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“A maior zoeira” na escola: experiências juvenis na periferia de São Paulo

PEREIRA, A. B.. “A maior zoeira” na escola: experiências juvenis na periferia de São PauloSão Paulo: Unifesp2017240 p.

O livro de Alexandre Barbosa Pereira é fruto de sua pesquisa de doutorado concluída em 2010, apresentada numa versão atualizada, pois, segundo o autor, os últimos sete anos foram palco de constantes mudanças tecnológicas. O livro é dividido em três seções: “Experiências periféricas”, “Experiências escolares” e “Experiências juvenis: as zoeiras”, as quais são precedidas por uma introdução e seguidas, posteriormente, pelas considerações finais.

A introdução do livro apresenta a escola contemporânea, a periferia, a juventude, as tecnologias de informação e a “zoeira”, compreendida como manifestação lúdica e jocosa de múltiplos significados, podendo remeter-se ao “[...] riso, às bagunças, às competições, aos jogos e também às festas informais” (p. 21), bem como a fazer barulho ou a “causar”; o que, segundo o autor, significa rebelar-se contra algo, no caso da escola, contra sua rigidez. Para o autor, a “zoeira” é marcada pela interrupção de relações cotidianas marcadas pelo tédio para empreender brincadeiras, zombarias e conflitos. Trata-se de um estudo etnográfico cujo objetivo consiste em “[...] demonstrar que a experiência de ser um jovem estudante morador da periferia de São Paulo é formada pela intersecção de muitas outras práticas” (p. 16). Com isso, a obra possui o intuito de “[...] inserir uma perspectiva antropológica para o estudo da escola, a partir de um ponto de vista não escolar, mas também, por outro, buscar um entendimento de como as experiências escolar e juvenil afetam-se e modificam-se mutuamente” (p. 26). A experiência foi desenvolvida em cinco escolas: quatro públicas, nas quais o autor se valeu da observação participante, e uma escola privada, na qual o autor atuou como professor de sociologia no ensino médio.

A primeira seção, “Experiências periféricas”, é subdividida em seis capítulos. No primeiro, “As abordagens sobre a periferia”, o autor contextualiza o campo de pesquisa, desenvolvido nos distritos de Cidade Ademar e Brasilândia, em São Paulo - SP, abordando as questões geográficas, econômicas, sociais e culturais. No capítulo dois, “Espaços da periferia no ciberespaço”, a contextualização se dá pelas vozes das redes sociais, permitindo “[...] maior apreensão da multiplicidade de sentidos e de sentimentos sobre o que seria morar num bairro da periferia de São Paulo” (p. 41). Nessa perspectiva, o autor destaca o fato de os problemas da periferia serem atribuídos aos jovens e suas práticas culturais, como, por exemplo, ouvir funk carioca e desfilar em carros com som alto pelo bairro, temática essa desenvolvida no capítulo seguinte, “O funk, os carros e as motos”. Neste, o autor se detém aos eventos de funk que aconteciam nas ruas da periferia e que atraíam multidões de jovens, além de dançarem o ritmo, ainda se exibiam nos seus carros e motos. O autor compreende que não se trata de um fenômeno isolado, mas que está interligado com as outras esferas da vida dos jovens nos bairros, inclusive na dinâmica escolar. No capítulo quatro, “Outras afirmações: periferias dissonantes”, é abordada a ambivalência ocorrida entre a valorização e o desprezo do lugar onde se vive, respectivamente permeada por relações de pertencimento, mas também por certa vergonha, marcada pelas carências existentes. No capítulo cinco, intitulado “Periferias, criminalidades, mídias e funks”, o autor aborda a constituição das subjetividades juvenis em meio às formas de sociabilidade da periferia, sendo novamente destacado o funk, dessa vez por suas letras com apologia à criminalidade. Nesse mesmo capítulo, o autor demonstra o grande impacto da mídia no cotidiano juvenil das periferias, enfatizando o contraste tanto de combate ao crime quanto de apologia às facções e aos atos criminosos presentes, por exemplo, em filmes que retratam a periferia. No último capítulo dessa seção, intitulado “Percepções ambíguas sobre a periferia”, o autor se atenta para o entendimento de que os estudantes possuíam percepções diferentes acerca de seu bairro, gerando assim dicotomias, compreendidas pelos modos como os jovens “[...] trabalhavam com tais noções em seu cotidiano [...]” (p. 83). Além disso, o autor afirma que os aspectos de violência e de criminalidade se revelaram como referenciais importantes dos componentes das práticas juvenis estabelecidas no ambiente escolar.

A segunda seção, “Experiências Escolares”, é subdividida em nove capítulos. No primeiro, intitulado “A instituição escolar”, a escola é conceituada como uma instituição rígida e com claras definições dos papéis dos atores que dela fazem parte. No capítulo dois, “Os espaços escolares”, o autor analisa a experiência juvenil na escola contemporânea a partir da dinâmica da inserção espacial. O destaque fica por conta do entendimento da quadra e do pátio como espaços de maior apreço pelos estudantes, justamente por vivenciarem sua sociabilidade de forma livre. Nessa mesma perspectiva, o capítulo 3, intitulado “Os atores sociais nas escolas”, descreve e analisa os atores sociais presentes nas escolas, enfatizando o protagonismo de professores e alunos em disputa pelo poder em sala de aula, marcada por relações de ambiguidade. No capítulo 4, “Tempos de escola, tempos de juventude”, o autor apresenta a instituição escolar como regente de temporalidades, que, muitas das vezes estão em rota de colisão. Se de um lado temos o tempo institucional escolar, rígido e inflexível, do outro temos a temporalidade juvenil, informal e flexível. Já no capítulo 5, “A escola como produtora e produto da juventude”, o autor argumenta que a escola contemporânea, embora cumpra um papel disciplinador, também se vê obrigada a prestar atenção nas demandas dos estudantes, num jogo de constante contraposição entre a tentativa de imposição de regras e a conformação de um espaço lúdico. No capítulo 6, “Relações explosivas: indisciplinas, violências e dissonâncias”, o autor discorre sobre as relações de tensão vivenciadas no cotidiano escolar que ia além da “zoeira”; o que, em situações extremas, se transformavam em casos de polícia. No capítulo sete, “Repertórios juvenis e repertório escolar em confronto”, o autor relata que o fato da presença de policiais na escola serviu, no contexto pesquisado, para acirrar situações de conflito, pois havia a positiva representação da criminalidade entre os jovens, marcando um “[...] forte descompasso entre os repertórios juvenis e o repertório escolar [...]” (p. 126). O capítulo oito, “Tentativas de retomada do controle escolar”, discorre sobre a proposta de estabelecimento de regras numa das escolas pesquisadas, o que a distanciava ainda mais da cultura juvenil, provocando assim reações de “zoeira”, de indisciplina e de violência; porém, também reações de apreço, pois se tratava de um lugar de aprendizado e de encontro. Por fim, no último capítulo, “Docência, geração e autoridade”, é abordada a diferença de idade como elemento fundamental para pensar as relações entre os professores e alunos na escola, principalmente no que se refere à autoridade envolvida nessa relação imbuída de regras, destacando as relações conflituosas entre professores e alunos.

A terceira seção, “Experiências juvenis: as zoeiras”, é subdividida em sete capítulos. No primeiro, “Sociabilidades performáticas”, a “zoeira”, é abordado, no que seria sua vertente performática, o “causar”. Para o autor, o “causar” era uma forma de sociabilidade performática, pois tinha o intuito de desestabilizar a rigidez escolar e chamar a atenção. No capítulo dois, “Tecnologias da zoeira”, o autor contextualiza a influência da tecnologia da configuração das subjetividades juvenis, sendo destacada a centralidade do aparelho celular como instrumento a serviço da “zoeira”, fosse pela sua diversidade de recursos ou por levar o aluno a superar os muros escolares. No capítulo três, “As zoeiras juvenis”, o autor descaracteriza a “zoeira” como algo isolado, pertencente ao universo de escolas da periferia de São Paulo, argumentando que a ludicidade, o riso e a irreverência são marcas comuns à subjetividade juvenil e que, na escola, subvertem a ordem imposta. O capítulo quatro, “As dinâmicas das zoeiras”, o autor descreve as mais variadas formas e significados de zoar, destacando a íntima relação do fenômeno com as três obrigações das relações de dádiva descritas por Mauss (2003MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão de troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 185-314.): o dar, o receber e o retribuir. Entretanto, dependendo do tipo, do contexto e dos personagens envolvidos nas gozações, a retribuição, ou uma possível resposta, não era permitida ou bem-vinda. Em outras situações, as relações de jocosidade tinham cunho pejorativo e/ou agressivo, nas quais o conflito e a agressão eram iminentes, demonstrando assim a linha tênue entre o lúdico e a ofensa. No capítulo cinco, “Zoeiras de gênero”, o autor discute o protagonismo dos meninos nas práticas de “zoeira” da escola e de outros contextos, entretanto, fugindo do argumento comum que coloca as meninas em posição secundária. Para o autor, embora, realmente haja um predomínio dos meninos nas “zoeiras”, isso não significa a não participação das meninas nas sociabilidades juvenis, cabendo a elas serem espectadoras privilegiadas e agentes dos risos de aprovação ou desaprovação das zoeiras masculinas. Segundo o autor, o protagonismo da “zoeira” pelos meninos está fortemente arraigada no ideário de masculinidades marcadas por valores como agressividade, virilidade e competição. Por isso mesmo, os casos de desordem escolar, provocados pelas meninas, mesmo em menor número, têm maior visibilidade em comparação com os casos dos meninos, haja vista que “[...] romperia como modelo de feminilidade socialmente aceito “[...]” (p. 193), que Silvana Goellner (2003GOELLNER, S. V. Bela, maternal e feminina: imagens da mulher na Revista Educação Physica. Ijuí: Unijuí, 2003.) afirmou ser embasada no tripé bela-maternal-feminina. No capítulo seis, “Corpos caricaturados: gênero, sexualidade e raça”, são abordadas as formas de preconceito existentes na escola por meio da “zoeira”. O autor aborda a escola como uma instituição controladora de corpos e que isso reverbera na constituição das subjetividades juvenis, principalmente no silenciamento existente quando da ocorrência de situações conflituosas envolvendo racismo, homofobia e diferenças entre os sexos. O autor destaca ainda a centralidade do corpo nas relações da “zoeira” na escola, marcadas pelas caricaturas, sempre reféns da gestualidade e/ou uma característica física do “zoado”. Nesse ínterim, o autor relata a influência de programas televisivos na forma de comportamentos dos jovens nas escolas e nos contextos extraescolares, destacando que, nesse caso, a “zoeira”, marca da subversão, serve também ao reforço de padrões sociais hegemônicos de homem e mulher. No último capítulo, “Corpos controlados em escolas descontroladas”, o autor ressalta a capacidade da escola em produzir pautas de comportamento e posturas corporais, entretanto, produzindo brechas para que, também os alunos produzam padrões e formas de lidar com o corpo, principalmente, como já dito, por influência das agências midiáticas de massa.

Nas “Considerações finais”, o autor afirma a necessidade de a escola estabelecer uma educação pautada em um “[...] saber novo que nasça do encontro geracional e que leve em consideração múltiplas outras experiências, como a de classe social, gênero, étnico/racial etc.” (p. 219). Para o autor, uma possibilidade de atuação da escola seria o de orientar os jovens a “[...] transitar pelo intenso tráfego de informações a que têm acesso mais criticamente e com maiores condições de articular novos conhecimentos, além de lhes proporcionar mais recursos para que saibam lidar com as diferenças [...]” (p. 224).

O livro de Alexandre Barbosa Pereira é leitura obrigatória para acadêmicos das áreas de antropologia e educação, já que, de acordo com Gusmão (1997GUSMÃO, N. M. M. Antropologia e educação: origens de um diálogo. Cadernos Cedes, v. 18, n. 43, p. 8-25, 1997., p. 12), a relação entre essas áreas permite debates, reflexões e intervenções que acolhem “[...] o contexto cultural da aprendizagem, os efeitos sobre a diferença cultural, racial, étnica e de gênero, até os sucessos e insucessos do sistema escolar em face de uma ordem social em mudança”, no caso deste livro as mudanças contemporâneas que tangenciam a escola, a juventude e a periferia numa metrópole como São Paulo. O livro também revela a potencialidade dos estudos etnográficos para o campo da educação, pois, se no limite conceitual, a etnografia busca apreender a cultura do outro, os processos educativos existentes na escola constituem espaços férteis para esse enquadre, já que a escola existe e resiste na/pela cultura. Assim, o livro se coloca ao lado dos clássicos escritos etnográficos que articulam o universo particular e geral do objeto estudado, não se prendendo, respectivamente, a contar histórias sobre a sociabilidade juvenil em escolas da periferia de São Paulo e/ou a se enveredar em grandes narrativas sobre a temática. A grande contribuição do livro é justamente a não teorização rígida sobre a sociabilidade dos jovens da periferia na escola, o que, aliás, o conjunto da obra “coloca em xeque”.

Em suma, para o leitor que busca uma resposta ao problema da juventude na escola, o livro oferecerá uma gama delas, mas nenhuma conclusiva ou hegemônica, pois em etnografia, como afirma Geertz (1989GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.), não há conclusões a serem apresentadas, há uma discussão a ser sustentada. O que se pode dizer ao certo é que a “zoeira”, como uma marca da sociabilidade e cultura juvenil no mundo contemporâneo - que na escola busca subverter a ordem - não pode ser ignorada e combatida, mas vista como um ponto de partida para a criação de outras relações sociais, mais abertas e participativas e menos autoritárias nos contextos escolares.

REFERÊNCIAS

  • GEERTZ, C. A interpretação das culturas Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
  • GOELLNER, S. V. Bela, maternal e feminina: imagens da mulher na Revista Educação Physica. Ijuí: Unijuí, 2003.
  • GUSMÃO, N. M. M. Antropologia e educação: origens de um diálogo. Cadernos Cedes, v. 18, n. 43, p. 8-25, 1997.
  • MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão de troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 185-314.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2017
  • Aceito
    16 Jun 2017
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