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Saberes e profissionalidade de egressos do curso de Pedagogia das Águas: a formação inicial em foco

Knowledges and professionality of the Water Pedagogy course graduates: a focus on the early training

RESUMO

O presente artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que teve por objetivo investigar como egressos do curso de Pedagogia constroem sua profissionalidade docente, no contexto de educação rural ribeirinha amazônica. O estudo insere-se no entrecruzamento das temáticas de formação docente, profissionalidade docente e educação ribeirinha. O referencial teórico assenta-se nos estudos de Roldão (2005)ROLDÃO, M. do C. Formação de professores, construção do saber profissional e cultura da profissionalização: que triangulação? In: ALONSO, L.; ROLDÃO, M. do C. (Orgs.). Ser professor de 1º ciclo - construindo a profissão. Braga: CESC/Almedina, 2005. p. 13-26.; Contreras (2002)CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.; Tardif (2002)TARDIF, M. Saberes Docentes e Formação Profissional. Trad. Francisco Pereira. Petrópolis: Vozes, 2002.; Nóvoa (1999)NÓVOA, A. Profissão Professor. Porto: Porto Editora, 1999. e Chakur (2001)CHAKUR, C. R. de S. L. Desenvolvimento profissional docente: contribuições de uma leitura piagetiana. Araraquara, SP: JM, 2001.. Para a coleta dos dados, foram realizados junto aos egressos do curso de Pedagogia das Águas, do Campus de Abaetetuba, da Universidade Federal do Pará, dois grupos focais. Após a coleta e transcrição dos dados, eles foram agrupados e analisados por meio de categorias a posteriori, fazendo uso do referencial teórico-metodológico adotado para a pesquisa. Os resultados da investigação mostraram o lugar ocupado pelos conhecimentos advindos da formação acadêmica e dos saberes construídos na e pela prática profissional. Indicaram que essas duas modalidades de conhecimentos ainda não se articularam, uma vez que os participantes valorizaram mais a prática do que a teoria.

Palavras-chave:
Educação ribeirinha; Profissionalidade docente; Formação docente

ABSTRACT

This paper presents the outcomes of a piece of research whose aim was to investigate how Pedagogy graduates build up their teaching professionality, in the realm of riverine rural education in the Amazonian region. The study finds itself in the thematic domain of teachers’ training, teaching professionality, and riverine education. The theoretical framework is based in studies by Roldão (2005)ROLDÃO, M. do C. Formação de professores, construção do saber profissional e cultura da profissionalização: que triangulação? In: ALONSO, L.; ROLDÃO, M. do C. (Orgs.). Ser professor de 1º ciclo - construindo a profissão. Braga: CESC/Almedina, 2005. p. 13-26.; Contreras (2002)CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.; Tardif (2002)TARDIF, M. Saberes Docentes e Formação Profissional. Trad. Francisco Pereira. Petrópolis: Vozes, 2002.; Nóvoa (1999)NÓVOA, A. Profissão Professor. Porto: Porto Editora, 1999., and Chakur (2001)CHAKUR, C. R. de S. L. Desenvolvimento profissional docente: contribuições de uma leitura piagetiana. Araraquara, SP: JM, 2001.. For data collection, two focus groups were created comprising graduates from the Water Pedagogy course of the Federal University of Pará campus in Abaetetuba. After collection and transcription, the data were assembled according to a posteriori categories, by using the theoretical-methodological framework adopted in research. The research results showed the place occupied by the knowledge derived from the academic formation and the knowledge built in and by the professional practice. They indicated that these two types of knowledge have not yet articulated, as the practice is more valued then the theory.

Keywords:
Riverine education; Teaching professionality; Teachers’ training

Introdução

O término do curso de Pedagogia assinala o momento em que se deixa de ser formalmente aluno para ingressar na vida profissional docente. Justamente por ser um momento de transição, cabe estudar como se dá o ingresso no magistério, como se constrói e consolida-se a profissionalidade docente. Este artigo buscar mostrar como isso se passou nos egressos do curso de Pedagogia das Águas, desenhado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em parceria com as lideranças locais e os movimentos sociais. Sua proposta foi a de elaborar um curso que trabalhasse e valorizasse as características locais da população, de modo a atingir um duplo propósito: formar bem os alunos que atuariam, futuramente, como professores na zona ribeirinha do estado, para que eles, em conjunto com sua comunidade, pudessem se fortalecer para buscar as melhorias que almejadas para suas escolas e suas vidas. O Projeto Pedagógico do curso volta-se especificamente para pessoas vinculadas aos Planos de Assentamentos Agroextrativistas1 1 Nas Ilhas de Abaetetuba foram criados Projetos de Assentamentos Agroextrativistas (PAE’s). Os PAE’s são unidades de produção agrícola, criadas por meio de políticas governamentais visando ao reordenamento do uso da terra, em benefício dos trabalhadores rurais sem terra. , tendo em vista que os primeiros a serem regulamentados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) foram implantados em Ilhas de Abaetetuba. O curso volta-se especificamente para essa população, cujo nome já aponta sua identidade ligada às Águas.

Para a coleta de dados, foram realizados dois grupos focais (GF), ao todo, participaram 10 (dez) egressas do curso. Segundo Gatti (2005)GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e humanas. Brasília: Líber Livro, 2005., a seleção dos participantes do GF deve privilegiar alguns critérios, conforme o problema em estudo. No entanto, é preciso que os participantes apresentem características comuns que os qualifiquem para a discussão do que está sendo estudado. Desse modo, espera-se que eles tenham familiaridade e ou vivência com o tema a ser discutido, propiciando enriquecer a troca de informações. Para a presente pesquisa, a referida técnica foi realizada com um grupo específico: ex-alunos egressos do curso de Pedagogia das Águas, lecionando na educação básica. Os critérios adotados para a seleção dos participantes foram: ter concluído o curso de Pedagogia das Águas; estar trabalhando atualmente como professor; aceitar participar da pesquisa. Para a realização dos GFs foi seguido um roteiro de perguntas previamente elaborado, com questões que versavam sobre: Identificação dos entrevistados, formação no curso de pedagogia das águas, experiência profissional e sobre profissionalidade docente.

As participantes dos dois grupos focais eram todas do sexo feminino e da mesma faixa etária: a mais nova tinha 30 anos de idade e a mais velha 43. Duas estavam cursando pós-graduação e três já possuem curso de especialização; as outras cinco não possuem pós-graduação e nem estão cursando. O tempo de trabalho no magistério variava: no mínimo dois e no máximo 22 anos de experiência. Sobre a experiência profissional, além do magistério, uma delas relatou ter trabalhado como coordenadora pedagógica de uma escola. O tempo de trabalho na escola em que estavam lotadas também variava: de 2 até 17 anos. Das dez participantes do grupo focal, cinco são concursadas e cinco são contratadas. O critério de seleção para participar da pesquisa, além de ter se graduado pelo curso de Pedagogia das Águas, era estar trabalhando como docente na educação básica.

As conversas foram gravadas e posteriormente, transcritas. Os dados foram agrupados segundo categorias de respostas a posteriori, construídas com base no que os participantes informaram. Assim, buscando contemplar diferentes aspectos que surgiram nos relatos obtidos, agrupando temáticas por diferenciação, semelhança ou contradição, foram formadas as categorias de análise. Essas últimas, por sua vez, foram analisadas com base no referencial teórico adotado (NÓVOA, 1999NÓVOA, A. Profissão Professor. Porto: Porto Editora, 1999.; SACRISTÁN, 1999SACRISTÁN, G. Consciência e acção sobre a prática como libertação profissional dos professores. In: NÓVOA, A. Profissão Professor. Porto: Porto Editora, 1999.; CONTRERAS, 2002CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.; CHAKUR, 2001CHAKUR, C. R. de S. L. Desenvolvimento profissional docente: contribuições de uma leitura piagetiana. Araraquara, SP: JM, 2001.; ROLDÃO, 2005ROLDÃO, M. do C. Formação de professores, construção do saber profissional e cultura da profissionalização: que triangulação? In: ALONSO, L.; ROLDÃO, M. do C. (Orgs.). Ser professor de 1º ciclo - construindo a profissão. Braga: CESC/Almedina, 2005. p. 13-26.) e à luz das informações trazidas por meio da revisão da literatura.

Análise e interpretação dos dados

Os dados dos grupos focais foram organizados em categorias de análise, definidas a partir do discurso das participantes, agrupados por suas semelhanças, diferenças e contradições, indicando aspectos que apareceram com mais significância nas falas que, por sua vez, giraram em torno do objetivo da pesquisa. Foram elas: A escolha profissional; A formação no curso de Pedagogia das Águas; O aprendizado de ser professor; Saberes necessários para trabalhar junto às comunidades ribeirinhas; Profissionalidade: aquilo que é específico do “Ser Professor”.

A escolha profissional

Ser professora sempre esteve presente na vida de Débora que, desde pequena, pegava o carvão e riscava a parede, fingindo ser a docente de uma sala de aula. Vera também decidiu lecionar muito cedo, quando da entrada na escola. Os relatos abaixo apontam, a forte influência da família e/ou de outras pessoas próximas, incluindo-se aí os professores, na escolha pelo magistério. Segundo Goodson (1992)GOODSON, I. Dar a voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o seu desenvolvimento profissional. In: Nóvoa, A. (Org.). Vida de professores. Porto: Porto Editora, 1992., a lembrança de um docente marcante não só interfere na escolha profissional como delineia quais são as características desejáveis que devem ser seguidas e imitadas, no futuro. Vejamos as falas:

“A minha mãe foi professora também e eu convivia nesse espaço, porque a nossa casa era a sala de aula. Então, eu fui crescendo nesse espaço” (Débora)2 2 Os nomes usados são fictícios, para assegurar o anonimato das entrevistadas. .

“Eu decidi quando eu comecei a estudar. A Francisca, que hoje é minha diretora na Escola em que eu trabalho, era a minha professora. Ela que foi a minha primeira professora. Eu via o jeito dela trabalhar e aquilo me encantava. Eu pensei: - ‘quando eu crescer, eu quero ser igual a minha professora’! Quando eu comecei a estudar no magistério, quando eu fui fazer estágio e tive contato com a sala de aula e com as crianças, aí pronto! Despertou mesmo (a vontade de ser professora), que não teve mais jeito” (Vera).

Para algumas entrevistadas, a decisão de lecionar foi mais uma questão de oportunidade, surgida quando se abriu a Licenciatura em Pedagogia das Águas voltada para assentados em formação com características de Educação do Campo:

“Eu acho que foi por causa da Pedagogia das Águas. Primeiro, teve a divulgação que seria pelo assentamento; a questão de ser, de partir do campo, me chamou muito a atenção... Por isso que eu digo que foi a Pedagogia das Águas que me fez querer entrar na docência” (Alice).

“Veio a oportunidade de cursar Pedagogia das Águas e, nesse curso, eu me apaixonei! Como a Bol falou, foi uma experiência ímpar na nossa vida: é uma coisa que a gente vai levar para sempre” (Débora).

Ainda que para algumas das participantes desse estudo a carreira docente não fosse a principal motivação, frequentar a Pedagogia das Águas, um curso no qual a forma de vida dos sujeitos dos campos é levada em consideração, respeitando as raízes culturais e identitárias dessa população, despertou nessas alunas o desejo de “serem professoras” e, mais, de serem professoras no meio rural:

“Mesmo que a gente nem quisesse ser professora, a Pedagogia das Águas fez a gente se apaixonar pela docência” (Rafa).

A formação no curso de Pedagogia das Águas

Sobre a formação recebida ao longo do curso de Pedagogia das Águas, dois aspectos foram bastante enfatizados: conhecer bem os “alunos com os quais iríamos trabalhar” e “sentir-se ribeirinha”. O primeiro aspecto preponderou dentre as participantes que já trabalhavam em sala de aula, cabendo ressaltar que todas indicaram que o curso de Pedagogia das Águas como o principal responsável por proporcionar experiências formativas que possibilitassem a reflexão na ação e sobre a ação:

“O curso de Pedagogia das Águas me fez refletir muito sobre a minha prática em sala de aula. A gente não deve levar aquela coisa pronta e acabada para eles (os alunos)” (Helena).

O segundo aspecto, por sua vez, surgiu com mais força entre as participantes que ainda não lecionavam, revelando o impacto do curso na visão que tinham acerca de aluno e, também, na que faziam de si mesmas. As entrevistadas verbalizaram, assim, duas vertentes de mudança: reconhecer o aluno como um sujeito ribeirinho, bem como reconhecer-se ribeirinha:

“A partir do momento que a gente se valoriza como ribeirinho, a gente começa a mudar a concepção das outras pessoas também e isso a gente transmite para os nossos alunos. Nós não vamos dizer para os nossos alunos: ‘você é filho de pescador e pescador não vale nada’ e, sim, ensiná-lo a valorizar que ele é filho de pescador com muito orgulho. Quer dizer, você muda a sua concepção e transmitimos isso para os nossos alunos” (Laura).

Um aspecto também muito frisado foi o fato de se ter utilizado a proposta da Pedagogia da alternância3 3 A Pedagogia da alternância consiste em uma organização do ensino, que conjuga diferentes experiências formativas distribuídas ao longo de tempos e espaços distintos. na licenciatura da Pedagogia das Águas, possibilitando aos alunos dois tempos: o “tempo-escola/universidade e o tempo-comunidade”. No primeiro, os conteúdos teóricos das disciplinas eram mais trabalhados, as etapas anteriores eram avaliadas e as atividades seguintes planejadas. Já durante o tempo-comunidade, as atividades teórico-práticas eram realizadas, fosse por meio de pesquisas sobre a própria realidade ou sobre o trabalho que faziam nas escolas. De maneira geral, ambas as situações foram muito apreciadas pelos alunos:

“A gente vinha para campo, a gente fazia pesquisa, a gente chegava na Universidade e ia apresentar. Depois, o que a gente aprendia lá, a gente vinha praticar em sala de aula. Nessa época, estava bem novo. Eu lembro que muitas das atividades trabalhadas lá eram pouco conhecidas para nós. Mas lá, nós passamos a conhecer melhor e isso contribuiu com o nosso aprendizado e com o aprendizado das crianças” (Miriam).

Vale ressaltar que as experiências de aprendizagem que aconteceram durante o curso, especialmente as que articularam o tempo-escola/tempo-comunidade, foram vistas como especialmente ricas para a construção de novos saberes. As entrevistadas também destacaram como um aspecto importante do curso, a possibilidade de incentivá-las a refletir sobre as práticas que já vinham desenvolvendo:

“Antes do curso de Pedagogia das Águas, ainda era aquele método tradicional, das carteiras enfileiradas uma atrás da outra; era nesse método que a gente trabalhava. Depois do curso, a minha aula passou a ter organização: eu passei a organizar a sala mais em círculo, a colocar o aluno para pesquisar mais. Às vezes, peço que os alunos entrevistem o pai, a tia... E esse aluno, quando traz o resultado para a sala e quando apresenta lá na frente para todos, ele está se desenvolvendo!” (Miriam).

A fala acima revela que aspectos novos da docência foram aprendidos e que isso implicou uma alteração significativa no que se refere à prática pedagógica usual da entrevistada. É possível considerar, assim, que houve uma ressignificação das atividades docentes à luz dos conteúdos teóricos ensinados na academia, de modo que não parece ser utópico supor que o curso de Pedagogia das Águas conseguiu propiciar as mediações necessárias para produzir novas e interessantes reflexões:

“O curso de Pedagogia das Águas me fez compreender a questão: ‘com que tipo de sujeito eu vou trabalhar?’ Porque eu estou trabalhando com crianças ribeirinhas e antes eu já trabalhava... Então, entrei no curso de Pedagogia das Águas e eu comecei a mudar algumas coisas. Com aquele aluno das ilhas, tem que ter uma metodologia diferente para trabalhar. Eu tenho que saber escolher o conteúdo e saber como trabalhar aquele conteúdo, porque estou trabalhando com crianças ribeirinhas” (Laura).

Na literatura sobre educação do campo não há uma terminologia específica sobre “crianças ribeirinhas”. Contudo, alguns teóricos (POJO, 2017POJO, E. C. Gapuiar de saberes e de processos educativos e identitários na comunidade do Rio Baixo Itacuruça, Abaetetuba-PA. 2017. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - UNICAMP, 2017.; SOUZA, 2011SOUZA, D. V. S. de. Currículo e saberes culturais das comunidades dos discentes ribeirinhos do curso de Pedagogia das Águas de Abaetetuba-Pará. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Pará. Belém, 2011.; SEMEC, 2015SEMEC-PA. Plano Municipal de Educação. Pará, Belém, 2015.) estabelecem algumas peculiaridades comuns às crianças que vivem e estudam nas proximidades de rios, igarapés, matas. Os sujeitos ribeirinhos, como esperado, possuem forte relação com sua cultura local, com a diversidade de fauna e flora, características e peculiaridades que são facilmente percebidas no espaço escolar e exigem, como se verá adiante, uma prática pedagógica específica, mais adequada para trabalhar com alunos que vivem nessas localidades. Fonseca e Medeiros (2006)FONSECA, M. A.; MEDEIROS, M. O. Currículo em alternância: uma nova perspectiva para a educação do campo. In: QUEIROZ, J. B. P. Pedagogia da alternância: construindo a educação do campo. Goiânia: Editora da UCG; Brasília: Editora Universa, 2006. defendem que formar para a vida e para a cidadania na perspectiva da educação do campo requer uma clara compreensão de que o currículo vai além dos conteúdos disciplinares. Desse modo, é preciso estar sempre atento para manter o constante diálogo entre teoria e prática e em diversos contextos socioculturais.

Com base nos relatos, foi possível repensar a formação docente ministrada por meio do curso de Pedagogia das Águas que, reconhecendo o direito de escolha dos egressos quanto a trabalhar no campo ou na cidade, admite também que são grandes os laços de cada pessoa com o lugar onde se viveu e/ou se vive. Por isso, ao formar professores das e para as ilhas, é necessário conhecer e considerar o contexto histórico, comunitário e os projetos de vida desses sujeitos. Ao que consta, a formação no curso de Pedagogia das Águas parece ter sido vivida como uma experiência ímpar, na medida em que contribuiu para transformar o olhar dos egressos tanto no sentido de se ver como um sujeito ribeirinho, quanto no de apreender o aluno ribeirinho como um ser constituído em uma cultura própria, rica de significados que podem ser aproveitados no dia a dia da escola.

O aprendizado de ser professor

Os relatos indicam que o aprendizado de “ser professora” aconteceu, sobretudo, no tempo-comunidade, de modo que as participantes parecem ter dado ênfase maior à prática do que aos conhecimentos acadêmicos. Assim, é possível dizer que, para as entrevistadas, os saberes adquiridos por meio da experiência são pilares nos quais se embasa a formação inicial e é importante que eles sejam fornecidos na licenciatura em Pedagogia:

“Na época, vieram para o Setor Campompema algumas vagas para trabalhar com Educação Infantil. O pessoal da minha comunidade, Vila Nogueira, sugeriu que eu trabalhasse com uma dessas vagas. Então, eu já gostava, já brincava de ser professora, porém eu não tinha a prática de ensinar ninguém... Eu fui adquirindo experiência em trabalhar com crianças e eu fui gostando cada vez mais. Através da prática, eu aprendi a ser professora” (Miriam).

“Tem a teoria, né? Mas a prática é totalmente diferente” (Rafa).

Os relatos também destacam a importância da troca de experiências, para o aprendizado docente:

“Eu fui estagiar na casa da Nazaré (risos). Ela trabalhava com Educação Infantil e ela me explicava tudo. Eu ia ‘pegando’ essa pratica dela para mim; eu ia aprendendo com ela, porque eu achava demais bonito como ela fazia aquela aula com aquelas crianças. E, aí, eu ia me espelhando nela” (Vera).

Tanto o saber construído na experiência cotidiana, quanto a troca de experiências relatadas, salientam o já bem sabido fato de que o ensino se desenvolve num contexto de múltiplas interações. Segundo Tardif (2002)TARDIF, M. Saberes Docentes e Formação Profissional. Trad. Francisco Pereira. Petrópolis: Vozes, 2002., o docente atua em interação com outras pessoas, de modo que a atividade docente não é exercida sobre um objeto: ela é realizada, concretamente, em uma rede de interações, em que o aspecto humano é representado por símbolos, valores, sentimentos e atitudes. Roldão (2005)ROLDÃO, M. do C. Formação de professores, construção do saber profissional e cultura da profissionalização: que triangulação? In: ALONSO, L.; ROLDÃO, M. do C. (Orgs.). Ser professor de 1º ciclo - construindo a profissão. Braga: CESC/Almedina, 2005. p. 13-26. entende como “processo de constituição da profissionalidade docente” aquele que requer a práxis, pois é em torno de uma situação educativa concreta que o professor mobiliza os conhecimentos científicos e metodológicos das ciências da educação.

Os relatos das professoras egressas do curso de Pedagogia das Águas apontaram uma contradição: ao mesmo tempo em que demonstraram dar um valor exacerbado à prática, afirmando, por exemplo, “que é na prática que se aprende”, elas também destacaram a importância das discussões teóricas do curso, salientando o quanto essas últimas foram fundamentais para que ressignificassem suas próprias práticas docentes. Assim, apesar de haver falas que supervalorizam a prática, há também outras que afirmam ter havido aprendizagens fundamentadas na teoria (durante o curso) que modificaram a prática usual em sala de aula. De fato, esse é um aspecto que requer maior atenção da universidade, de modo a problematizar a ênfase na prática e aprofundar o conceito de práxis. Para além dessa dicotomia entre teoria e prática, Pimenta e Ghedin (2005)PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (Orgs.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005. explicam, com base na dialética marxista, que a atividade docente é práxis e, por isso, implica o conhecimento do objeto, o estabelecimento de finalidades e a definição de qual será a ação que, exercida sobre a realidade, acabará por transformá-la. Freire (1996)______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. reforça este pensamento, pois, para ele, a reflexão crítica sobre a prática é fundamental na relação teoria-prática, uma vez que, de outra forma, a teoria pode se tornar “blábláblá” e a prática “ativismo”.

Saberes necessários para trabalhar junto às comunidades ribeirinhas

Os povos ribeirinhos habitam o interior da Amazônia e vivem às margens de rios, lagos e igarapés. Pensar a educação no contexto ribeirinho implica ter consciência da realidade que circunda o aluno que aí vive, pois esse contexto é o lócus de seu desenvolvimento. Assim, antes de iniciar a discussão sobre os saberes necessários para lecionar em comunidades ribeirinhas, fazem-se necessários salientar que, nas falas das professoras entrevistadas, não há nada que leve a crer que exista uma didática específica e diferenciada para trabalhar com os alunos dessas comunidades tradicionais. No entanto, é possível inferir que, para elas, se o professor for comprometido com a docência junto aos alunos do campo, ele precisa ser bastante atento e sensível ao tempo e ao espaço e, ainda, às circunstâncias em que esses alunos aprendem e se desenvolvem. Mas, vale dizer, isso é válido para todo e qualquer professor: é preciso conhecer quem são os alunos reais e não os alunos idealizados, cujos perfis são, muitas vezes, construídos durante a formação inicial dos docentes.

“Um dia desses tivemos uma experiência com um professor lá na escola que desenvolveu os assuntos a partir do açaí. Aí, a gente foi perceber o quanto essas crianças sabem: eles sabem o valor da rasa4 4 Cesto de palha utilizado como medida para a comercialização do açaí. do açaí, eles sabem o quanto o peconheiro5 5 Pessoa que escala o açaizeiro para coleta do cacho do açaí, com auxílio da peconha. ganha, eles sabem o quanto o pai ganha numa venda de açaí, quanto eles gastam para trazer para a cidade” (Débora).

Essa quase surpresa em relação aos conhecimentos dos alunos não é algo trivial e merece ser aprofundado posteriormente, em novos estudos. No momento, pode-se dizer que alguns conceitos apropriados durante o curso ainda não foram devidamente digeridos, de modo que concepções advindas da experiência interferem com as conquistadas na universidade. Esse parece ser também o caso, quando se as mesmas professoras afirmam que, para trabalhar junto às comunidades ribeirinhas, o professor precisa, além de sensibilidade e de conhecimentos, valorizar os alunos e seu entorno, articular o empírico ao abstrato e o local ao universal, pois, sem isso, não se ampliam os horizontes, nem se ultrapassam as necessidades postas pelo dia a dia. De fato, para que isso aconteça, é preciso planejar as atividades, monitorar sua implementação e avaliá-la constante, para que o ensino se harmonize mais e de melhor modo com as necessidades acadêmicas atuais e futuras dos alunos. Isso, por sua vez, significa fazer do replanejar uma constante na prática pedagógica. Sem essa sistematização - planejar, realizar, avaliar, replanejar - a escola pouco vale como espaço formativo. Como bem aponta Biesta (2012, p. 18), as três funções centrais da escola são:

Uma das funções mais importantes da educação - de escolas e outras instituições educacionais - reside na qualificação das crianças, jovens e adultos. Ela consiste em proporcionar a eles conhecimento, habilidades e entendimento e, também, quase sempre, disposições e formas de julgamento que lhes permitam “fazer alguma coisa” - um “fazer” que pode ir do muito específico (como no caso da capacitação para um trabalho ou profissão especifica ou para uma habilidade ou técnica particular) ao mais geral (como no caso da introdução à cultura moderna ou à civilização ocidental, da aquisição de habilidades para a vida etc.). [...] A segunda mais importante função da educação é a de socialização, que tem a ver com as muitas formas pelas quais nos tornamos membros e parte de ordens sociais, culturais e políticas específicas, por meio da educação. Não há dúvida de que esse é um dos efeitos reais da educação, já que a educação nunca é neutra, mas sempre representa algo e o faz de uma forma especifica. Pela sua função de socialização, a educação insere os indivíduos em modos de fazer e ser e, por meio dela, desempenha um papel importante na continuidade da tradição e da cultura, tanto em relação a seus aspectos desejáveis quanto indesejáveis. A educação, no entanto, não só contribui para a qualificação e socialização, mas também impacta o que podemos chamar de processos de individuação ou, como prefiro chamar, processos de subjetivação - de se tornar um sujeito. A função de subjetivação talvez possa ser mais bem entendida como oposta à função de socialização. Não se trata precisamente da inserção de “recém-chegados” às ordens existentes, mas das formas de ser que sugerem independência dessas ordens; formas de ser em que o indivíduo não é simplesmente um espécime de uma ordem mais abrangente.

As entrevistadas destacaram bastante o trabalho que realizam na primeira vertente - a de levar os alunos a aprenderem conhecimentos, habilidades e formas de julgar/tomar decisões. Para tanto, empregam “temas geradores”, acreditando que eles possibilitam a articulação dos conhecimentos científicos aos saberes locais que o aluno possui. Porém, esse trabalho com o tema gerador não fica restrito ao “local”, pois é preciso contextuar e universalizar o conhecimento: sem isso, os alunos não aprenderão a fazer escolhas com propriedade e nem conquistarão a autonomia necessária para seguir o caminho que desejam seguir:

“Trabalhamos com o tema gerador, mas não ficamos somente no local: temos que universalizar, porque quando os nossos alunos quiserem sair daqui, eles possam, porque nós também teremos ensinado o universal para eles” (Vera).

Os temas geradores parecem atuar, junto às educadoras entrevistadas, como instrumento privilegiado para articular a realidade dos alunos com os novos conhecimentos, levando-os a deles se apropriarem de forma sistemática. Na universidade, estudaram Paulo Freire (1993)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1993., a concepção dialética e a teoria-prática-teoria, que define a práxis: teoria dirigindo a ação e os resultados dessa última colocando novas questões à primeira. Não foi possível esmiuçar o grau com que essas abordagens foram apropriadas, mas as falas mostram que falta, ainda, ser seguido um trecho do caminho. Por outro lado, se o conhecimento ainda não é sólido, as entrevistadas demonstraram compromisso com a formação escolar dos alunos e preocupação em não relegar a um segundo plano as características que lhes são próprias e suas condições socioculturais.

Sacristán (1999)SACRISTÁN, G. Consciência e acção sobre a prática como libertação profissional dos professores. In: NÓVOA, A. Profissão Professor. Porto: Porto Editora, 1999. advoga o estabelecimento de bases morais para a profissionalidade docente, uma vez que a ação docente tem consequências ético-morais. Os saberes relacionados à docência não podem, em sua visão, ficar restritos ao domínio de conteúdos disciplinares, porque são saberes que adquirem sentido em contextos socioculturais, fundamentados em valores socialmente definidos. O autor deixa evidente a necessidade de os docentes se preocuparem com valores, atitudes e posturas pessoais. O relato que se segue retrata como essa inquietação surge para as professoras e evidencia autocrítica:

“Eu acho assim: que uma linguagem que era muito usada nas ilhas ‘as crianças tinham que estudar para não ser como os pais’. Eu cheguei a ouvir isso de alguns professores: ‘que vocês se formem para que vocês não sejam iguais aos pais de vocês’. Hoje, a gente mudou esse discurso. Hoje, na escola, eu costumo dizer assim para os alunos, quando eles estão desinteressados: vocês precisam estudar porque os pais de vocês vão precisar de vocês: quem é que vai cuidar do açaizal de vocês, quem é que vai ajudar o teu pai a cuidar do dinheiro?” (Débora).

Com base nas dimensões da profissionalidade descritas por Contreras (2002)CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002., para quem afeto, a sensibilidade e a intuição são competências profissionais complexas, pode-se dizer que elas se fazem presentes nas entrevistadas. O afeto transparece na preocupação com o aprendizado do aluno, com a compreensão de quem ele e sua família são. A sensibilidade aparece no empenho em considerar o contexto sociocultural em que o corpo discente vive, preservando uma convivência rica e estreita com a comunidade na qual se atua. Finalmente, a intuição pode ser apreendida quando da seleção dos conteúdos escolares, dos materiais didáticos mais adequados, de exemplos para serem utilizados em sala de aula etc. Segundo o mesmo autor (2002), essas três dimensões da profissionalidade são utilizadas pelos docentes em seu exercício profissional e constituem competências que transcendem seu sentido técnico: são essenciais para um agir socialmente comprometido. O curso de Pedagogia das Águas pode, nesse sentido, fez bem a sua parte.

Profissionalidade: aquilo que é específico do “Ser Professor”

Entendemos que o conceito de profissionalidade docente se refere ao que “é específico na ação docente, isto é, o conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a especificidade de ser professor” (SACRISTÁN, 1999SACRISTÁN, G. Consciência e acção sobre a prática como libertação profissional dos professores. In: NÓVOA, A. Profissão Professor. Porto: Porto Editora, 1999., p. 64). Pesquisar como os egressos do curso de Pedagogia constroem sua profissionalidade docente, no contexto de educação rural ribeirinha amazônica, indica-nos que, mesmo quando as entrevistadas não dominam o conceito de profissionalidade, a docência e seu significado são constantemente retomados e reelaborados. É possível constatar essa situação no depoimento abaixo:

“O professor é aquele que vai formar aquele cidadão para o mundo e para as outras profissões que o cidadão queira exercer: é a base. Saber que tenho que preparar aquele aluno para o mundo e para exercer qualquer profissão que ele quiser, seja médico, engenheiro, pescador ou advogado, é saber que você não está preparando a criança para ser um mero profissional, mas também um ser humano de valores. A questão mesmo da formação como ser humano e cidadão” (Rafa).

Nesse sentido, a profissionalidade vai além do trabalho de ensinar, já que também engloba os valores e as intenções que se almejam na profissão (CONTRERAS, 2002CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.). Pelo que se interpreta do depoimento acima, a função docente é definida pelas respostas dadas pelo sistema educativo às necessidades sociais. Ademais, de acordo com os relatos das entrevistadas, pode-se verificar que a constituição da profissionalidade docente contempla também aspectos identificados por Chakur (2001, p. 29-30)CHAKUR, C. R. de S. L. Desenvolvimento profissional docente: contribuições de uma leitura piagetiana. Araraquara, SP: JM, 2001. como traços característicos do “ser professor” ou da profissionalidade docente: “competência em habilidades técnico-pedagógicas, competência em habilidades psicopedagógicas, responsabilidade social, comprometimento político, engajamento na rotina institucional e investimento na própria formação”. Vejamos como isso aparece nas falas das professoras.

A competência técnico-pedagógica que, segundo a autora, se resume basicamente nas tarefas de “definir objetivos, organizar conteúdos, eleger procedimentos, selecionar materiais e recursos didáticos, planejar atividades para os alunos” (CHAKUR, 2001CHAKUR, C. R. de S. L. Desenvolvimento profissional docente: contribuições de uma leitura piagetiana. Araraquara, SP: JM, 2001., p. 29), fica evidente na fala de Lia:

“Antes, a gente trabalhava apenas com livros. Se viesse morango no livro, a gente trabalhava morango, mas (ficava) só no livro, porque aqui não tem morango. Os alunos de onde eu trabalho plantam o açaí, o jambu, a banana, Então, depois do curso de Pedagogia, a gente começou a trocar por frutas locais. Antes, só trabalhávamos com livros da SEMEC/Secretaria Municipal de Educação”. (Lia)

Já a competência em habilidades psicopedagógicas, exigida geralmente na relação professor-aluno, mostra-se no esforço para trabalhar com modos tão diversos de sentir, pensar e agir, buscando superar os conflitos presentes na dinâmica da sala de aula, como bem ilustra a fala de Débora:

“Você chega na sala de aula e se depara com aluno que já conhece as letras e com outros alunos que nem conhecem as letras; um que senta para escutar a gente, outro que só corre; outro que bate no coleguinha. São muitas dificuldades [...]” (Débora).

O terceiro traço característico do “ser professor”, apontado por Chakur (2001)CHAKUR, C. R. de S. L. Desenvolvimento profissional docente: contribuições de uma leitura piagetiana. Araraquara, SP: JM, 2001., diz respeito à responsabilidade social, tal como expresso no relato de Alice, que acha é importante preparar as novas gerações para que sejam comprometidas com o meio físico e social de seus alunos. A professora destaca como os alunos aplicam os conteúdos escolares na realidade vivida por eles e salienta que, com isso, todos saem ganhando: a comunidade, os alunos e o meio ambiente, que passa a ser utilizado de forma responsável, possibilitando sua preservação e seu desenvolvimento:

“Pense no caso dos meninos do Campompema. Depois que eles entraram no Ensino Médio, eles começaram a fazer uma rabeta melhor: eles aprenderam cálculo e começaram a aplicar isso na fabricação da rabeta. Então, eles conseguiram fazer uma rabeta que corre mais, que economiza mais combustível e utiliza menos madeira. Eles aprenderam que a educação deve ser sim usada para o campo e o campo pode, sim, ser desenvolvido com a Educação” (Alice).

Finalmente, há o investimento na própria formação. Sobre esse aspecto, das dez professoras entrevistadas, quatro já concluíram a especialização e duas começaram a cursá-la, em agosto de 2017. Além disso, as professoras relataram que fizeram parte de programas de formação continuada, como o PACTO6 6 O Pacto pela Aprendizagem consiste em um conjunto de ações de curto, médio e longo prazo que trabalham com a perspectiva de mudar o cenário da educação. Com foco na melhoria da aprendizagem dos alunos e o nível de proficiência, a rede conduz a escola a se debruçar sobre seus dados (resultados alcançados). A partir disso, cada unidade escolar analisa, observa quais são os pontos de atenção, dificuldades e acertos e planeja o trabalho buscando construir suas próprias metas, além de levar a escola a entender de que forma os indicadores impactam positivamente no ensino e aprendizagem das escolas. e o Pró-Letramento7 7 O Pró-Letramento é um curso de formação continuada para professores das escolas públicas que estejam em atividade em sala de aula. Criado em 2005, oferece duas qualificações, de 120 horas cada uma, em língua portuguesa e matemática, com duração de oito meses. , entendendo-os como oportunidades importantes de aprendizados e trocas de experiências. De fato, o desejo de aperfeiçoamento profissional contribui significativamente para a construção da profissionalidade das docentes e, consequentemente, para a melhoria da qualidade da escola:

“Na Escola do Campompema, depois que saímos da universidade, aliado aos cursos que fizemos (Pacto, Pró-Letramento), conseguimos melhorar muito o IDEB8 8 Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. da Escola” (Nádia).

Considerações finais

Com este estudo, percebe-se que a investigação sobre a profissionalidade docente tem possibilitado identificar um percurso acadêmico com características próprias, mas em compasso com a tendência nacional, no âmbito dos estudos sobre ensino e formação docente. Os resultados da investigação mostraram o lugar ocupado pelos conhecimentos advindos da formação acadêmica e dos saberes construídos na e pela prática profissional. Mais importante, indicaram que os dois ainda não se articularam, pois um se sobrepõe ao outro, ou seja, a prática é mais valorizada.

Com base nos relatos, podemos dizer que o processo formativo propiciado pelo curso Pedagogia das Águas foi importante para que os egressos pudessem se reconhecer como sujeitos ribeirinhos e, assim, valorizarem-se como tal. Essa valorização da cultura, do lugar, do saber e do ser ribeirinho que se espalha pela escola e, mais precisamente, pela atuação do professor em sala de aula, considera, em primeiro lugar, quem é o aluno, onde ele vive e o que aprendeu até o momento. Isso, por sua vez, implica seleção de conteúdos, vinculando-os à experiência do aluno, filhos de pescadores, de alguém que trabalha com a coleta do açaí ou com a plantação do jambu. Indica, também, que foi durante o curso de pedagogia que as professoras conheceram mais profundamente a proposta tempo-escola/tempo-comunidade, que parece tão bem articular as necessidades dos alunos às demandas que a vida lhes coloca.

A presente investigação permitiu também identificar, junto às participantes, um conjunto de aspectos que Roldão (2005)ROLDÃO, M. do C. Formação de professores, construção do saber profissional e cultura da profissionalização: que triangulação? In: ALONSO, L.; ROLDÃO, M. do C. (Orgs.). Ser professor de 1º ciclo - construindo a profissão. Braga: CESC/Almedina, 2005. p. 13-26. considera como descritores da profissionalidade. Nos relatos docentes, foi possível verificar: (a) a especificidade da função, pois eles evidenciam a importância da apropriação do saber acumulado e da formação para vida, incluindo aí a socialização e a constituição de uma subjetividade que aprecia e respeita sua cultura; (b) o saber específico, na medida em demonstram reconhecimento das exigências postas pela profissão docente, dentre elas a de que é preciso dominar conhecimentos específicos que apenas os docentes detêm; (c) o poder de decisão, uma vez que sugeriram ter autonomia e controle sobre a atividade que exercem; e, (d) a pertença a um corpo coletivo, vista no reconhecimento de que constituem uma comunidade que defende o prestígio e a exclusividade do seu saber. Diante disso, podemos concluir que as professoras avançaram na constituição de sua profissionalidade, já que ela se inicia na formação inicial e estende-se ao longo da atividade profissional. Ao que tudo indica, esse avanço é contínuo porque, segundo Roldão (2005)ROLDÃO, M. do C. Formação de professores, construção do saber profissional e cultura da profissionalização: que triangulação? In: ALONSO, L.; ROLDÃO, M. do C. (Orgs.). Ser professor de 1º ciclo - construindo a profissão. Braga: CESC/Almedina, 2005. p. 13-26. as professoras estão ainda construindo seus conhecimentos profissionais e seu saber-fazer de acordo com o contexto sociocultural em que estão inseridas. A profissionalidade precisa, portanto, ser bem administrada pelos docentes, para que o compromisso com a educação não se perca. Os relatos mostram que os egressos da Pedagogia das Águas se encontram nesse momento ainda inicial da construção da profissionalidade docente.

Assim, é possível dizer que o processo de construção da profissionalidade não é imediato nem facilmente conquistado, porque gera, como todo processo, conflito entre antigas práticas e novas aprendizagens. Conforme explicitado na categoria O aprendizado de ser professor, um valor exacerbado é atribuído à prática, quando, de fato, a expectativa era a de que estivessem trabalhando na perspectiva da práxis. Contradições foram igualmente notadas nos discursos, se as entrevistadas valorizavam os conhecimentos adquiridos na prática docente, elas também afirmaram ter modificado suas estratégias de trabalho com base nos conteúdos disciplinares apreendidos nesse mesmo curso. Dessa maneira, a reflexão sobre a práxis parece ser um aspecto que o curso Pedagogia das Águas deve dar saliência e prioridade.

Trata-se, portanto, de fortaleça os aspectos teóricos, articulando-os com a prática em sala de aula, de modo a propiciar situações ricas de aprendizagem, que permitam aos futuros professores desenvolverem a práxis, isto é, teoria-prática-teoria. Essa necessária articulação pode ser feita mediante emprego da metodologia da Pedagogia da Alternância, durante o tempo comunidade: é preciso que os docentes da universidade acompanhem os alunos em suas salas de aulas, de modo que saibam de fato quais são os resultados dos trabalhos desenvolvidos, quando recomeçavam o tempo escola. Numa perspectiva aprimorada dessa metodologia, o ideal seria contar com dois orientadores em constante diálogo: um na academia e outro na comunidade. Desse modo, seria possível fazer a articulação da teoria com a prática e criar um ambiente formativo, em que o futuro docente aprenda como a aprendem as crianças, como elas se alfabetizam, como se deve planejar a aula e avaliar os resultados obtidos. Tudo isso em meio a esse jogo teoria-prática-teoria, com o apoio de dois orientadores, permeado pelo dialogo, pelo respeito ao tempo de aprendizagem dos formandos e às limitações que esse contexto lhes coloca.

Algumas outras lacunas, típicas de cursos que buscam formar professores, precisam, igualmente, ser superadas, por meio de um trabalho mais aprofundado de aspectos pedagógicos propriamente ditos, tais como os métodos de ensino, a alfabetização, o planejamento didático e a avaliação da aprendizagem, todos eles centrais para que a escola cumpra sua missão. Gatti (REVISTA ÉPOCA, 2016REVISTA ÉPOCA. Bernardete Gatti: “Nossas faculdades não sabem formar professores”. Nov. 2016. Disponível em: http://epoca.globo.com/educacao/noticia/2016/11/bernardete-gatti-nossas-faculdades-nao-sabem-formar-professores.html. Acesso em: 15 mar. 2018.
http://epoca.globo.com/educacao/noticia/...
) destaca serem inúmeros os problemas da formação de professores do Brasil, especialmente no que tange à inicial, nos cursos de Pedagogia e de Licenciaturas (matemática, língua portuguesa, biologia etc.). Assim, muitas vezes, os egressos saem delas sem saber ensinar, sem saber planejar didaticamente, sem dominar modos de alfabetizar crianças que tornem esse processo mais indolor e compreensível. Trata-se, assim, de um problema curricular mais amplo, a ser vencido no país e, no caso, também pela Pedagogia das Águas. Esse é um percurso necessário e, inegavelmente, os professores dos futuros professores precisam trilhá-lo.

  • 1
    Nas Ilhas de Abaetetuba foram criados Projetos de Assentamentos Agroextrativistas (PAE’s). Os PAE’s são unidades de produção agrícola, criadas por meio de políticas governamentais visando ao reordenamento do uso da terra, em benefício dos trabalhadores rurais sem terra.
  • 2
    Os nomes usados são fictícios, para assegurar o anonimato das entrevistadas.
  • 3
    A Pedagogia da alternância consiste em uma organização do ensino, que conjuga diferentes experiências formativas distribuídas ao longo de tempos e espaços distintos.
  • 4
    Cesto de palha utilizado como medida para a comercialização do açaí.
  • 5
    Pessoa que escala o açaizeiro para coleta do cacho do açaí, com auxílio da peconha.
  • 6
    O Pacto pela Aprendizagem consiste em um conjunto de ações de curto, médio e longo prazo que trabalham com a perspectiva de mudar o cenário da educação. Com foco na melhoria da aprendizagem dos alunos e o nível de proficiência, a rede conduz a escola a se debruçar sobre seus dados (resultados alcançados). A partir disso, cada unidade escolar analisa, observa quais são os pontos de atenção, dificuldades e acertos e planeja o trabalho buscando construir suas próprias metas, além de levar a escola a entender de que forma os indicadores impactam positivamente no ensino e aprendizagem das escolas.
  • 7
    O Pró-Letramento é um curso de formação continuada para professores das escolas públicas que estejam em atividade em sala de aula. Criado em 2005, oferece duas qualificações, de 120 horas cada uma, em língua portuguesa e matemática, com duração de oito meses.
  • 8
    Índice de Desenvolvimento da Educação Básica.

REFERÊNCIAS

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    » http://epoca.globo.com/educacao/noticia/2016/11/bernardete-gatti-nossas-faculdades-nao-sabem-formar-professores.html
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2019
  • Aceito
    06 Set 2019
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