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Apresentação

A diferença entre Guerra e a Paz é a seguinte: na Guerra, os pobres são os primeiros a serem mortos; na Paz, os pobres são os primeiros a morrer.

Mia CoutoCOUTO, M. Mulheres de Cinzas: as areias do imperador - uma trilogia moçambicana, livro 1. São Paulo: Companhia das Letras , 2015.

Paugam (2003PAUGAM, S. Desqualificação social: ensaio sobre a nova pobreza. São Paulo: Cortez, 2003.) e Telles (2001TELLES, V. S. Pobreza e cidadania: figurações da questão social no Brasil moderno. In: TELLES, V. S. Pobreza e cidadania. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 13-56., 2006TELLES, V. S. Debates: a cidade como questão. In: TELLES, V. S.; CABANES, R. Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006. p. 35-64.), a partir de diferentes entradas teóricas, registraram a questão da pobreza como um fenômeno diverso a simples ausência de renda. Para esses autores, a pobreza está relacionada a processos de desfiliação social, que podem incluir a ausência de renda, mas que vão além dela. Telles (2001TELLES, V. S. Pobreza e cidadania: figurações da questão social no Brasil moderno. In: TELLES, V. S. Pobreza e cidadania. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 13-56.) torna a questão explícita quando sugere que pobreza e cidadania são conceitos antinômicos. Em outras palavras, a pobreza se encontra nas situações em que há negações contínuas e estruturais do direito, e não na simples ausência de renda.

Com essa perspectiva, podemos interpretar as palavras de Mia Couto sem o risco de cairmos em maniqueísmos ou processos de vitimizações. Se tanto na guerra, como na paz, ao indivíduo em situação de pobreza se reserva a fatalidade da morte em primeiro lugar, isso se efetiva pela incompletude do acesso a direitos: direito à renda, mas, também, tantas outras formas de direito, como o direito ao exercício e à voz na política.

As situações de pobreza não se instalam sobre vítimas arbitrárias, sem que seja possível à boa reflexão científica identificar os sistemas que edificaram essas situações bárbaras. Elas se instalam através de processos sociais, econômicos e políticos específicos que podem ser racionalmente interpretados e compreendidos por uma ciência crítica.

Se nos encontramos diante da negação de direitos quando estamos frente às situações de pobreza, estamos a falar, portanto, da atividade sociopolítica. Ou seja, da atividade humana que produziu desigualdade e pobreza e, consequentemente, da atividade humana que pode combatê-las. Se processos de desfiliação social se entrelaçam no interior de instituições socializadoras (CASTEL, 1998CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.; POLANYI, 2000POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.), é na ação coletiva orientada que devemos procurar os mecanismos que possam amenizar ou anular o corte dos laços sociais que integram os indivíduos e dão sentido e coesão para a vida em sociedade. Esta ação coletiva orientada, quando tomada a partir da atividade do Estado Moderno, tem um nome preciso: política pública.

Dentre as diversas possibilidades de políticas públicas, que de alguma maneira encontram ou tangenciam o enfrentamento às situações de pobreza, este dossiê privilegia, como objeto de análise, o encontro de duas: as políticas de transferência de renda e as políticas educacionais. O foco, nessas duas políticas, não é gratuito. Está teórica e empiricamente ancorado em uma compreensão precisa da modernidade capitalista.

Debruçar-se analiticamente sobre políticas de renda explica-se pela compreensão que, a despeito de pobreza não se reduzir a ausência de renda como alertam Paugam (2003PAUGAM, S. Desqualificação social: ensaio sobre a nova pobreza. São Paulo: Cortez, 2003.) e Telles (2001TELLES, V. S. Pobreza e cidadania: figurações da questão social no Brasil moderno. In: TELLES, V. S. Pobreza e cidadania. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 13-56., 2006TELLES, V. S. Debates: a cidade como questão. In: TELLES, V. S.; CABANES, R. Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006. p. 35-64.), desde Marx (1998MARX, K. O capital: crítica da economia política. Volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.), passando por Polanyi (2000POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.), Castel (1998CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.) e tantos outros, sabemos que a sociabilidade, a estratificação social e os processos de inclusão e exclusão do capitalismo passam de maneira significativa e central pela distribuição desigual da renda e da propriedade, através do mercado moderno. Assim, a garantia direito à renda não se constitui em política pública suficiente para o fim da pobreza, mas, sem dúvida, é política necessária.

Em contrapartida, desde a reforma protestante e os primeiros passos do iluminismo, a educação se constitui em polo produtivo do indivíduo autônomo e consciente. “Somente pela educação poderíamos produzir o homem racional, o homem independente, o homem democrático”, afirma Teixeira (1996TEIXEIRA, A. Educação é um direito. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996., p. 42). A escola e o sistema educacional constituíram-se em instituições centrais no processo de cidadania, assim como o direito à educação e ao aprendizado tornou-se via de acesso ao exercício político igualitário, tão necessário para a vida democrática. Destarte, se retomamos o sentido de pobreza como a negação contínua e estrutural do direito, torna-se evidente a conexão entre direito à educação e o combate à pobreza.

No universo dessa reflexão, o dossiê “Desigualdades educacionais e pobreza” é um esforço analítico, organizado no interior do Programa Educação, Pobreza e Desigualdade Social, coordenado pela Secadi/MEC, e executado por equipes docentes de diferentes universidades públicas brasileiras, dentre as quais a Universidade Federal do Paraná, através do Núcleo de Políticas Educacionais, do Setor de Educação. Ele reúne diferentes pesquisadores de renomadas universidades nacionais e internacionais, que tem como elemento comum a preocupação com a convergência de problemas que entrelaçam pobreza e acesso desigual à renda e ao direito à educação e à aprendizagem.

O artigo que abre este dossiê intitulasse “A crise social desenhada pelas crianças: imaginação e conhecimento social” e é de autoria de Manuel Jacinto Sarmento e Gabriela Trevisan. O artigo evoca a questão da representação da pobreza e da desigualdade, a partir do contexto português de crise e austeridade econômica, e com o filtro do olhar de crianças de 6 a 12 anos de idade. Os autores tomam a polissemia das interpretações e das representações das crianças sobre o tema, provocando o leitor a pensar o lugar da infância no contexto de crises econômicas, o lugar da infância pobre, e especialmente provocando reflexões sobre as representações coletivas das crises do capitalismo contemporâneo.

Na sequência temos o texto de Eliana Andrade da Silva e Kilza Fernanda Moreira de Viveiros, com o título “Representações sociais de pobreza construídas pelos cursistas da Especialização Educação, Pobreza e Desigualdade Social (EPDS) realizada no Rio Grande do Norte: primeiros resultados”. O trabalho provoca o leitor a refletir sobre a naturalização do fenômeno da pobreza e das desigualdades, a partir de estudo qualitativo das representações sociais dos cursistas da EPDS no estado do Rio Grande do Norte. As autoras convidam a pensar na necessidade de se problematizar continuamente a pobreza e a desigualdade como construções históricas que precisam ser superadas numa sociedade democrática.

O terceiro artigo, intitulado “Contexto familiar e cumprimento da condicionalidade de frequência escolar no Programa Bolsa Família no Ceará”, é de autoria de Domingos Abreu e Jakson Alves de Aquino. Se os dois primeiros artigos focalizam as representações sociais da pobreza, este artigo toma outra perspectiva para refletir sobre a efetividade da política de proteção à renda articulada ao direito universal à educação. Os autores questionam o que faz uma família manter crianças e jovens em sala de aula na frequência mínima exigida pelo Programa Bolsa Família. Para discutir essa questão, os autores exploram um banco de dados quantitativo construído a partir de entrevistas qualitativas com mais de 300 famílias no estado do Ceará. Neste universo de dados empíricos, analisam aspectos da composição das famílias e do capital cultural e indicam o conhecimento que as famílias possuem sobre a escola como fatores intervenientes nas condições de cumprimento da condicionalidade.

O artigo de Vanda Mendes Ribeiro e Cláudia Lemos Vóvio, o quarto deste dossiê, coloca-nos diante de uma questão que extrapola os limites mais clássicos das políticas educacionais, como, a partir da escola, enfrentar o problema da distribuição da vulnerabilidade social ao longo do território urbano. O artigo tem por título “Desigualdade escolar e vulnerabilidade social no território” e introduz um instigante e provocante debate, junto à Sociologia da Educação francesa e estadunidense. As autoras apresentam recentes descobertas das pesquisas nacionais sobre a desigualdade escolar no contexto de vulnerabilidade social. Ribeiro e Vóvio nos convidam a refletir sobre a capacidade das políticas educacionais de lidarem com uma questão que lhe foge como areia entre as mãos: a distribuição territorial das desigualdades. Como falar em políticas de equidade, se a reprodução social das desigualdades se promove ao redor de elementos estruturalmente externos à escola e ao sistema educacional. Com a base empírica de uma compilação de recentes descobertas de pesquisas em dois grandes centros metropolitanos, o texto acaba por nos conduzir a uma reflexão sobre a necessidade de integração das políticas educacionais com diferentes áreas do social.

Dando sequência, o artigo de Silvia Cristina Yannoulas e Mónica Girolami, “Equipos Multiprofesionales-Multidisciplinares en el ámbito educativo - legislación comparada y regulación de políticas educacionales en Argentina y Brasil”, reflete sobre políticas públicas, no Brasil e na Argentina, de inclusão de estudantes pobres nas escolas, articulado ao direito universal à educação. Para as autoras, essa articulação exige, da política pública, tratamento mais complexo e intencional para garantir efetivamente a inclusão. Assim, refletem a partir das diferenças de experiências históricas de Brasil e Argentina sobre a necessidade de equipes multidisciplinares de suporte à construção cotidiana do direito à educação a partir da escola.

O sexto texto é de autoria de Adriana Dragone Silveira e Gabriela Schneider e nos convida a uma reflexão sobre a garantia do direito à educação quando em situação de pobreza. O trabalho intitula-se “Política educacional, pobreza e educação: retrato do atendimento aos estudantes beneficiários do Programa Bolsa Família no Paraná” e tem como suporte empírico os dados do Banco do Sistema Presença - que acompanha a frequência escolar de crianças e jovens beneficiários do Programa Bolsa Família. Com os dados em mãos, as autoras fazem um cotejamento com informações geradas pelo censo escolar. O resultado analítico é um mapeamento das escolas por diferentes percentuais de alunos beneficiários do PBF e o acompanhamento das condições de qualidade da oferta educacional nesses estabelecimentos de ensino. O resultado crítico, quanto à política educacional, é que Silveira e Schneider demonstram que, ainda que o PBF auxilie na garantia do acesso ao sistema escolar, não é capaz de garantir acesso às condições de qualidade, reforçando as desigualdades sociais. Nos três parâmetros utilizados pelas autoras - tipo de vínculo dos professores, formação dos professores e condições materiais da escola -, as condições de qualidade sistematicamente pioram na razão inversa em que cresce o percentual de alunos beneficiários do PBF. Assim, o artigo conclui pelo diagnóstico de uma incapacidade do Estado e do Programa Bolsa Família em garantir igualdade de acesso às condições de qualidade, ainda que sejam fundamentais para garantir o acesso a uma vaga no interior do sistema de ensino.

O texto “Pobreza e desigualdades educacionais: uma análise com base nos Planos Nacionais de Educação e nos Planos Plurianuais Federais”, de Adir Valdemar Garcia e Jaime Hillesheim, traz uma análise documental de textos centrais na formulação da política educacional. A questão a ser investigada é como a formulação da política educacional concebe o enfrentamento das desigualdades sociais e educacionais derivadas das situações de pobreza. Os documentos analisados são os dois Planos Nacionais de Educação (PNE 2001-2010 e PNE 2014-2024) e os Planos Plurianuais (PPAs) federais do período entre 2004 e 2015. Para os autores, os dois PNEs têm um ponto comum inicial: ambos compreendem a pobreza sob um aspecto econômico (faixa de renda) e político (falta de acesso à cidadania) e concebem-na como um fenômeno multifacetado. No entanto, desenham estratégias de enfrentamento, ou seja, concebem a política educacional a ser implementada de maneira diferenciada. A necessidade da conjugação da política educacional com outras políticas sociais é evidente, para os autores, no PNE 2014-2024, sem estar presente com mesma ênfase no PNE 2001-2010. Esta mesma ênfase de políticas intersetoriais é encontrada nos PPAs. Contudo, os autores não deixam de registrar o aspecto paliativo das políticas educacionais se não for alterado o mecanismo central da reprodução da pobreza, que, para os mesmos, se encontram na desigualdade da distribuição da riqueza gerada pelo mercado.

O artigo “Em busca de novas explicações sobre a relação entre educação e desigualdade: o caso da Universidade Tecnológica de Nezahualcóyotl”, de Pedro Flores-Crespo, discute a importância da inclusão de jovens pobres no ensino superior no México a partir da experiência da Universidade Tecnológica. O autor analisa, a partir dos aportes teóricos de Amartia Sen e de um provocativo diálogo com Paulo Freire, o papel da educação na redução das desigualdades entre os moradores da cidade de Nezahualcóyotl, considerando a possibilidade de ingresso no Ensino Superior, decorrente de uma política pública de expansão do sistema e as possibilidades de inserção no mercado laboral.

O dossiê se encerra com a resenha do livro Le sens du placement. Ségrégation résidentielle et segregation scolaire, de Franck Poupeau e Jean-Christophe François. A resenha é assinada por Ana Lorena de Oliveira Bruel e convida os leitores à discussão sobre segregação e desigualdade no interior dos sistemas de ensino. A obra, ainda não traduzida para o português, é um profundo estudo sobre mobilidade dos alunos entre escolas parisienses de centro e periferia. A resenha instiga o leitor a pensar sobre os limites e possibilidades das formas de distribuição de vagas nos sistemas públicos de ensino.

Por fim, não poderíamos encerrar esta apresentação do dossiê sem agradecer a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), do Ministério da Educação, que possibilitou a realização do Programa Educação, Pobreza e Desigualdade. Tal programa integrou um conjunto de Universidades Federais e constituiu-se em um duplo esforço por parte de pesquisadores e docentes dessas instituições de ensino. O primeiro resultou em cursos de especialização voltados a servidores públicos - docentes ou não - atuantes em secretarias de educação e de assistência social que trabalham no acompanhamento da presença escolar de crianças e jovens de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família. O segundo foi um leque de pesquisas, realizadas em diversas universidades nacionais, para investigar o vértice de encontro entre as políticas de transferência de renda e as políticas educacionais, como elemento de combate as situações de pobreza. Este dossiê é fruto desta intencionalidade política do Ministério da Educação: compreender um fenômeno de relevância social e política.

Mas também devemos registrar que esta experiência de política pública, que integrou a Secadi/MEC e universidades públicas, foi interrompida recentemente em função das transformações institucionais antidemocráticas que, infelizmente, nosso país atravessa. De toda maneira, mesmo em tempos sombrios, para parafrasear Hannah Arendt (1987ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.), refletir sobre a ação política humana - que é capaz de intervir sobre realidades injustas para desnaturalizá-las e transformá-las - mobiliza-nos a sermos mais críticos e atuantes em nossa sociedade, como cientistas ou cidadãos políticos. Uma boa leitura a todos e todas que se aventurarem por este dossiê.

Adriana Dragone SilveiraAndréa Barbosa GouveiaMarcos Ferraz

REFERÊNCIAS

  • ARENDT, H. Homens em tempos sombrios São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
  • COUTO, M. Mulheres de Cinzas: as areias do imperador - uma trilogia moçambicana, livro 1. São Paulo: Companhia das Letras , 2015.
  • PAUGAM, S. Desqualificação social: ensaio sobre a nova pobreza. São Paulo: Cortez, 2003.
  • POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
  • MARX, K. O capital: crítica da economia política. Volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
  • TEIXEIRA, A. Educação é um direito Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996.
  • TELLES, V. S. Pobreza e cidadania: figurações da questão social no Brasil moderno. In: TELLES, V. S. Pobreza e cidadania São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 13-56.
  • TELLES, V. S. Debates: a cidade como questão. In: TELLES, V. S.; CABANES, R. Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006. p. 35-64.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017
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