periferia de Lisboa”, com o passar de pouco tempo, a partir de 1860, o estilo musical ganha espaço “entre outras camadas da sociedade lisboeta e até mesmo entre a intelectualidade coimbrã” (GASPAROTTO, 2014GASPAROTTO, L. A. Alma e destino do povo português: o fado como identidade nacional lusa no limiar do Estado Novo (1927-1933). Oficina do Historiador, v. 7, p. 80-96, 2014., p. 84). Entretanto, nos anos de 1870, os fadistas de destaque “são ainda prostitutas e rufiões sem profissão. Situação que se modifica na década seguinte, quando trabalhadores assalariados surgem como fadistas de renome e o Fado passa a circular entre outras camadas da sociedade” (GASPAROTTO, 2014GASPAROTTO, L. A. Alma e destino do povo português: o fado como identidade nacional lusa no limiar do Estado Novo (1927-1933). Oficina do Historiador, v. 7, p. 80-96, 2014., p. 84).

Talvez, por realmente desconhecer algumas informações sobre o fado, Mário Andrade tenha se justificado - no primeiro parágrafo do seu artigo sobre esse estilo musical - na revista Illustração Musical, conforme segue nas palavras do musicólogo:

Não conheço, nem posso conhecer tudo quanto se escreve sobre o Fado nas revistas e jornais de Portugal. Conheço apenas os livros em que a musicologia portuguesa trata especialmente do que José Maciel Ribeiro Fortes (“O Fado”, Porto, 1926) chamou de Fadografia. E mais um ou outro artigo esparso” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Origem do Fado. Revista llustração Musical, v. 1, nº 1, p. 3, 1930., p. 3).

Mesmo sem “conhecer tudo” o que circulava nas revistas e demais impressos em Portugal, o modernista brasileiro afirma que não constam nos livros que tratam da “fadografia” portuguesa, escritos até 1926, a informação que torna pública na revista Illustração Musical. Sobre o “ineditismo” da descoberta de o fado ter nascido no Brasil, Mário expõe que nem mesmo o mais importante livro sobre aquele estilo musical, escrito por Ribeiro Fortes - trabalho importantíssimo para os estudos sobre a origem do fado - levanta uma remota hipótese.

Apesar de Mário de Andrade ter acreditado que o fado teve origem no Brasil, antes de mais nada, ele reconhece - e deixa detalhadamente explicado - que “nascido na Cochinchina ou na Groenlândia, nem por isso o Fado deixará jamais de ser legitimamente português. Da mesma forma que - nascida em Portugal ou no Brasil, coisa que ainda não se esclareceu definitivamente” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Origem do Fado. Revista llustração Musical, v. 1, nº 1, p. 3, 1930., p. 3), e duvidava que fosse um dia tal dúvida sanada - a Modinha é legitimamente brasileira. Em outras palavras, para o artista modernista, o que legitima uma criação musical nacional folclórica é a sua aceitação e incorporação pelo povo.

Não obstante insinuar o nascimento do fado como um valor do folclore brasileiro, artista nacionalista que foi, Mário de Andrade afirma: “o Fado é uma das formas musicais portuguesas, qualquer que seja a origem dele; porquê entre portugueses se integralizou como expressão de nacionalidade e se definitivou como forma nacional permanente” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Origem do Fado. Revista llustração Musical, v. 1, nº 1, p. 3, 1930., p. 3). Pelo mesmo motivo, “muito mais do que pelo seu registro de nascença, é que a Modinha é brasileira” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Origem do Fado. Revista llustração Musical, v. 1, nº 1, p. 3, 1930., p. 3).

O modernista brasileiro aponta falhas em três livros importantes, escritos no início do século XX, sobre a origem do fado: A triste canção do sul, de Alberto Pimentel, publicado em 1904, em Lisboa; História do fado, de Pinto de Carvalho, também lançado em Lisboa, em 1910; e O fado, de José Ribeiro Fortes, editado na Cidade do Porto, em 1926. Para Mário de Andrade, essas obras são registros de estudos sobre a origem do fado; tendo esses musicólogos lusitanos delimitando-se a uma “peculiaridade de nascença, [...] a data que parece muito preocupar escritores” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Origem do Fado. Revista llustração Musical, v. 1, nº 1, p. 3, 1930., p. 3).

Mário de Andrade critica o estudo de Alberto Pimentel em suas buscas das origens do fado. Segundo Andrade (1930), o português folheou dicionários para investigar quando o termo aparece registrado pela primeira vez. Nesse sentido, argumentou: “Ora, essa não é a maneira de procurar manifestações populares, porquê os dicionários são mais discretos no registrar popularismos tantas vezes efêmeros que os folhetinistas croniqueiros da vida quotidiana” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Origem do Fado. Revista llustração Musical, v. 1, nº 1, p. 3, 1930., p. 3). Nesta pesquisa, o vestígio mais antigo é quando “Pimentel só encontra o termo, na sua acepção musical, no Dicionário Lacerda, de 1874, que diz: “Fado, cantiga e dança popular, muito característica e pouco decente de Lisboa e de Coimbra’” (ANDRADE, 1930, p. 3).

Sobre o trabalho de Pinto Carvalho, Mário ressalta que o livro foi baseado em crônicas e jornais. Assim, o poeta brasileiro entende que este fato torna a pesquisa uma contribuição importante. Porém, Andrade demonstra que entre numerosas canções populares portuguesas - que podem ser analisadas, já que as partituras foram conservadas na Biblioteca Nacional de Lisboa desde 1820 -, “nenhuma pode ser caracterizada como Fado, [principalmente] entre as músicas mais antigas” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Origem do Fado. Revista llustração Musical, v. 1, nº 1, p. 3, 1930., p. 3). Senso assim, Carvalho, como musicólogo português, não adianta muito o problema, pois conclui que, nesta linha investigativa, o termo “fado”, mais remoto, como canção, ocorre depois de 1840.

Considerando a trilogia, finalmente Mário de Andrade critica o livro de Ribeiro Fortes, “que nem sonha discutir as origens possivelmente não lisboetas do fado, afirmando que com esse nome de fado, a canção de Lisboa só surgiu em 1849. E, como está se vendo, é uma dessas afirmativas categóricas muito boas prá fixar os erros da humanidade” (ANDRADE, 1930ANDRADE, M. Origem do Fado. Revista llustração Musical, v. 1, nº 1, p. 3, 1930., p. 3). Para Mário de Andrade, o erro de Ribeiro Fortes foi não citar as fontes em que encontrou pela primeira vez a palavra escrita, motivo pelo qual o brasileiro considerou aquele estudo pouco científico.

Portanto, nos levantamentos realizados pelos musicólogos portugueses, para Alberto Pimentel, por exemplo, a origem do fado remete a 1874. Já para Pinto Carvalho, o ano é 1840, enquanto Ribeiro Fortes aponta 1849. Porém, segundo os estudos de Mário de Andrade, há um pasquim do Rio de Janeiro, com data de 1831, que impressiona pelo fato de conter uma canção denominada Fado dos Chimangos. Apesar de não considerar esta fonte uma prova cabal, até a publicação do primeiro número da revista Illustração Musical, o músico nacionalista acreditava que - por não ter encontrado outro documento mais antigo referindo-se ao fado como canção, comprovando a existência do estilo musical antes de 1831 -, o fado então nasceu no Brasil.

A revista Illustração Musical era utilizada frequentemente para abordar os mestres da música nacionalista, os seus estudos musicológicos e, segundo o seu fundador e diretor, as “pedagogias para fazer o aluno aprender a música nacionalista” (FERNÂNDEZ, 1930FERNÂNDEZ, O. L. Editorial. Revista Illustração Musical, n. 1, p. 1, 1930., p. 1). Por esse motivo, entendo que os artigos de Mário de Andrade, veiculados por esse impresso, representam parte do seu pensamento musical e pedagógico, como também dos educadores nacionalistas que transitavam pelas instituições de ensino especializadas em artes nos primeiros anos da Era Vargas. Até mesmo porque, como Oscar Lorenzo Fernândez escreveu, no primeiro editorial, sua proposta para a revista era “exclusivamente nacionalista, informativa e educadora” (FERNÂNDEZ, 1930FERNÂNDEZ, O. L. Editorial. Revista Illustração Musical, n. 1, p. 1, 1930., p. 1).

Em outras palavras, a revista Illustração Musical era um canal para a divulgação do que era realizado, pesquisado e pensado sobre o ensino e produção da música nacionalista no período em questão. Considerando que o artigo “Origem do Fado”, de Mário de Andrade, foi o primeiro da revista Illustração Musical, ficando atrás apenas do editorial do seu diretor, Oscar Lorenzo Fernândez, o achado sobre a origem do fado era uma informação considerada bastante relevante no início dos anos de 1930.

Nesse contexto, a tendência nacionalista experimenta alterações significativas após 1930: “as mudanças no quadro social e político brasileiro alteram de certa forma os rumos do Movimento Modernista” (PÁDUA, 2009PÁDUA, M. P. de. Imagens de brasilidade nas canções de câmara de Lorenzo Fernandez: uma abordagem semiológica das articulações entre música e imagem. 2009. Tese (Doutorado em Estudos Literários) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. , p. 39). A música, a arte e a literatura modernas, “até então marginalizadas, serão reconhecidas e legitimadas, e surge o interesse pelo conhecimento da realidade social do país” (PÁDUA, 2009, p. 39). Ou seja, o momento era bastante próprio para divulgar que os artistas nacionalistas da República brasileira estavam distantes da valorização das origens europeias e, portanto, próximos do governo ao pensar a construção da música nacional um ideal consonante com a identidade brasileira pretendida pelo governo vigente.

Esta vinculação com a política também era interessante para os artistas, visto que significou um contraponto às ideias de seus críticos que condenavam o Modernismo por estar “condicionado por um ‘acontecimento’, isto é, por algo datado, público e glamoroso, que se impôs à atenção da nossa inteligência como um divisor de águas: a Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922, na cidade de São Paulo” (BOSI, 1994BOSI, A. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994., p. 303). Assim, a descoberta da origem do fado foi uma contribuição para o campo da música nacionalista, um fomento à autoestima dos músicos brasileiros e uma boa conexão com a política de cunho nacionalista que buscava elementos para fortalecer a identidade nacional.

Considerações finais

Finalizando, interpreta-se com estudos musicológicos de Mário de Andrade que havia algo incomum entre os artistas modernistas e as aspirações políticas iniciais da Era Vargas. Ambos os grupos, a favor da consolidação da identidade nacional brasileira, entendiam que o Brasil, para se modernizar e avançar, necessitava reconhecer e valorizar suas raízes; porém, visavam objetivos distintos nesse processo de nacionalização.

Por um lado, os políticos acreditavam que poderiam exercer, nas famílias e no meio do povo, pelas “experiências cotidianas das pessoas através das manifestações culturais” (MAAR, 2006MAAR, W. Leo. O que é política. São Paulo: Brasiliense, 2006., p. 85), uma forte influência cívica, criadora de entusiasmo, de coragem, de esperança e de fidelidade ao regime. Por outro lado, Mário de Andrade, como representante dos modernistas, perseguia desafios culturais, como expressou em uma carta:

A gente pode lutar com a ignorância e vencê-la. Pode lutar com a cultura e ser ao menos compreendido, explicado por ela. Com os preconceitos dos semicultos não há esperança de vácuo ou compreensão. Ignorância é vácuo: aceita. Semicultura? Essa praga tem a consistência da borracha: cede, mas depois torna a inchar. (ANDRADE, 1983ANDRADE, M. Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga: cartas. São Paulo: Duas Cidades, 1983., p. 94).

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2017
  • Aceito
    19 Jun 2017
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