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As experiências espaciais das crianças no espaço urbano

The spatial experiences of children in the urban space

RESUMO

O artigo trata de uma pesquisa que objetivou compreender como tem sido construída a espacialização das crianças em uma cidade de médio porte do Sudeste do Brasil e, desse modo, quais as possibilidades e os constrangimentos que se têm apresentado para elas na contemporaneidade. Como as experiências espaciais das crianças estão sendo desenhadas no cenário contemporâneo? Como elas se movem na cidade? Como se conduzem ou são conduzidas no espaço da cidade? Temos aí uma infância independente ou confinada? A pesquisa realizada com as crianças por meio de oficinas, do uso de imagens, das produções infantis e do diálogo construído com os pesquisadores, buscou registrar e analisar as relações das crianças com o território zonal, as repercussões desse relacionamento para o viver no espaço urbano, e o processo formativo inerente à educação geográfica. Os dados da pesquisa nos mostram que a educação geográfica deve tomar como objeto de preocupação a conexão das crianças com o entorno, para que elas possam pensar no futuro das cidades.

Palavras-chave:
Infância; Espaço Urbano; Educação Geográfica

ABSTRACT

This paper is about a research that aimed to learn about the spatialization of children in a medium-sized city in the Southeast of Brazil and, thus, what possibilities and constraints present for them in the contemporary world. What are children's spatial experiences in the contemporary setting like? How do they move in the city? How do they conduct themselves in the city? Do we have an independent or a confined childhood? The research carried out through workshops, images, children's productions and dialogues with the researchers recorded and analyzed the relationships of children with the zonal territory and the repercussions of that relationship, living in the urban space as well as the formative process related to the geographic education. Research shows that school education needs to occupy the children's connection with the surroundings and with urban life so they can think about the future of cities.

Keywords:
Childhood; Urban Space; Geographical Education

Introdução

As crianças ocupam um lugar especial no contexto social contemporâneo. De acordo com as experiências que vivem, o tratamento que recebem também é diferenciado e, por isso, são muitas as vozes em torno de como são e como elas deveriam ser. Pais, professores, psicólogos, médicos, pedagogos, sociólogos, jornalistas etc. expõem, de modo recorrente, fatos e opiniões sobre as mazelas, os perigos e também as potencialidades, e o destino das crianças no atual cenário histórico, que é marcado pela informação generalizada, pelo encurtamento das distâncias, pela velocidade, efemeridade e fluidez das informações. De modo geral, são alardeadas questões que se fundamentam em uma expectativa social em torno das crianças e da construção de um pensamento sobre elas na atualidade.

Buckingham (2012BUCKINGHAM, D. Repensando a criança-consumidora: novas práticas, novos paradigmas. Revista Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, v. 9, n. 25, p. 43-72, ago. 2012.) chama a atenção para o fato de que, no âmbito social, tem-se produzido um pensamento binário - e muitas vezes confuso - sobre as crianças desse início do século 21. Esse tipo de pensamento pode ser demonstrado de muitas maneiras quando observamos o debate sobre a infância, sendo possível constatar, de modo prevalecente, dois grupos de opinião. Por um lado, a criança é considerada inocente, ingênua, frágil, incompleta, dependente e desprovida de competência para responder aos problemas típicos do atual contexto. Nessa visão, as crianças sofrem com o assédio da mídia e da sociedade de consumo e, ao mesmo tempo, estão mais desamparadas por conta da fragilidade da família e dos problemas da escola, instituições que têm a função de cuidar e protegê-las.

Inversamente, há outra visão muito recorrente no âmbito social quando se focaliza as crianças. Nessa perspectiva, elas são vistas como inteligentes, espertas, sagazes, com grande habilidade para lidar com as tecnologias e, em muitos aspectos, mais preparadas do que os adultos para responderem aos desafios do mundo contemporâneo. Nessa visão, as crianças são autênticas nativas digitais e aparecem como mais habilidosas no domínio da cultura virtual, das redes de comunicação e de outros produtos celebrados pela sociedade de consumo.

Assim, de modo paradoxal, são produzidos pontos de vista antagônicos sobre as feições da infância contemporânea. Em uma mesma sociedade, temos visões que atribuem um enorme empoderamento às crianças e, por outro lado, ideias que as compreendem como seres incapazes e impotentes. Buckingham (2012BUCKINGHAM, D. Repensando a criança-consumidora: novas práticas, novos paradigmas. Revista Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, v. 9, n. 25, p. 43-72, ago. 2012.) vai nos mostrar que, para além desse pensamento polarizado, precisamos olhar na direção de uma compreensão mais complexa envolvendo as crianças e as práticas sociais, até mesmo aquelas relacionadas ao consumo e à mídia. Segundo o autor:

Muitos textos descrevem as crianças como se elas estivessem sendo bombardeadas, assaltadas, assediadas, ou mesmo sujeitas a um “bombardeio de saturação” por parte da mídia: as crianças estão sendo seduzidas, manipuladas, exploradas, sofrendo lavagem cerebral, programadas, associadas a marcas comerciais. E a solução previsível é que os pais façam a contrapropaganda, censurem seus filhos pelo uso que fazem da mídia, ou simplesmente afastem seus filhos das influências comerciais corruptoras. Esses livros raramente incluem a voz das crianças, ou tentam levar em consideração suas perspectivas: trata-se essencialmente de um discurso gerado pelos pais em nome das crianças. (BUCKINGHAM, 2012BUCKINGHAM, D. Repensando a criança-consumidora: novas práticas, novos paradigmas. Revista Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, v. 9, n. 25, p. 43-72, ago. 2012., p. 47, grifo do autor)

Ao que tudo indica, é preciso adotar pressupostos menos extremistas para tratar a infância de modo a escapar dessa dualidade apontada, que torna o debate pouco producente ou menos complexo do que ele efetivamente se apresenta. As crianças contemporâneas, como sugerem essas visões polarizadas, não são ingênuas, passivas, inocentes e nem, por outro lado, sábias e plenamente astutas para dominar e compreender o contexto sociocultural contemporâneo. Elas são sujeitos históricos, constituindo-se e sendo constituídos em um processo complexo e multifacetado.

Ao encontro desse raciocínio, o objetivo deste texto é observar essa questão do ponto de vista das relações espaciais, ou seja, a intenção é pensar de maneira mais detida sobre como tem sido construída a espacialização das crianças e, desse modo, quais as possibilidades e os constrangimentos que se têm apresentado para elas na contemporaneidade. Como as experiências espaciais das crianças estão sendo desenhadas no cenário contemporâneo? Como elas se movem na cidade? Como se conduzem ou são conduzidas no espaço da cidade? Temos aí uma infância independente ou uma infância confinada?

Procuramos desencadear uma pesquisa empírica que colocasse em evidência as questões anunciadas, buscando esclarecer os mecanismos que articulam as relações das crianças com o território zonal da cidade. Essa questão se mostra, hoje, de maior importância para compreendermos as crianças contemporâneas e pensarmos em melhores formas de vida, e de formação delas na escola e no espaço urbano.

Caminhos da pesquisa

Para responder ao problema da pesquisa, adotamos uma proposta metodológica de cunho fortemente qualitativo que buscou recuperar as vozes das crianças inseridas no espaço urbano. A estratégia utilizada foi a realização de oficinas com as crianças, que foram realizadas em uma escola pública da rede municipal, localizada em uma cidade de médio porte do Estado de Minas Gerais1 1 A pesquisa foi realizada em uma escola localizada no setor oeste da cidade. Esse bairro foi criado em 1982 para atender à população de baixa renda e conta atualmente com 15 mil habitantes, tem característica de área residencial, pois se mostra adensado com predomínio de casas. Trata-se de um Bairro fortemente conectado a cidade, por conta da proximidade e das linhas de transporte que propiciam fácil acesso ao centro urbano. Além disso, conta com quase 100% de infraestrutura, como asfalto, rede de água potável e esgoto sanitário, rede de energia elétrica e coleta de lixo. Para preservar a identidade dos envolvidos na pesquisa não citaremos aqui o nome da cidade em que o estudo foi desenvolvido. . As crianças participantes têm entre 9 anos e 10 anos de idade e foram organizadas em dois grupos, sendo que cada um constituiu-se por 28 crianças. Ao estabelecermos contato com a escola, soubemos que essas duas turmas estavam desenvolvendo um estudo sobre a cidade/ município em que vivem. Tal fato levou a pedagoga da escola a sugerir esses dois grupos para realizarmos o trabalho, o que foi acolhido com satisfação pelas professoras. Todo o trabalho de pesquisa foi explicado aos profissionais envolvidos e, assim, obtivemos a concordância e o apoio para a realização da pesquisa. As famílias das crianças participantes do estudo formam um grupo da chamada classe média brasileira. Observamos que não são crianças desprovidas de recursos fundamentais para a sobrevivência, contudo apresentam um padrão de vida modesto e moram em um bairro típico da classe trabalhadora.

Ressaltamos que a oficina se constituiu em um espaço de conversação e produção de narrativas. Buscamos, por meio das atividades desenvolvidas, suscitar um diálogo com as crianças e, assim, observar que narrativas elas constroem sobre a suas experiências espaciais. Nossa observação recaiu sobre a produção de sentidos, recorrências e dissonâncias deflagradas entre si a partir de determinadas atividades e questionamentos propostos a elas.

As oficinas foram pensadas como um momento entre o pesquisador e as crianças. A metodologia privilegiou o diálogo e, mesmo sendo planejada anteriormente, ela se recriou durante o encontro, que foi experimentado de maneira diversa nos dois grupos que compuseram a pesquisa. Tendo as crianças como interlocutoras, o movimento da pesquisa foi o da conversa, da produção de sentidos e de pensamentos. Após os encontros, foram produzidos os diários de campo buscando descrever, de modo detalhado e sistemático, os acontecimentos, os dizeres, os gestos dos interlocutores da pesquisa e o próprio significado da atividade para os pesquisadores.

Inicialmente, projetamos para as crianças um conjunto de imagens que intitulamos “Caminhos para a escola”, constituído de uma série de 12 fotografias que mostram como crianças de diferentes lugares do mundo2 2 As fotografias estão disponíveis em: BOREDPANDA; NĖJĖ, J.25 das viagens mais perigosas e incomuns para escola no mundo. 2014. Disponível em: <http://www.boredpanda.com/dangerous-journey-to-school/>. Acesso em: 20 abr. 2015. vão à escola. Assim, mostrar imagens de outros lugares foi provocar nas crianças um novo olhar, para que elas pudessem pensar sobre o lugar que habitam e nos trajetos que percorrem cotidianamente.

Tomamos as imagens como um objeto de conhecimento e de questionamento sobre outros lugares do mundo e, a partir disso, sobre a própria geografia das crianças. Elas se constituíram como referências para potencializar o diálogo entre o pesquisador e as crianças e, nessa medida, suscitar questionamentos que levaram os participantes a se posicionarem sobre as histórias de crianças no mundo e a falarem sobre a sua própria geografia, sobre as suas práticas espaciais rotinizadas. Assim, usamos de uma estratégia para poder pensar junto com as crianças sobre as suas experiências espaciais. Nossa meta foi compreender: que narrativas as crianças constroem ao entrar em contato com essas imagens? O que os dizeres das crianças nos fazem pensar?

A preocupação da pesquisa não se resumiu em usar as imagens como um documento para ilustrar o encontro com as crianças. Propomos pensar as e com as imagens, pois elas permitem um desdobramento que leva à inquietação e ao exercício de ponderar sobre as próprias referências espaços-temporais. As imagens interpelam as crianças, levam-nas para o terreno do autoquestionamento. Consideramos que as imagens

[...] não são apenas atos e fatos, mas ainda - na temporalidade que toda imagem carrega - lugares de memórias - lembranças, sobrevivências, ressurgências -, revelações de tempos passados, de tempos presentes. Por vezes, até lugares de expectativas - esperanças, prefigurações de tempos que hão de vir, presságios, promessas, desejos. (NOVAES, 2014NOVAES, S. C. O silêncio eloquente das imagens e sua importância na etnografia. Cadernos de Arte e Antropologia, v. 3, n. 2, p. 57-67, 2014., p. 53)

As falas das crianças são permeadas de improvisos, risos, silêncios, do não saber como expressar exatamente aquilo que se queria. Também da contradição e do repensar, do ter que dizer de novo, pois na primeira vez não era bem o que se queria ter dito. Seus dizeres estão, portanto, muito distantes de um discurso construído e registrado por meio de uma entrevista fria. A partir das imagens, a conversa que se desenrolou foi sempre movimentada com improvisos e obliquidades. Frequentemente, uma criança interpelava a fala da outra mostrando concordância ou complementando a ideia expressa. Outras vezes, mostrava discordância e posturas diferenciadas.

Além das imagens projetadas no início da oficina, lançamos mão do trabalho com um mapa da cidade, no qual as crianças foram convidadas a mostrar os percursos que realizam no espaço. Essas atividades foram o mote para a efetivação de um diálogo animado entre elas. Nossa aposta foi a de que as oficinas pudessem capturar as vozes das crianças e nos ajudar a pensar e a entender como elas estão sendo forjadas ou inventadas pelas injunções espaços-temporais do mundo contemporâneo e o que dizem sobre esse processo.

Espaço denso

Muitos estudos clássicos sobre a infância tecem considerações sobre as relações que as crianças estabelecem com o espaço. Ariès (1981ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.), no seminal trabalho intitulado “História Social da Criança e da Família”, obra em que buscou recontar a vida cotidiana das crianças, a história da escola e da família, afirma que a criança pré-moderna gozava de uma liberdade de locomoção mais ampla. Nessa obra, o autor vai mudar o modo de compreender as crianças ao procurar responder uma questão aparentemente simples, mas que possui grande complexidade: por que as crianças são como são, ou melhor, por que as crianças se tornaram como elas são?

Ariès (1981ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.) demonstra que a subjetividade em torno da ideia de infância como um período especial, singular e diferente da fase adulta vai transformar-se na modernidade europeia, sobretudo a partir do século 16. Segundo o autor, essa ideia da infância, como uma fase particular da vida, vai sendo disseminada e enraizada nos séculos subsequentes até se tornar uma visão comumente aceita no mundo ocidental, tal como a concebemos hoje. Essa reconfiguração da ideia de infância põe em cena as particularidades das crianças, que passam a ser contempladas com olhos mais cautelosos pelos adultos. Para o historiador, o fato de que na idade medieval o sentimento de infância não fosse evidenciado não significava que a sociedade da época fosse descuidada com as crianças, nem que elas fossem desprezadas. Segundo o autor: “O sentimento de infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia” (ARIÈS, 1981ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981., p. 97).

A construção simbólica da infância, ocorrida na modernidade, acabou por reduzir o espaço de participação das crianças na vida social. Isso ocorreu em virtude da institucionalização e da privatização delas em instituições educativas sob os cuidados de educadores e nas casas sob os cuidados da família. Isso tem uma repercussão cada vez maior na participação das crianças nos espaços sociais e no decorrente processo de restrição espacial ao qual elas têm sido submetidas na contemporaneidade.

O trabalho de Ariès (1981ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.) influenciou e ainda influencia as pesquisas sobre a infância nos dias de hoje, a despeito dos questionamentos e redimensionamentos analíticos importantes construídos a partir dele. Para pensarmos a infância na perspectiva espacial, esse historiador apresenta uma contribuição relevante, sobretudo porque mostra que as mudanças acerca da ideia de infância, ocorridas na modernidade, vão acontecer de modo concomitante com a reorganização do papel de dois importantes lugares sociais: a casa e a escola. A criança - que na Idade Média crescia e aprendia as coisas do mundo no ambiente comunitário, coletivo e na convivência com os adultos - passa a ser amparada por um fortalecimento da ideia de família e da privacidade da casa. Ao mesmo tempo se fortalece, nesse contexto, a ideia da escola como um espaço especializado para educar as crianças e os jovens. Segundo Ariès:

A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles. A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida a distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. (ARIÈS, 1981ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981., p. 10)

Por mais que a ideia de escola seja hoje tão naturalizada parecendo que sempre existiu, ela é uma construção histórica, tal como a família e a infância. A análise do autor nos permite ver que tanto a casa como um espaço privatizado para o convívio familiar, e a escola como um espaço coletivo destinado à preparação da criança para a vida adulta, foram criações sociais intimamente relacionadas à constituição do sentimento de infância como uma fase singular da vida.

Qvortrup (2014QVORTRUP, J. Visibilidades das crianças e da infância. Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 20, n. 41, p. 23-42, jan./abr. 2014. ) nos mostra que, na perspectiva de análise de Ariès, as crianças pré-modernas faziam parte da vida pública, participavam do tecido social e, nessa medida, elas não eram segregadas nem confinadas no espaço doméstico, “elas eram públicas, no sentido de estar no espaço aberto, e estar no espaço aberto significava uma ampla visibilidade, mesmo que não necessariamente como entendemos atualmente” (QVORTRUP, 2014QVORTRUP, J. Visibilidades das crianças e da infância. Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 20, n. 41, p. 23-42, jan./abr. 2014. , p. 27). Para esse autor, paradoxalmente, as crianças pré-modernas eram mais visíveis do que as modernas, pois elas ocupavam o espaço público, participavam do mundo social, viviam em espaços menos coercitivos e segregados.

Na modernidade, as crianças são invisíveis no espaço público porque foram colocadas à margem dele, em parte devido à nova, e agora bastante consciente, definição da criança como pessoa cuja competência e capacidade estão em compasso de espera, para tornarem-se um verdadeiro membro da comunidade humana, parte porque a criança individual e as crianças como um grupo não são vistas como tendo uma relação com adultos em geral, mas com uma forte tendência de que se restrinjam meramente a seus pais, professores e supervisores. (QVORTRUP, 2014QVORTRUP, J. Visibilidades das crianças e da infância. Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 20, n. 41, p. 23-42, jan./abr. 2014. , p.31)

Em termos espaciais, na perspectiva do autor, ao invés de as crianças terem ganhado visibilidade, ocorreu um processo inverso, pois a segregação espacial delas foi um movimento que se fortaleceu com o decorrer da história e atualmente se mostra exacerbado entre elas.

Desse modo, é preciso analisar que, para além de a infância ter sido um dos projetos mais “bonitos” da modernidade, houve perdas evidentes para ela. Esse fato evidencia uma situação contraditória de construção de certa notoriedade das crianças, ao mesmo tempo em que se gesta a invisibilidade delas no espaço público. Quanto mais as crianças passam a ser protegidas contra os perigos da vida, nos espaços públicos e nas relações com os adultos, menos importante é o papel e participação delas na vida social. Em consequência, menos espaços elas dispõem para viver e experimentar o mundo.

É curioso observar que na modernidade, período em que as relações das crianças com o espaço passam por alterações significativas, ao mesmo tempo em que se pode observar a emergência da escola como um lugar para a infância, o conceito de espaço estava passando por um amplo redimensionamento no contexto social. A emergência do pensamento científico sobre o tema, fundamentado na lógica da natureza, vai ser preponderante para confirmar os contornos do espaço escolar, da sua funcionalidade e utilidade.

Goergen (2005GOERGEN, P. L. Espaço e tempo na escola: a liquefação dos sólidos modernos. Revista Avaliação (Campinas), Unicamp, v. 10, n.2, p. 47-66, 2005.) vai nos mostrar que a organização do espaço escolar, ocorrida na modernidade, foi guiada pelos preceitos científicos alicerçados na valorização das ciências naturais, na busca da ordem e da racionalidade. Ao contrário do período medieval em que o espaço e o tempo eram compreendidos pelos preceitos da divindade e da transcendência, na modernidade esses conceitos foram organizados pela lógica do método científico. Assim, afirma o autor: “Tal como as plantas, as crianças precisam de um lugar adequado e tempos apropriados, de repousos e intervalos regulares. Este procedimento conferirá ao processo educativo a mesma solidez e segurança que a ciência conferiu aos conhecimentos da natureza” (GOERGEN, 2005GOERGEN, P. L. Espaço e tempo na escola: a liquefação dos sólidos modernos. Revista Avaliação (Campinas), Unicamp, v. 10, n.2, p. 47-66, 2005., p. 52).

O tempo e o espaço regidos pelas forças divinas passam, no contexto social da modernidade, a serem regulados pela ciência, pela racionalidade, pela utilidade. A escola foi moldada como um espaço organizado sobre a lógica da disciplina, um espaço de enrijecimento e ordenado por objetivos próprios dos modelos das ciências naturais. É nesse espaço que a criança vai ser introduzida para ser preparada para a vida futura. Nesse contexto, e ainda hoje, a escola é vista como um presente para a criança, um espaço compulsório em que “os conteúdos, os ritmos e os espaços, as divisões e as durações, tudo deve ser inspirado no modelo que a natureza oferece. Há momentos e lugares certos para tudo” (GOERGEN, 2005GOERGEN, P. L. Espaço e tempo na escola: a liquefação dos sólidos modernos. Revista Avaliação (Campinas), Unicamp, v. 10, n.2, p. 47-66, 2005., p. 52).

Os estudos sobre a história da educação atestam que no caso brasileiro, assim como em outros países de colonização portuguesa e espanhola, a rotina escolar foi estruturada por meio de métodos formais que determinavam uma rígida organização de classes, horários, disciplinas, movimentos e atitudes. Vale ressaltar que “tempos e espaços escolares são entendidos pelos religiosos como racionalidades instrumentais. São colocados a serviço de uma ordem que deveria ser estabelecida e, assim, controlada” (THIESEN, 2011THIESEN, J. S. Tempos e espaços na organização curricular: uma reflexão sobre a dinâmica dos processos escolares. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-260, abr. 2011., p. 245, grifo nosso). Por certo, a escola atual ainda conserva, em boa medida, a organização do espaço e do tempo análoga àquela produzida nas primeiras etapas da modernidade.

A escola edificada na fase moderna vai ter o currículo como um guia que, em termos espaciais, segundo Veiga-Neto (2002VEIGA-NETO, A. De geometrias, currículo e diferenças. Revista Educação e Sociedade, São Paulo, n. 79, p. 163-186, ago. 2002., p. 165), “funcionou - e certamente ainda funciona - como o grande dispositivo pedagógico que recolocou, em termos modernos, a invenção grega da fronteira como o limite a partir do qual começam os outros”. Como sabemos, a organização do espaço está sempre a nos ensinar alguma coisa e a organização do espaço escolar se pôs a ensinar às crianças o próprio sentido da fronteira, do limite até aonde se pode chegar para não se deparar com os outros e com o mundo mais amplo. Portanto, temos, nesse período, uma mudança significativa na forma de conceber o uso do espaço pelas crianças. Esse cenário propiciou a difusão de expressões corriqueiras direcionadas às crianças, que ainda hoje são usadas à exaustão: “A rua não é lugar de criança”, “cuidado com estranhos”, “mantenha distância de quem você não conhece”, “lugar de criança é na escola” etc.

Evidentemente, essa perspectiva de análise sobre a constituição da infância e a própria relação dela com o espaço variou significativamente nos distintos contextos e classes sociais. A infância é uma construção cultural e como tal vai sendo gestada, difundida e consentida de modo distinto nos múltiplos contextos históricos e geográficos. Compreendemos que as particularidades não podem ser desfocadas, pois elas acompanham todo o processo de construção social de uma determinada ideia, o que não foi diferente com a disseminação do sentimento de infância. Todo modo de pensar, por mais naturalizado que pareça, possui um modo próprio de ser construído e também de ser disseminado. Nesse processo, certamente a infância deve ser compreendida com outras variáveis, tais como o gênero, a classe e a etnicidade; e, ainda, em sua condição de agency, ou seja, de sujeitos atuantes na produção da sociedade” (LOPES, 2013LOPES, J. J. M. Geografia da infância: contribuições aos estudos das crianças e suas infâncias. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 22, n. 49/1, p. 283-294, maio/ago. 2013., p. 290, grifo do autor).

Não é possível ignorar as enormes desigualdades que marcam as crianças, no passado e no presente, decorrentes das particularidades do grupo social do qual elas são pertencentes e das enormes desigualdades, muitas vezes, presentes em uma mesma localidade geográfica. Tal como alerta Kramer (2006KRAMER, S. Infância, cultura contemporânea e educação contra a barbárie. In: KRAMER, S.; BAZILIO, L. C. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2006., p. 83), a miséria das populações infantis sempre esteve presente na história humana, tornando-se comuns imagens de crianças trabalhando em fábricas e ruas. Para a autora, isso ainda reverbera no presente, pois “até hoje não conseguimos tornar o projeto da modernidade real para a maioria das populações infantis, em países como o Brasil: o direito que as crianças deveriam ter de desfrutar do ócio, de brincar, de não trabalhar” (KRAMER, 2006KRAMER, S. Infância, cultura contemporânea e educação contra a barbárie. In: KRAMER, S.; BAZILIO, L. C. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2006., p. 83).

Mesmo tendo como horizonte a ideia da diversidade da infância, consideramos que as obras mencionadas anteriormente são imprescindíveis para o estudo sobre a infância e a relação dela com o espaço geográfico. Por meio dessas obras, podemos estabelecer um ponto de partida fértil para compreender a espacialidade das crianças no mundo contemporâneo.

O entorno (o domínio, a perda, a busca...): evidências da pesquisa

O entorno tem um papel importante para a constituição dos sujeitos e das relações sociais. A proximidade que interessa aos geógrafos não se limita a uma mera definição das distâncias, mas à relação entre os habitantes numa mesma extensão e a produção do espaço no correr do tempo.

Ao dialogar com as crianças sobre os seus trajetos e experiências espaciais, deixamos que as diferentes visões aparecessem, sem querer produzir um sentido consensual. Ao contrário, tínhamos um interesse especial em observar a multiplicidade de experiências das crianças com o território zonal, que compreende a ideia de área, superfície e extensão. Para incentivar o diálogo, propomos-lhes a construção de itinerários em um mapa que mostrasse o cotidiano delas na cidade, no qual elas representaram os seus deslocamentos e a delimitação do espaço que frequentam durante a semana. No mapa (Figura 1), elas localizaram a casa onde moram, a escola onde estudam e os lugares que normalmente frequentam. A partir dessa localização, solicitamos que construíssem, ainda sobre o mapa, os trajetos que fazem e a delimitação das áreas que frequentam cotidianamente.

Ao analisarmos como se organiza a relação das crianças no espaço zonal, identificamos a configuração de lugares fortes, lugares fracos e lugares movimentos, tal como define Lévy (2001LÉVY, J. Os novos espaços da mobilidade. Geographia, Niterói, v. 3, n. 6, p. 7-22, jul./dez. 2001. ). Os lugares fortes para as crianças pesquisadas são, notadamente, a casa e a escola. Esses se mostram como lugares mais impositivos e foram os primeiros a serem assinalados no mapa. Os lugares fracos são aqueles em que as crianças vão com menor frequência (supermercado, padaria, restaurante, terminal de transporte urbano etc.), apresentado de modo diversificado entre as crianças. Além disso, os alunos identificaram lugares movimentos que podem ser percorridos a pé, de bicicleta, carro, ônibus etc.

A seguir mostramos alguns mapas elaborados pelas crianças sobre a sua rede de lugares frequentados:

Figura 1
Mapas elaborados pelas crianças.

As crianças, ao final da elaboração, mostravam seus mapas para os colegas e falavam sobre os seus trajetos cotidianos, as condições de mobilidade disponíveis, os espaços públicos que visitam, até aonde vão sozinhos, os lugares de lazer e diversão que costumam frequentar etc. Foi possível observar que algumas percorrem trajetos simples e outros trajetos mais complexos, com distâncias maiores abrangendo vários bairros. De maneira geral, os trajetos se mostraram lineares e não cardeais, ou seja, não se verifica nos mapas desenhos de áreas comutadas, mas de linhas retas que ligam lugares fortes, fundamentalmente a casa e a escola.

A maioria das crianças (70%) reside próximo da escola que frequenta. Apesar disso, a maior parte delas faz o trajeto de casa até a escola de carro e acompanhadas pelos pais. Observamos que o grupo de crianças pesquisado é altamente confinado. A mobilidade autônoma é baixa e a criança está sujeita a uma forte regulação, pelos adultos, em relação ao espaço e tempo.

O discurso sobre os riscos da cidade e da rua foram preponderantes entre as crianças. Assim, observamos que a condição urbana delas é marcada por uma fraca sociabilidade com o entorno, o que tem repercussões importantes na formação sociocultural delas. Apenas 10% das crianças vão sozinhas para a escola, locomovendo-se a pé ou de bicicleta. Esse é também o único grupo que afirmou já poder caminhar pelo bairro sem acompanhamento de um adulto. Essas crianças andam de bicicleta e jogam bola na rua. Além disso, uma brincadeira apareceu como preferida para esse grupo: apertar a companhia das casas circunvizinhas e sair correndo, para procurar um abrigo e não ser visto. Nesse grupo, o Skate apareceu como um artefato importante. Observamos que esse grupo é fortemente constituído por meninos.

As crianças demonstraram gostar do bairro onde moram. Dizem que ele é relativamente sossegado, porém relatam a existência de ladrões que invadem as casas e também praticam assalto nas ruas. Além disso, muitas relataram casos de atropelamento e acidentes de trânsito. De maneira recorrente, a rua da escola foi considerada como sendo a pior do bairro, por causa do trânsito congestionado e dos constantes embates entre pedestres e motoristas, que acontecem nos momentos de intenso fluxo, percebidos na entrada e saída das crianças da escola.

Observamos também que as crianças estão andando pouco a pé e que a maior parte dos deslocamentos é feita de carro. A prática cotidiana da caminhada já não existe mais para a maioria das crianças que participaram da pesquisa, o que remonta a uma transformação significativa no modo de viver na cidade.

De modo geral, locomover-se de ônibus também se mostrou uma opção pouco interessante para as crianças. O grupo que tem maior mobilidade autônoma, sobretudo com o costume de andar de bicicleta, demonstrou gostar mais dessa opção. O grupo majoritário, com pouca mobilidade autônoma, prefere o carro, sendo que a justificativa sempre faz referência ao fato de que “o carro não deixa a gente cansado”, “o carro é mais rápido”, “o carro é confortável”. O culto ao automóvel se mostrou forte entre as crianças participantes da pesquisa, o que é expressão de um modo de vida urbano, quando pensamos que “o automóvel oferece uma couraça muito potente para quem deseja separar o mundo de seu espaço íntimo” (LÉVY, 2001LÉVY, J. Os novos espaços da mobilidade. Geographia, Niterói, v. 3, n. 6, p. 7-22, jul./dez. 2001. , p. 5).

O diálogo seguinte, entre duas crianças e a pesquisadora, é ilustrativo sobre essa questão:

Rodrigo: O meu mapa é esse. Eu venho de carro para a escola com o meu pai. Só no final de semana vou para a casa da minha avó.

Pesquisadora: O que você prefere: caminhar, andar de bicicleta, de ônibus ou de automóvel?

Rodrigo: Eu prefiro carro.

Samuel: Eu prefiro mil vezes bicicleta. É bem mais divertido. A minha mãe pede para eu ir ao supermercado para ela e já venho para a escola de bike todo dia.

Rodrigo: Eu não. O carro é melhor, é bem mais rápido. Acho que é mais seguro.

Samuel: Não é, pode acontecer acidente.

Rodrigo: Mas dentro do carro é mais seguro, eu não tenho medo.

Pesquisadora: Do que você tem medo?

Rodrigo: Tenho medo dos malandros. Eles fazem assalto, tomam as coisas da gente.

O uso majoritário do carro como meio de transporte, associada à baixa mobilidade autônoma denota um contexto em que as crianças foram sendo desestimuladas a andar por causa das inúmeras preocupações e interdições relacionadas aos espaços públicos. Demonstra também que elas vivem um tipo de modalidade de segregação urbana, marcada por um processo de isolamento social e de baixo convívio e participação nas relações sociais que se delineiam no entorno. Historicamente, à medida que as cidades crescem, as crianças vão paulatinamente perdendo autonomia, liberdade e independência de mobilidade, e o seu papel na vida da cidade vai tornando-se mais restrito. Qvortrop (2014) nos mostra que Ariès (1981ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.), ao assinalar a questão da participação e da proteção da infância assentida na modernidade, lamentou o que entendeu como uma diminuição do papel das crianças na trama social e foi crítico em relação a uma proteção que se desenvolveu na forma de encarceramento e que, posteriormente, tornou-se um entendimento positivo de proteção, como controle cada vez maior de crianças” (QVORTROP, 2014QVORTRUP, J. Visibilidades das crianças e da infância. Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 20, n. 41, p. 23-42, jan./abr. 2014. , p. 30). Portanto, o afastamento da criança da conivência dos espaços públicos diz respeito à constituição da infância e, também, da constituição da vida nas cidades.

Historicamente, ocorreu uma diminuição do poder das crianças no âmbito social e as progressivas medidas de proteção têm como preço a intensa segregação espacial delas. As crianças foram configuradas como seres em cadência de espera, cuja completude sempre se dará no futuro, são compreendidas como frágeis e vulneráveis e por isso precisam permanecer em espaços restritos e controlados. Verificamos claramente essa situação entre as crianças pesquisadas. Os rígidos muros continuam sendo fundamentais na vida delas, estabelecendo o espaço de dentro e o de fora, a separação, os lugares consentidos e os lugares proibidos.

Por outro lado, o intenso fluxo de notícias sobre a violência na cidade, que são propaladas pela mídia, certamente tem um papel importante para explicar tal situação. O medo da cidade é um discurso forte e preponderante entre os habitantes. Tal fato tem uma repercussão direta na vida das crianças, que estão sendo impedidas de se locomover no espaço urbano.

Observamos que as crianças pesquisadas raramente têm a permissão para ficar na rua e o deslocamento delas ocorre entre ilhas: se não estão em casa, estão na escola, na casa da avó ou em outro lugar alambrado, atrás de paredes ou de grades. Ainda que circulem por diferentes lugares na companhia de adultos, não se apropriam da cidade, pois estão sempre confinadas, vigiadas.

Ressalta-se ainda o fato de que as crianças pesquisadas demonstraram pouca frequência em locais de lazer e que se locomovem pouco a passeio. Esses deslocamentos ficam circunscritos à casa dos avós, tios e outros parentes. É importante dizer que, sob esse aspecto, a prática dos espaços urbanos se encontra de fato empobrecida, sobretudo no que diz respeito aos espaços públicos, tais como praças e parques. Esses espaços são propulsores do contato com os pares, da copresença, do brincar livremente e se relacionar com espaços mais amplos.

Além disso, brincar na rua não se mostrou como uma opção viável entre as crianças pesquisadas. Isto é algo bastante contraproducente, pois sabemos que as ruas poderiam ser mais do que lugares onde circulam carros e pessoas apressadas. A rua pode potencializar o encontro, o convívio, e mesmo, o brincar. É um espaço que poderia potencializar a cidadania e a promessa de se pensar no futuro comum dos habitantes da cidade. Contudo, a visão recorrente que as crianças têm da rua é indubitavelmente relacionada ao risco, conforme se pode constatar no diálogo seguinte:

Pesquisadora: Onde você costuma encontrar os amigos, brincar?

Criança: Quando eu estou na casa da minha avó eu brinco com os meus primos. Mas em casa eu brinco sozinha.

Pesquisadora: Além da escola e da casa da sua avó que lugares você frequenta durante a semana?

Criança: Eu fico em casa.

Pesquisadora: E nos finais de semana? Onde você costuma ir?

Criança: Só na casa da minha avó.

Pesquisadora: E na rua, você brinca?

Criança: Não. A rua é muito perigosa. Minha mãe não deixa.

Pesquisadora: Por que a rua é perigosa?

Criança: Existem pessoas do mal que fazem maldade com crianças.

Pesquisadora: E o trânsito da sua rua, como é?

Criança: Passa carros e motos. É perigoso.

Assim, os dados evidenciam claramente o afastamento das crianças do espaço público e da vida coletiva. Seu encarceramento em espaços regulados e permanentemente administrados, como a casa e a escola, é uma realidade para a maioria delas. As crianças mostraram que as brincadeiras acontecem no espaço doméstico, nas próprias casas ou de parentes próximos. Assim, os relatos delas indicam para uma vida na cidade em que a coexistência ocorre sem a copresença, pois elas participam de mundos isolados que não estabelecem comunicação e encontros umas com as outras. Embora a cidade e, sobretudo as ruas, possibilitem a relação com os “outros”, a interação entre os habitantes de fato não ocorre, em virtude das sujeições e impedimentos conferidos ao estar junto, ao reconhecimento mútuo e, portanto, a copresença. Como sabemos, tais aspectos são seminais para a construção da cidadania.

Indubitavelmente, as crianças pesquisadas passam muito tempo dentro de casa. Contudo, elas demonstram o desejo de sair, de viver em espaços em que o corpo não fique passivo, mas em movimento. Não é à toa que o espaço do recreio das escolas se mostrou como um dos mais importantes para elas quando pensam no brincar e no contato com outras crianças. Elas demonstram a necessidade de participar de espaços mais amplos que lhes permitam o movimento corporal, de experiências em espaços amplos e diversificados, marcados pelo convívio com outras crianças.

Certamente, o confinamento espacial produz constrangimentos e consternação, pois ele acontece em uma sociedade que privilegia o elogio da velocidade, da fluidez, da conexão. Apesar disso, paradoxalmente e de maneira geral, as crianças não reclamam do bairro. Observamos que as calçadas estreitas e a falta de lugar para o lazer e as brincadeiras aparecem como um dado naturalizado, como se dissessem “é assim que é a cidade”. Nenhuma criança questionou o fato de que o bairro dispõe apenas de uma pequena praça que fica na extremidade dele. Além disso, verificamos que poucas crianças conhecem cidades diferentes, ou mesmos, outros bairros da cidade onde moram. Assim, a percepção que têm do espaço urbano parece ser pouco marcada pela experiência corporal nos espaços. Devido ao confinamento exacerbado e a vivencia em espaços segregados, as crianças vivem de maneira insipiente e limitada à cidade e, nessa medida, o que se percebe é que elas apresentam um desconhecimento a respeito de outras possíveis experiências. Assim, há uma manifesta falta de parâmetros para poder avaliar, de maneira questionadora e criativa, a própria experiência espacial vivida.

Contudo, chamou-nos a atenção a preocupação das crianças em relação à rua da escola que, na opinião delas, poderia ser mais bem organizada para facilitar os momentos de entrada de saída, pois eles registram um grande fluxo de automóveis e pessoas. A escola se mostra como forte espaço social, um espaço de encontro e, seguramente, a rua da escola poderia ter um uso diferente, uma vez que é uma extensão dele. É interessante observar que o incômodo das crianças em relação à rua da escola demonstra uma vontade de que aquele espaço se tornasse um lugar de troca e de brincadeira, mais do que para o carro e para o tumulto de pessoas que entram e saem da escola. O diálogo a seguir mostra essa situação:

Carlos: Eu adoro brincar no recreio. Mas ele é muito rápido. Não dá tempo para lanchar e brincar. A gente sempre tem que parar a brincadeira.

Pesquisadora: Por que será que vocês gostam tanto do recreio?

Carlos: Por que a gente fica cansado das aulas e tem os amigos, muitos amigos para brincar.

Pesquisadora: Que outros lugares da escola você acha que poderiam ser usados para vocês brincarem.

Carlos: Eu acho que a gente pode brincar na porta da escola. A gente fica esperando o portão abrir sem fazer nada, de pé.

Pesquisadora: Mas por que vocês não brincam?

Carlos: Não tem jeito. É uma confusão, carro, bicicleta.

Karina: Eu acho que tinha que fechar a rua, só para as crianças. Aí a gente ia esperar a aula brincando.

Marcelo: Nossa... boa ideia. A gente poderia chegar mais cedo...

Caio: Eu concordo!

Esse assunto gerou uma conversa animada entre as crianças. Vimos se delinear ideias para a organização do espaço e a afirmação de uma perspectiva de construção de outra cidade, levando em consideração as necessidades e os desejos das crianças. Interessante observar que essa sugestão foi detonada por uma criança que tem mais mobilidade autônoma e que, inclusive, vai sozinha para a escola. Tal como afirma Cavalcanti (2013CAVALCANTI, L. de S. Jovens escolares e a cidade: concepções e práticas espaciais urbanas cotidianas. Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, Volume Especial, n. 35, p. 74-86, 2013., p. 77):

A cidade, desde as últimas décadas do século XX, tem sido produzida para atender às demandas da sociedade: global, informatizada e midiática; mas também ela é composta por diferentes sujeitos, diferentes grupos humanos, que realizam práticas e comportamentos urbanos diversos. A cidade é, pois, um espaço multicultural, é o lugar da copresença, da coexistência. Nessa compreensão de cidade, sua realidade e projetos, há de se fazer distinção entre os diversos grupos, seus desejos, anseios, rotinas, estilos e a desigualdade de participação social. A cidade a se almejar é o lugar da diferença, do contato, do conflito, em busca de menor divisão/separação espacial, menor dispersão, maior convívio entre os diferentes, menor desigualdade social.

Os dados da pesquisa nos mostram que a educação geográfica deve tomar como objeto de preocupação a conexão das crianças com o entorno para que elas possam pensar no futuro das cidades. O trabalho de imaginar um lugar que respeite o tempo e o espaço da infância depende, em boa medida, da possibilidade de tornar mais viva e questionadora a relação das crianças com o espaço urbano, a observação atenta sobre o que acontece na vizinhança, os problemas, as faltas, os excessos.

Considerações finais

Quando as crianças são convidadas a contar histórias sobre a vida na cidade, conversar com os colegas sobre os problemas e os acontecimentos bons do lugar, e dar opinião, é possível observar que elas expõem saberes consistentes sobre o entorno. Além disso, elas explicam, com destreza, as redes de lugares frequentados e mostraram-se interessadas pelo entorno, pela composição dos seus lugares e percursos. Mais do que isso, presenciamos a construção de propostas de novos arranjos espaciais, novas possibilidades de vida urbana.

Os modos de estar no mundo não são fixos e imutáveis, mas se reconfiguram em decorrência das transformações sociais e do modo como os próprios sujeitos se põem a imaginar o espaço. Como afirma Harvey (2004, p. 210), “ao produzirmos coletivamente nossas cidades, produzimos coletivamente a nós mesmos. Projetos referentes ao que desejamos que sejam nossas cidades são em consequência projetos referentes a possibilidades humanas”. A tarefa de pensar o futuro da cidade precisa também incluir a perspectiva infantil. A imaginação das crianças pode ser um fator dos mais importantes para repensar a construção, organização e ocupação dos espaços urbanos. Para pensar o entorno não apenas na perspectiva da perda, mas também do domínio e da busca de perspectivas para melhor habitá-lo.

REFERÊNCIAS

  • ARIÈS, P. História social da criança e da família Rio de Janeiro: LTC, 1981.
  • BOREDPANDA; NĖJĖ, J.25 das viagens mais perigosas e incomuns para escola no mundo 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.boredpanda.com/dangerous-journey-to-school/ >. Acesso em: 20 abr. 2015.
    » http://www.boredpanda.com/dangerous-journey-to-school/
  • BUCKINGHAM, D. Repensando a criança-consumidora: novas práticas, novos paradigmas. Revista Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, v. 9, n. 25, p. 43-72, ago. 2012.
  • CAVALCANTI, L. de S. Jovens escolares e a cidade: concepções e práticas espaciais urbanas cotidianas. Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, Volume Especial, n. 35, p. 74-86, 2013.
  • GOERGEN, P. L. Espaço e tempo na escola: a liquefação dos sólidos modernos. Revista Avaliação (Campinas), Unicamp, v. 10, n.2, p. 47-66, 2005.
  • KRAMER, S. Infância, cultura contemporânea e educação contra a barbárie. In: KRAMER, S.; BAZILIO, L. C. Infância, educação e direitos humanos São Paulo: Cortez, 2006.
  • LÉVY, J. Os novos espaços da mobilidade. Geographia, Niterói, v. 3, n. 6, p. 7-22, jul./dez. 2001.
  • LOPES, J. J. M. Geografia da infância: contribuições aos estudos das crianças e suas infâncias. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 22, n. 49/1, p. 283-294, maio/ago. 2013.
  • NOVAES, S. C. O silêncio eloquente das imagens e sua importância na etnografia. Cadernos de Arte e Antropologia, v. 3, n. 2, p. 57-67, 2014.
  • QVORTRUP, J. Visibilidades das crianças e da infância. Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 20, n. 41, p. 23-42, jan./abr. 2014.
  • THIESEN, J. S. Tempos e espaços na organização curricular: uma reflexão sobre a dinâmica dos processos escolares. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-260, abr. 2011.
  • VEIGA-NETO, A. De geometrias, currículo e diferenças. Revista Educação e Sociedade, São Paulo, n. 79, p. 163-186, ago. 2002.
  • 1
    A pesquisa foi realizada em uma escola localizada no setor oeste da cidade. Esse bairro foi criado em 1982 para atender à população de baixa renda e conta atualmente com 15 mil habitantes, tem característica de área residencial, pois se mostra adensado com predomínio de casas. Trata-se de um Bairro fortemente conectado a cidade, por conta da proximidade e das linhas de transporte que propiciam fácil acesso ao centro urbano. Além disso, conta com quase 100% de infraestrutura, como asfalto, rede de água potável e esgoto sanitário, rede de energia elétrica e coleta de lixo. Para preservar a identidade dos envolvidos na pesquisa não citaremos aqui o nome da cidade em que o estudo foi desenvolvido.
  • 2
    As fotografias estão disponíveis em: BOREDPANDA; NĖJĖ, J.BOREDPANDA; NĖJĖ, J.25 das viagens mais perigosas e incomuns para escola no mundo. 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.boredpanda.com/dangerous-journey-to-school/ >. Acesso em: 20 abr. 2015.
    http://www.boredpanda.com/dangerous-jour...
    25 das viagens mais perigosas e incomuns para escola no mundo. 2014. Disponível em: <http://www.boredpanda.com/dangerous-journey-to-school/>. Acesso em: 20 abr. 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2019

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2018
  • Aceito
    27 Nov 2018
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