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Os escritos de Antonio Gramsci e obras de intérpretes em teses e dissertações sobre políticas educacionais (2000-2010)

The Antonio Gramsci’s writings and works of his interpreters in theses and dissertations on educational policies (2000-2010)

RESUMO

Neste artigo, analisa-se a bibliografia de Antonio Gramsci e intérpretes mobilizada por pós-graduandos que adotaram o pensamento do autor em seus trabalhos. Foram selecionadas 32 teses e dissertações, produzidas em programas de pós-graduação em Educação no período de 2000-2010, cujos resumos indicam a presença de Gramsci no referencial teórico utilizado. Realizou-se pesquisa documental e bibliográfica, com o objetivo de mapear os escritos de Gramsci e de intérpretes de seu pensamento mencionados no decorrer do texto e nas referências. Constatou-se que os pós-graduandos, para a compreensão do pensamento de Gramsci, apoiaram-se na obra do próprio autor e na de seus intérpretes. No que se refere aos escritos de Gramsci, os autores dos trabalhos analisados citaram tanto a edição temática como a edição dos anos de 1990 dos Cadernos do Cárcere. Os textos Concepção dialética da história e Os intelectuais e a organização da cultura, da edição temática, foram os dois mais citados. Entre os intérpretes, Carlos Nelson Coutinho foi o mais mencionado. Conclui-se que a presença de ideias e conceitos gramscianos em trabalhos sobre políticas educacionais deve ser acompanhada de uma cuidadosa atenção ao referencial bibliográfico do e sobre o autor, e que é importante, dados os limites da edição temática, que o pensamento de Gramsci seja estudado com base na edição dos anos de 1990 ou na edição crítica italiana.

Palavras-chave:
Antonio Gramsci; Produção Acadêmica; Políticas Educacionais

ABSTRACT

In this article, we analyze the Antonio Gramsci’s bibliography and his interpreters mobilized by graduate students who adopted the author's thinking in his works. Thirty-two theses and dissertations were selected in postgraduate programs in education in the period 2000-2010, whose abstracts indicate the presence of Gramsci in the theoretical reference that was used. Documentary and bibliographical research was carried out with the objective of mapping the writings of Gramsci and of interpreters of his thought mentioned in the course of the text and in the references. It was found that the postgraduate students, for the understanding of Gramsci's thought, supported themselves in the work of the author himself and that of his intérpreters. With regard to Gramsci's writings, the authors of the analyzed works cited both the thematic edition and the 1990 edition of the Prison Notebooks. The texts Dialectical conception of history and The intellectuals and the organization of culture, from thematic edition, were the two most cited texts. Among the interpreters, the most mentioned was Carlos Nelson Coutinho. It was concluded that the presence of Gramsci's ideas and concepts in works on educational policies must be accompanied by careful attention to the bibliographic reference of the author and on the author, and that it is important, given the limits of the thematic edition, that the Gramsci's thought be studied based on the edition of the 1990s or in the Italian critical edition.

Keywords:
Antonio Gramsci; Academic Production; Educational Policies

Introdução

Alguns estudos têm indicado que Gramsci é um autor bastante presente na área da educação (SILVA, 2016SILVA, D. R. Hegemonia e educação: proposta gramsciana de superação da subalternidade. 2016. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.; SEMERARO, 2016SEMERARO, G. et al. Mapa bibliográfico de Gramsci no Brasil. Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. 2016. Disponível em: <Disponível em: http://igsbrasil.org/biblioteca/artigos/Artigo_mapa.php >. Acesso: 16 fev. 2017.
http://igsbrasil.org/biblioteca/artigos/...
), especialmente em pesquisas que estudam as relações educação e trabalho e políticas educacionais. Assim, conhecer quais escritos do autor sardo são utilizados pelos pesquisadores da área da Educação e quais intérpretes e obras são comumente referenciados nos trabalhos acadêmicos de pós-graduandos nos permite conhecer um pouco melhor a vitalidade das ideias e conceitos de Gramsci nas pesquisas nesta área de conhecimento.

Diferentemente da tradição europeia, em especial a italiana, na qual a produção teórica de Gramsci é objeto de estudos filológicos, com o intuito de ampliar e aprofundar sua contribuição conceitual, no Brasil ainda temos poucos estudos nessa direção. A maioria dos trabalhos utiliza os conceitos gramscianos como referencial teórico na análise de aspectos da realidade brasileira e nos estudos de conjuntura política.

Na área da Educação, Demerval Saviani realizou importante contribuição para a difusão do pensamento de Gramsci. Seu primeiro contato com o pensamento do autor foi nos anos de 1970 e, no primeiro semestre de 1978, desenvolveu estudo sistemático sobre o pensamento gramsciano na disciplina “Teoria da Educação”, ministrada à primeira turma de doutorado em Educação do curso de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O curso ministrado por Francisco Weffort, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, no final dos anos de 1970, foi outra importante iniciativa acadêmica que produziu estudos sobre o pensamento de Gramsci. Dentre os trabalhos produzidos a partir da disciplina, destaca-se o artigo Ideologia e intelectuais em Gramsci, de autoria da professora Carmen Sylvia Vidigal Moraes, publicado na revista Educação e Sociedade em sua primeira edição, no ano de 1978.

Os estudos realizados nesses cursos contribuíram para a formação de uma geração de pesquisadores que utilizou e divulgou as ideias de Gramsci na área da educação nas décadas seguintes. No livro Educação: do senso comum à consciência filosófica, que reúne escritos de Saviani no período entre 1971 e 1979, o autor faz várias referências a Gramsci, com a ressalva, apresentada no prefácio à segunda edição, de que “não se trata de uma leitura de Gramsci”, mas do uso de conceitos gramscianos para pensar a educação brasileira. Saviani afirma que a pedagogia histórico-crítica, referenciada no pensamento de Gramsci, utiliza a categoria catarse para expressar o momento culminante do processo pedagógico (SAVIANI, 1996SAVIANI, D. Do senso comum à consciência filosófica. 12. ed. Campinas: Autores Associados, 1996.; SAVIANI, s/d.SAVIANI, D. Gramsci e a educação no Brasil: para uma teoria gramsciana da educação e da escola. (s/d., mimeo)., mimeo).

Outros autores produziram livros tendo como objeto de estudo o pensamento de Antonio Gramsci, com distintos enfoques, salientando a importância de suas contribuições para a análise da educação e da escola na contemporaneidade. Entre eles, destacamos os livros dos brasileiros Jesus (1998JESUS, A. T. de. O pensamento e a prática escolar de Gramsci. Campinas, SP: Autores Associados, 1998.), Mochcovitch (2001MOCHCOVITCH, L. G. Gramsci e a escola. São Paulo: Ática, 2001.), Nosella (2010NOSELLA, P. A escola de Gramsci. São Paulo: Cortez , 2010.), Martins e Groppo (2010MARTINS, M. F.; GROPPO, L. A. Sociedade Civil e Educação. Campinas, SP: Autores Associados ; Americana, SP: Unisal, 2010.), Sousa (2014SOUSA, J. R. de. Gramsci: educação, escola e formação, caminhos para a emancipação humana. 1. ed. Curitiba: Appris, 2014. ), e dos italianos Manacorda (1990MANACORDA, M. A. O princípio educativo em Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.) e G. Betti (1981BETTI, G. Escuela, educación y pedagogia em Gramsci. Barcelona: Ediciones Martínez Roca, 1981.).

Destacam-se, também, entre tantos outros, os estudos de Nosella (1998NOSELLA, P. Gramsci e os educadores brasileiros: um balanço crítico. Revista da FAEEBA. Salvador, n.10, p. 9-23, jul/dez. 1998.); Saviani (2005SAVIANI, D. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação política. 37. ed. Campinas: Autores Associados , 2005., 2013SAVIANI, D. Gramsci e a educação no Brasil. In: LOMBARDI, J. C.; MAGALHÃES, L. D. R.; SANTOS, W. da S. (Org.). Gramsci no Limiar do Século XXI . Campinas: Librum Editora , 2013. p. 60-79.); Semeraro (1999SEMERARO, G. Gramsci e a sociedade civil: cultura e educação para a democracia. Petrópolis-RJ: Vozes, 1999.); Vieira (1994VIEIRA, C. E. O historicismo gramsciano e a pesquisa em educação. 1994. Dissertação (Mestrado em Filosofia e História da Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1994., 1999VIEIRA, C. E. Historicismo, cultura e formação humana no pensamento de Antonio Gramsci. 1999. Tese (Doutorado em Filosofia e História da Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 1999.); Ciavatta (2012CIAVATTA, M. (Org.). Gaudêncio Frigotto: um intelectual crítico nos pequenos e nos grandes embates. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.); Dore (2006aDORE, R. Apresentação: Gramsci, intelectuais e educação. Cadernos Cedes, Campinas, v. 26, n. 70, p. 285-289, set/dez. 2006a., 2006bDORE, R. Gramsci e o debate sobre a escola pública no Brasil. Cadernos Cedes , Campinas, v. 26, n. 70, p. 329-352, set/dez. 2006b., 2014DORE, R. Afinal, o que significa o trabalho como princípio educativo em Gramsci? Cadernos Cedes, Campinas, v. 34, n. 94, p. 297-316, set./dez. 2014.); Lombardi, Magalhães, Santos (2013LOMBARDI, J. C.; MAGALHÃES, L. D. R.; SANTOS, W. da S. (Org.). Gramsci no Limiar do Século XXI. Campinas: Librum Editora, 2013.); Magrone (2006MAGRONE, Eduardo. Gramsci e a educação: a renovação de uma agenda esquecida. Cadernos Cedes , Campinas, v. 26, n. 70, p. 353-372, set./dez. 2006. ); Paro (2012PARO, V. H. Administração Escolar: introdução crítica. 17. ed. (revista e ampliada). São Paulo: Cortez , 2012.); Soares (1992SOARES, R. D. A concepção gramsciana do Estado e o debate sobre a escola. 1992. Tese (Doutorado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1992.); Kuenzer, 2007KUENZER, A. Z. Da dualidade assumida à dualidade negada: o discurso da flexibilização justifica a inclusão excludente. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 1.153-1.178, out. 2007.; Frigotto, Ciavata, Ramos (2005FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M.; RAMOS, M. (Orgs.). Ensino médio integrado: concepções e contradições. São Paulo: Cortez, 2005. ).

Com base na constatação de que Gramsci foi o autor mais citado como referencial teórico nos resumos de 1283 teses e dissertações sobre políticas educacionais, produzidas em programas de pós-graduação em Educação no período de 2000 a 2010 e que tiveram nota igual ou superior a cinco na avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)1 1 Refere-se à pesquisa “A produção acadêmica em políticas educacionais no Brasil: características e tendências (2000-2010)”. , no triênio encerrado em 2010, realizou-se estudo com o objetivo de conhecer quais escritos de Antonio Gramsci e de intérpretes de seu pensamento foram utilizados pelos referidos autores. Tal como já explicitamos, trata-se de um mapeamento dos escritos de Gramsci e de intérpretes mobilizados pelos autores das teses e dissertações para construção de um referencial teórico que orientou as análises dos objetos de estudo das pesquisas.

Para a escrita deste artigo foram analisados os 32 trabalhos que indicaram o pensamento de Gramsci como referencial teórico no respectivo resumo, 18 teses e 14 dissertações, coletados em banco de dados organizado pela pesquisa “A produção acadêmica em políticas educacionais no Brasil: características e tendências (2000-2010)”2 2 O banco encontra-se disponível em: <http://www2.uefs.br/cede/docs/a-producao-academica-em-politicas-educacionais-2000-2010.pdf>. . Os trabalhos foram defendidos entre 2000 e 2010, de acordo com a seguinte distribuição: 2000 a 2002 (nenhum), 2003, 2004 e 2010 (três em cada ano), 2005 (dois), 2006 e 2009 (cinco em cada ano), 2007 (quatro) e 2008 (sete). Portanto a maior parte, 23 trabalhos, foi defendida entre 2005 e 2010. Os trabalhos procedem das seguintes universidades: Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) (cinco); Universidade de São Paulo (USP) (quatro); Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (três trabalhos cada); Universidade Federal do Paraná (UFPR) (dois); Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade de Campinas (Unicamp), Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) (um trabalho cada). Das 14 instituições de ensino, 11 são públicas e três privadas. Sete trabalhos foram defendidos em universidades privadas e 25 em instituições públicas. Em relação à localização, nove universidades estão na Região Sudeste, três na Região Sul, uma na Região Centro-Oeste, uma na Região Nordeste e nenhuma na Região Norte.

De acordo como nossa classificação, os trabalhos abordaram os seguintes temas: 1) Políticas educacionais (10 trabalhos); 2) Educação, cidadania e trabalho (quatro); 3) Gestão da educação (quatro); 4) Educação no campo (quatro); 5) Formação de professores (três); 6) Reformas educacionais (dois); 7) Trabalho docente (dois); 8) Avaliação da educação (um); 9) Orçamento participativo (um); 10) Conselho Federal de Educação (um).

Para o levantamento e análise dos escritos de Gramsci e de intérpretes presentes nas teses e dissertações, precedeu-se à leitura integral dos 32 trabalhos, seguida de preenchimento de ficha analítica com informações sobre ideias e conceitos gramscianos presentes nos textos, indicação dos escritos de Gramsci presentes nas referências, bem como das obras de intérpretes citados nos trabalhos.

O pensamento de Gramsci em trabalhos acadêmicos

Antonio Gramsci não publicou nenhum livro em vida. Os textos produzidos por ele antes da prisão tinham como principal objetivo a intervenção na conjuntura e a formação política da classe trabalhadora e, naquele momento, foram publicados basicamente como ensaios jornalísticos, e não na forma de livro. Parte desses textos encontra-se editada no Brasil sob o título Escritos Políticos.

A maior parte da obra de Gramsci foi escrita durante o período em que esteve preso, portanto sob condições que limitaram seu contato com o mundo externo e o acesso a materiais que a produção intelectual normalmente exige. Além disso, sua produção foi submetida ao peso permanente da censura. Nos cadernos que escreveu no período há exercícios de tradução, anotações sobre temas diversos para posterior desenvolvimento e textos elaborados, alguns com segunda redação3 3 Na edição crítica, organizada por Valentino Gerratana, publicada pela editora Einaudi em quatro volumes em 1975, ele distingue as notas dos cadernos do cárcere em textos A, B e C. Os textos A são aqueles cancelados por Gramsci e reescritos com modificações nos textos C; os textos B são os de redação única. Na edição brasileira, baseada na edição crítica, o organizador optou por reproduzir apenas os textos B e C, salvo algumas exceções em que os textos A são citados (COUTINHO, 2013). . Por isso, para melhor compreensão de sua construção conceitual, do desenvolvimento das análises e reflexões do autor é fundamental conhecer o conjunto dos escritos e o contexto histórico em que foi produzido. A comparação entre os textos A e C, por exemplo, permite melhor compreensão sobre o movimento do pensamento do autor.

No Brasil, as duas publicações dos Cadernos do Cárcere foram organizadas por Carlos Nelson Coutinho. A primeira, publicada nos anos de 1960, conhecida como edição temática, foi baseada na edição italiana, organizada por Felice Platone4 4 Felice Platone foi militante do Partido Comunista da Itália. sob a supervisão de Palmiro Togliatti5 5 Palmiro Togliatti foi dirigente do Partido Comunista da Itália. e publicada na Itália nos anos de 1940. A edição publicada naquele país era constituída de seis volumes com os seguintes títulos: Il materiIalismo storico e la filosofia di Benedetto Croce (1948), Gli intelectualli e l´organizazione della cultura (1949), Il Risorgimento (1949), Note sul Macchiavelli, sulla politica e sullo Estato moderno (1949), Litteratura e vita nazional (1950) e Passato e presente (1951). No Brasil, graças ao empenho de Ênio Silveira, diretor da editora Civilização Brasileira, foram publicados, entre 1966 e 1968, quatro dos seis volumes: Concepção dialética da história, Os intelectuais e a organização da cultura, Maquiavel, a política e o Estado moderno e uma seleção de Literatura e vida nacional, além de uma antologia das cartas do cárcere.

Assim, até o final dos anos de 1990, quando se iniciou a publicação de uma nova edição dos cadernos e das cartas em nosso país, a divulgação do pensamento gramsciano ocorreu por meio da edição temática, moldada à orientação dos partidos comunistas da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e da Itália. É salutar pensar que tal edição limitou o contato com a complexidade do pensamento de Gramsci, a despeito de sua grande importância para a divulgação da obra do autor sardo, não apenas no Brasil, mas em muitos outros países, inclusive na Itália.

Em 1975, na Itália, é publicada uma edição crítica6 6 A edição crítica italiana é composta por 4 volumes, os três primeiros, com cerca de 2.400 páginas, contemplam os escritos de Gramsci, cadernos miscelâneos e especiais, o quarto volume é dedicado ao aparato crítico, “com indicações das fontes que Gramsci utilizou para redigir seus apontamentos, informações sobre fatos e autores que ele cita, um cuidadoso e detalhado índice analítico e onomástico etc., além de uma utilíssima tábua de correspondências entre a antiga edição temática e a nova edição crítica”. (COUTINHO, 2013, p. 28) , quando todo o conteúdo dos 29 cadernos7 7 Gramsci escreveu 33 cadernos na prisão, sendo quatro de tradução. , miscelâneos e especiais8 8 Conforme explica Bianchi (2008, p. 43), “Os cadernos foram divididos em miscelâneas onde predominam as notas esparsas sobre vários temas (volumes 1 a 9, 14, 15 e 17), e especiais (10 a 13, 16, 18 a 29), mas apresentados contiguamente de acordo com sua numeração”. Em 1932, Gramsci começou a escrever os cadernos especiais. Ele agrupou o material previamente escrito por temas, reformulou a redação anterior e acrescentou passagens inéditas. , chega ao público. Uma reprodução dessa edição foi traduzida para o espanhol e publicada em 1981, no México.

Embora a edição crítica italiana dos Cadernos do Cárcere nunca tenha sido publicada no Brasil, nossa edição dos anos de 19909 9 Tratam-se dos seis volumes, cuja edição e tradução foram empreendidas por Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, publicada pela Civilização Brasileira. é baseada na edição crítica, conforme explica o seu principal editor.

[...] Trata-se da execução de um projeto original, que recolhe sugestões não só da velha edição togliattiana, mas também da proposta de Gianni Francioni acima comentada e, sobretudo, da “edição Gerratana”, que se tornou, a partir de sua publicação, a base de qualquer edição doravante séria dos textos gramscianos (COUTINHO, 2013COUTINHO, C. N. Introdução. In: GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. v. 1. Edição de Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013., p. 39).10 10 A “edição Gerratana” é também conhecida por edição crítica. Gianni Francioni teceu uma série de críticas à edição Gerratana e propôs nova datação dos cadernos e separação mais nítida entre os cadernos miscelâneas e especiais (BIANCHI, 2008). Em relação às discussões sobre a edição Gerratana, ver o tópico “L´edizione Gerratana”, no livro “Gramsci conteso: interpretazioni, dibattiti e polemiche”, de Guido Liguori, 2012, p. 248-250. Na Itália, está em processo de publicação uma nova edição dos Cadernos do Cárcere, preparada por Gianni Francioni, Giuseppe Cospito e Fabio Frosini (BIANCHI, 2017). Trata-se de projeto mais amplo com a finalidade de publicar toda a obra de Gramsci.

Disso decorre que os estudiosos de Gramsci no Brasil, para conhecer toda sua obra, tiverem que recorrer à edição crítica italiana ou sua versão publicada em espanhol. Na área de educação, o pensamento de Gramsci, estudado desde o final dos anos de 1970, tem contribuído para o estudo de questões relacionadas ao Estado, à educação e à escola, às disputas pela hegemonia e às atribuições dos intelectuais (DORE, 2006bDORE, R. Gramsci e o debate sobre a escola pública no Brasil. Cadernos Cedes , Campinas, v. 26, n. 70, p. 329-352, set/dez. 2006b.; JESUS, 1998JESUS, A. T. de. O pensamento e a prática escolar de Gramsci. Campinas, SP: Autores Associados, 1998.; MANACORDA, 1990MANACORDA, M. A. O princípio educativo em Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.; MARTINS, GROPPO, 2010MARTINS, M. F.; GROPPO, L. A. Sociedade Civil e Educação. Campinas, SP: Autores Associados ; Americana, SP: Unisal, 2010.; MOCHCOVITCH, 2001MOCHCOVITCH, L. G. Gramsci e a escola. São Paulo: Ática, 2001.; MORAES, 1978MORAES, C. S. V. Ideologia e intelectuais em Gramsci. Educação & Sociedade , ano 1, n. 1. São Paulo, set. 1978.; 2015MORAES, C. S. V. Trabalho e Educação como pauta do GT Trabalho e Educação da ANPED. Algumas considerações sobre o campo de pesquisa. Revista Trabalho Necessário, NEDDATE - FE - UFF, ano 13, n. 20, 2015.; NOSELLA, 2010NOSELLA, P. A escola de Gramsci. São Paulo: Cortez , 2010.; SAVIANI, 1996SAVIANI, D. Do senso comum à consciência filosófica. 12. ed. Campinas: Autores Associados, 1996. e s/dSAVIANI, D. Gramsci e a educação no Brasil: para uma teoria gramsciana da educação e da escola. (s/d., mimeo).; SILVA, 2016SILVA, D. R. Hegemonia e educação: proposta gramsciana de superação da subalternidade. 2016. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.; MENDONÇA; SILVA; MILLER, 2012MENDONÇA, S. G. de L.; SILVA, V. P. da; MILLER, S. (Orgs.). Marx, Gramsci e Vigotsky. Araraquara, SP: Junqueira & Marin, 2012. ).

No caso dos estudantes de pós-graduação que utilizam as ideias e conceitos gramscianos para elaborar suas teses e dissertações, os autores não necessariamente recorrem ao texto da edição crítica, posto que o pensamento de Gramsci não é seu objeto de estudo, mas um referencial teórico que os auxilia na análise das questões de pesquisa.

Assim, além de prejudicados pelas limitações da edição temática, os estudantes nem sempre fizeram a leitura dos quatro livros disponíveis em português, com exceção, evidentemente, daqueles que tiveram como temática e objeto de estudo o pensamento de Gramsci, como é o caso, por exemplo, de Soares (1992SOARES, R. D. A concepção gramsciana do Estado e o debate sobre a escola. 1992. Tese (Doutorado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1992.) e Vieira (1999VIEIRA, C. E. Historicismo, cultura e formação humana no pensamento de Antonio Gramsci. 1999. Tese (Doutorado em Filosofia e História da Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 1999.).

Chegou-se a essa constatação no estudo dos trabalhos elaborados nos anos 2000, objeto deste artigo, no qual não se encontrou o conjunto dos Cadernos do Cárcere nas referências da maioria das teses e dissertações, seja na versão da edição temática, ou na dos anos de 1990. Mais precisamente, apenas um trabalho citou os seis volumes da nova edição e nenhum deles mencionou os quatro volumes da edição temática. Contudo em cinco trabalhos constam referências aos três volumes mais conhecidos da edição temática: Concepção dialética da história, Os intelectuais e a organização da cultura, Maquiavel, a política e o Estado moderno.

Com a finalidade de conhecer os escritos de Gramsci utilizados pelos autores das teses e dissertações que compõem o escopo deste artigo, procedeu-se ao levantamento de cada título citado por esses trabalhos. No Quadro 1, observa-se que os dois títulos mais citados são da edição temática, a Concepção dialética da história e Os intelectuais e a organização da cultura, a despeito da nova edição brasileira, publicada entre 1999 e 2002, já estar disponível para os que defenderam suas teses após esse período, e que são a maioria, 23 dos 32, conforme informado anteriormente. Prevaleceu o uso da edição temática, portanto, embora vários pós-graduandos tenham usado a nova edição. Em alguns casos, observou-se o uso de livros de ambas as edições.

QUADRO 1
FREQUÊNCIA DAS OBRAS DE GRAMSCI NOS TRABALHOS

Na introdução da nova edição brasileira dos Cadernos, Carlos Nelson Coutinho (2013COUTINHO, C. N. Introdução. In: GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. v. 1. Edição de Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.) discute os limites da edição temática:

Tais problemas se tornaram certamente intoleráveis à medida que esses velhos volumes brasileiros continuam a ser reeditados, inalterados, sem sequer a menção das datas de sua primeira edição e de suas apresentações originais, durante cerca de trinta anos, e sem que fosse possível a seus antigos tradutores e apresentadores (por razões contratuais) controlá-los ou revisá-los. Assim, com o objetivo não só de sanar tais problemas, mas também de ampliar a massa dos textos gramscianos postos à disposição do leitor de língua portuguesa, apresentamos à Editora Civilização Brasileira (agora sob nova gestão) a proposta de uma nova edição brasileira das obras de Gramsci, proposta que foi prontamente aceita (COUTINHO, 2013GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere . Edição Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2013. Volume 1. , p. 38-39).

Desde a publicação da edição crítica italiana e a de sua versão em língua espanhola, tem-se no Brasil a percepção de que estudos mais apurados dos escritos de Gramsci demandam a leitura de toda sua obra, especialmente da parte produzida no cárcere. Embora tardia, a nova edição brasileira representa condição mais favorável ao estudo do pensamento do autor; contudo, nos anos de 2000, ela ainda não estava totalmente disseminada entre aqueles que elegeram as contribuições de Gramsci como referencial teórico de análise em suas teses e dissertações.

Da edição temática, o livro Maquiavel, a política e o Estado moderno foi citado em nove trabalhos, enquanto Literatura e vida nacional não apareceu em nenhum deles.

Em relação à nova edição, o título mais citado foi o volume 2 - Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Se se considerar que há conteúdos semelhantes neste livro e no temático, Os intelectuais e a organização da cultura, esses foram os escritos de Gramsci mais citados nos trabalhos pesquisados.

Dessa nova edição foram citados nas referências dos trabalhos os seis volumes, a saber: além do já mencionado, o volume 3 - Maquiavel, Notas sobre o Estado e a política, em nove trabalhos; o volume 1 - Introdução ao estudo de filosofia. A filosofia de Benedetto Croce, em oito; o volume 4 - Temas de cultura. Ação Católica. Americanismo e Fordismo, em 5; o volume 5 - O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália, em três; e, por último, o volume 6 - Literatura. Folclore. Gramática, em apenas um trabalho. As Cartas do Cárcere também foram citadas em um trabalho.

Em relação aos escritos anteriores ao cárcere, aparecem nas referências os dois volumes dos Escritos Políticos, Conselhos de Fábrica e a Questão Meridional. Os demais textos mencionados, em um ou dois trabalhos, são edições específicas dos escritos de Gramsci.

O conceito de Estado integral foi bastante utilizado pelos autores das teses, e as duas principais obras citadas para essa discussão foram o livro Maquiavel, a Política e o Estado Moderno da edição temática e o volume 3 - Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política, da nova edição, ambos presentes nas referências de nove trabalhos.

O livro A concepção dialética da história e o volume 1 - Introdução ao estudo de filosofia. A filosofia de Benedetto Croce, constam nas referências de 14 e de oito trabalhos, respectivamente. Os dois textos foram usados por vários pós-graduandos com citações literais das formulações de Gramsci, especialmente para se referir à ideologia, à filosofia, à política, à teoria e à prática, à revolução passiva, entre outras noções gramscianas.

Com o objetivo de verificar a presença de intérpretes do pensamento gramsciano nos trabalhos analisados, procedeu-se ao levantamento somente daqueles que foram mencionados pelos autores das teses e dissertações no propósito de explicitar conceitos gramscianos, ou seja, aqueles chamados a contribuir para a compreensão/apresentação do pensamento de Gramsci. Foram encontrados 36 autores no total.

O estudioso/intérprete de Gramsci mais citado pelos autores das teses e dissertações foi Carlos Nelson Coutinho. Suas obras estão presentes nas referências de 23 dos 32 trabalhos analisados. Foram indicados 11 trabalhos deste autor, sendo sete livros e quatro capítulos de livro. Coutinho é autor do livro que apresenta o maior número de citações nas referências do conjunto dos trabalhos, Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político, conforme pode ser conferido no Quadro 2.

QUADRO 2
OBRAS DE CARLOS NELSON COUTINHO CITADAS NAS REFERÊNCIAS DOS TRABALHOS

Coutinho é, sem dúvida, uns dos principais intérpretes e divulgadores do pensamento de Gramsci no Brasil. Sua forte presença nas teses e dissertações analisadas reflete os inúmeros textos que escreveu para divulgar o pensamento de Gramsci, além daqueles em que usou conceitos gramscianos para compreender a realidade brasileira. Os dados do Quadro 2 indicam a influência de Coutinho entre os pesquisadores da área da educação, confirmando sua incidência no que se refere à compreensão do pensamento do autor sardo no Brasil.

Semeraro e Nosella foram citados por seis autores das teses e dissertações entre os intérpretes de Gramsci que contribuíram para a compreensão e uso do pensamento deste autor. Os textos mais citados de Semeraro foram Gramsci e os novos embates da filosofia da práxis e Gramsci e a sociedade civil; o mais citado de Nosella foi A escola de Gramsci, conforme Quadro 3.

QUADRO 3
INTÉRPRETES DE GRAMSCI CITADOS EM CINCO E SEIS TRABALHOS

Luiz Werneck Vianna e Luciano Gruppi foram citados em cinco trabalhos, com atenção para o fato de o livro O conceito de hegemonia em Gramsci, de Gruppi, ter sido citado por quatro autores, denotando que existe certa divulgação desta obra entre os pesquisadores dos cursos de mestrado e doutorado em educação no Brasil. Cabe sublinhar que entre os quatro intérpretes deste grupo três são brasileiros e Luciano Gruppi italiano.

Entre os intérpretes citados em mais de um trabalho, encontram-se também Acácia Kuenzer, Norberto Bobbio, Mario Manacorda, Vitor Paro, José Germano e Antonio Tavares de Jesus (Quadro 4). Com exceção de Bobbio, os demais autores do grupo realizam pesquisas na área de educação, com destaque para Manacorda e Jesus, cujos livros propõem interpretar as contribuições de Gramsci aos estudos sobre educação, O princípio educativo em Gramsci e o Pensamento e a prática escolar em Gramsci, respectivamente.

QUADRO 4
INTÉRPRETES CITADOS EM QUATRO, TRÊS E DOIS TRABALHOS

Assim, dos 11 autores citados em mais de um trabalho, sete são da área da Educação (Semeraro, Nosella, Kuenzer, Mancorda, Paro, Germano e Jesus). Mas, se considerarmos a presença desses autores nas teses e dissertações, verificamos que eles não foram os mais mencionados: suas obras aparecem 26 vezes, contra 36 dos demais autores.

Isso indica que, em certa medida, intérpretes de Gramsci de outras áreas, como a Ciência Política e a Ciências Sociais, têm contribuído de forma significativa para os pesquisadores da Educação que adotam o pensamento gramsciano como referencial teórico.

Em relação à nacionalidade, dos 11 autores que foram citados em mais de um trabalho, tem-se a presença de três italianos, indicando, portanto, que entre os pós-graduandos em educação há a influência de intérpretes italianos de Gramsci, cujas produções datam dos anos de 1970 e 1980. No entanto, não se verificou a presença de autores mais recentes como Guido Liguori, Guiseppe Vacca e Fábio Frosini, todos com livros traduzidos para o português. As publicações destes autores, entre outros que têm trabalhado na mesma perspectiva, são importantes pelos estudos filológicos que realizam, os quais possibilitam compreensão mais precisa da obra de Gramsci.

Por último, foram encontrados 22 autores mencionados num único trabalho. Entre eles estão os que estudam o pensamento de Gramsci, como é o caso de Rosemary Dore Soares, Guiseppe Staccone, Luna Galano Muchcovitch, por exemplo; e aqueles que se apropriam das formulações teóricas de Gramsci para análise de seus objetos de pesquisa, e cujas interpretações foram apropriadas pelos autores das teses e dissertações para melhor explicitação do pensamento de Gramsci, conforme apresentado no Quadro 5. Ainda neste grupo, destaca-se a presença de uma autora, Elizabeth Saramela Nogueira, cuja dissertação de mestrado, analisada neste artigo, foi citada em um dos trabalhos que compõem o escopo da pesquisa, como uma contribuição à compreensão do pensamento de Gramsci.

No Quadro 6, apresenta-se, em forma de síntese, o conjunto dos autores estudiosos/intérpretes do pensamento gramsciano e a quantidade de trabalhos em que foram mencionados.

QUADRO 5
AUTORES CITADOS EM APENAS UM TRABALHO
QUADRO 6
AUTORES INTÉRPRETES DE GRAMSCI E NÚMERO DE TRABALHOS EM QUE FORAM CITADOS

Com base nos dados desse Quadro, pode-se inferir que quatro estudiosos do pensamento gramsciano, Coutinho, Nosella, Semeraro e Gruppi, tiveram maior influência na forma como os autores das teses e dissertações se apropriaram do pensamento de Gramsci. Destes, dois são pesquisadores da área da educação: Nosella e Semeraro.

Um dado interessante é a grande quantidade de autores mencionados em apenas um trabalho, indicando pouca influência deles entre os estudantes de pós-graduação em educação no período.

Por outro lado, convém destacar o fato de nem todos os autores presentes nos trabalhos dos pós-graduandos serem estudiosos da obra de Gramsci, no sentido de estudá-la e divulgá-la. Muitos estudam e usam o pensamento do autor como um referencial teórico para suas pesquisas.

Nesses casos, normalmente a referência aos autores citados foi pontual e serviu para corroborar algo que os autores das teses e dissertações afirmaram com base nos escritos de Gramsci.

De modo geral, os autores das teses e dissertações recorreram tanto à obra de Gramsci, como a dos intérpretes para apresentar os conceitos gramscianos presentes nos trabalhos. Em apenas um trabalho não houve referência direta ou indireta aos escritos de Gramsci e, em quatro, não foram encontradas referências a intérpretes.

No caso em que não houve nenhuma referência direta ou indireta aos escritos de Gramsci, o uso dos estudiosos e divulgadores do pensamento gramsciano deu-se no sentido de o pós-graduando apresentar conceitos/ideias de Gramsci exclusivamente a partir desses intérpretes. Um bom exemplo disso foi a utilização do livro Gramsci 100 anos: revolução e política, de Giuseppe Stacone, para explicar os conceitos de Estado integral e de Bloco Histórico. Outros trabalhos que utilizaram o conceito de sociedade civil de Gramsci se valeram das interpretações de Luciano Gruppi e de Giovanni Semeraro, em alguns casos com mais referências a esses autores do que ao próprio Gramsci.

Geralmente, o pensamento de Gramsci foi apresentado em um capítulo ou sessão do trabalho e nem sempre foi efetivamente utilizado na análise do objeto de estudo. Em alguns casos, pode-se dizer que o pensamento de Gramsci não foi um referencial teórico para o trabalho, no sentido de contribuir para a análise do objeto de estudo, mas se constituiu no máximo em perspectiva epistemológica orientadora do processo de pesquisa.

Verificou-se que várias ideias e conceitos gramscianos foram usados com maior ou menor aderência às análises dos objetos de estudo, indicando que o pensamento deste autor constitui referencial teórico importante para análises de políticas educacionais. Destaca-se, também, que a escolha deste autor expressa determinada perspectiva epistemológica e política na realização da pesquisa.

Algumas considerações para finalizar

Uma compreensão aprofundada sobre os usos do pensamento de Gramsci pelos estudantes de pós-graduação em educação no Brasil exige estudos sobre como ideias e conceitos gramscianos foram apropriados pelos autores. Mas é importante, como contribuição às análises sobre a presença desse autor na área de educação, mais precisamente no campo das políticas educacionais, um levantamento inicial a respeito dos textos de Gramsci mais citados nos trabalhos e quais intérpretes e respectivas obras têm exercido maior influência nas reflexões dos pós-graduandos, tal como apresentado neste texto.

A presença do pensamento de Gramsci em pesquisas de mestrado e doutorado sobre/em políticas educacionais indica a vitalidade e atualidade do autor para a compreensão das questões educacionais de nossa época. Faz-se necessário, portanto, que os escritos gramscianos sejam conhecidos em profundidade, inclusive valendo-se para isso dos estudos filológicos. Embora autores da área da educação estejam presentes entre os intérpretes de Gramsci que orientaram os pós-graduandos, cujos trabalhos foram analisados neste artigo, verificou-se influência maior daqueles vinculados às Ciências Políticas, sugerindo que as pesquisas da área educacional mantêm dialogo importante com o conhecimento teórico advindo de outras ciências da grande área de humanidades.

Acredita-se que a publicação em língua portuguesa de todos os textos escritos no cárcere acompanhados de um aparato crítico é passo importante para orientar os estudos sobre o pensamento do autor. Nesse sentido, considerando que uma edição nacional está em processo de publicação na Itália, entende-se que a tradução para o português dos Cadernos do Cárcere, das cartas e dos escritos anteriores à prisão deva ser com base nessa edição. Até que isso seja feito, é fundamental que os pesquisadores brasileiros estudem “nossa edição crítica”, publicada nos anos de 1990.

Será importante, também, avançar na publicação em língua portuguesa dos principais estudos de caráter filológico que estão sendo produzidos, principalmente pelos italianos, além de promover visibilidade às produções nacionais dessa nova geração de estudos, o que pode ser impulsionado pela International Gramsci Society - Brasil11 11 No site da Internacional Gramsci Society - Brasil é possível encontrar referências da produção brasileira sobre Gramsci. No site da Foundazione Istituto Gramsci de Roma há um amplo levantamento de estudos sobre o pensamento de Gramsci em diversos países. .

Cabe, também, aos programas de pós-graduação e aos orientadores, a partir dos trabalhos já produzidos, estimularem os pós-graduandos que pretendem fazer uso do pensamento gramsciano a lerem a edição dos anos de 1990 dos Cadernos, das Cartas e dos escritos anteriores ao cárcere. Na leitura dos Cadernos é importante dar atenção especial à introdução do volume 1, à cronologia da vida de Gramsci e às notas que ajudam na contextualização da obra. Os estudantes podem consultar também o “índice dos principais conceitos”, presente no volume seis, para localizar conceitos desenvolvidos por Gramsci nos diferentes textos publicados nos seis volumes organizados por Carlos Nelson Coutinho.

Para aqueles que podem acessar a edição crítica italiana, há uma versão em PDF que permite localizar, nas quase 2500 páginas de textos escritos no cárcere, os diversos momentos em que Gramsci faz referência a um termo ou conceito. A tese de doutorado de Deise Rosalio Silva (2016SILVA, D. R. Hegemonia e educação: proposta gramsciana de superação da subalternidade. 2016. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.), pelo estudo que realiza sobre o léxico gramsciano para compreender os conceitos que delinearam a perspectiva educativa de Gramsci e o lugar da educação no pensamento do autor, também constitui material interessante para ajudar na localização dos conceitos na edição crítica italiana dos Cadernos do Cárcere.

A leitura dos intérpretes constitui outro importante exercício para a compreensão do autor em análise, desde que seja feita em conjunto com os escritos de Gramsci. A leitura dos diversos intérpretes é necessária para que se possa construir uma compreensão bem informada das formas de apropriação do pensamento de Gramsci na área, mesmo que essa compreensão não seja acabada, à medida que novas pesquisas são realizadas e outras e mais vigorosas interpretações possam ser empreendidas.

Conclui-se enfatizando que a marcante presença de ideias e conceitos gramscianos em trabalhos sobre políticas educacionais deve ser acompanhada de uma cuidadosa atenção à bibliografia do e sobre o autor.

REFERÊNCIAS

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  • VIEIRA, C. E. O historicismo gramsciano e a pesquisa em educação 1994. Dissertação (Mestrado em Filosofia e História da Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1994.
  • 1
    Refere-se à pesquisa “A produção acadêmica em políticas educacionais no Brasil: características e tendências (2000-2010)”.
  • 2
    O banco encontra-se disponível em: <http://www2.uefs.br/cede/docs/a-producao-academica-em-politicas-educacionais-2000-2010.pdf>.
  • 3
    Na edição crítica, organizada por Valentino Gerratana, publicada pela editora Einaudi em quatro volumes em 1975, ele distingue as notas dos cadernos do cárcere em textos A, B e C. Os textos A são aqueles cancelados por Gramsci e reescritos com modificações nos textos C; os textos B são os de redação única. Na edição brasileira, baseada na edição crítica, o organizador optou por reproduzir apenas os textos B e C, salvo algumas exceções em que os textos A são citados (COUTINHO, 2013COUTINHO, C. N. Introdução. In: GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. v. 1. Edição de Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.).
  • 4
    Felice Platone foi militante do Partido Comunista da Itália.
  • 5
    Palmiro Togliatti foi dirigente do Partido Comunista da Itália.
  • 6
    A edição crítica italiana é composta por 4 volumes, os três primeiros, com cerca de 2.400 páginas, contemplam os escritos de Gramsci, cadernos miscelâneos e especiais, o quarto volume é dedicado ao aparato crítico, “com indicações das fontes que Gramsci utilizou para redigir seus apontamentos, informações sobre fatos e autores que ele cita, um cuidadoso e detalhado índice analítico e onomástico etc., além de uma utilíssima tábua de correspondências entre a antiga edição temática e a nova edição crítica”. (COUTINHO, 2013COUTINHO, C. N. Introdução. In: GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. v. 1. Edição de Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013., p. 28)
  • 7
    Gramsci escreveu 33 cadernos na prisão, sendo quatro de tradução.
  • 8
    Conforme explica Bianchi (2008BIANCHI, A. O Laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008., p. 43), “Os cadernos foram divididos em miscelâneas onde predominam as notas esparsas sobre vários temas (volumes 1 a 9, 14, 15 e 17), e especiais (10 a 13, 16, 18 a 29), mas apresentados contiguamente de acordo com sua numeração”. Em 1932, Gramsci começou a escrever os cadernos especiais. Ele agrupou o material previamente escrito por temas, reformulou a redação anterior e acrescentou passagens inéditas.
  • 9
    Tratam-se dos seis volumes, cuja edição e tradução foram empreendidas por Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, publicada pela Civilização Brasileira.
  • 10
    A “edição Gerratana” é também conhecida por edição crítica. Gianni Francioni teceu uma série de críticas à edição Gerratana e propôs nova datação dos cadernos e separação mais nítida entre os cadernos miscelâneas e especiais (BIANCHI, 2008BIANCHI, A. O Laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008.). Em relação às discussões sobre a edição Gerratana, ver o tópico “L´edizione Gerratana”, no livro “Gramsci conteso: interpretazioni, dibattiti e polemiche”, de Guido Liguori, 2012, p. 248-250. Na Itália, está em processo de publicação uma nova edição dos Cadernos do Cárcere, preparada por Gianni Francioni, Giuseppe Cospito e Fabio Frosini (BIANCHI, 2017BIANCHI, A. Um sardo num mundo grande e terrível. Revista Cult, São Paulo, ano 20, n. 222, p. 26-30, abr. 2017.). Trata-se de projeto mais amplo com a finalidade de publicar toda a obra de Gramsci.
  • 11
    No site da Internacional Gramsci Society - Brasil é possível encontrar referências da produção brasileira sobre Gramsci. No site da Foundazione Istituto Gramsci de Roma há um amplo levantamento de estudos sobre o pensamento de Gramsci em diversos países.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2018
  • Aceito
    17 Out 2018
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