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Biografia e temporalidades: prática historiográfica e o ensino de história

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo propor reflexões sobre a escrita biográfica e seus tensionamentos com o campo da pesquisa/ensino de história. Compreendendo que o empreendimento biográfico é resultado de uma escrita fundamentalmente atravessada por temporalidades diversas, percebemos na artificialidade dessa escrita sua potencialidade para analisarmos os descontínuos da vida humana e suas relações no tempo/espaço. Deste modo, buscamos destacar importantes aspectos do diálogo entre história e biografia, evidenciando novos aportes teóricos e metodológicos que contribuem, ainda, para a revisitação de seu uso e de sua produção para o ensino de história.

Palavras-chave:
História; Biografia; Ensino de história; Temporalidades

ABSTRACT

This article aims to propose reflections on biographical writing and its tension with the field of research / teaching history. Understanding that the biographical work is the result of a writing fundamentally crossed by different temporalities, we see in the artificiality of this writing the potential to analyze the discontinuities of human life and their relations in time / space. In this way, we seek to highlight important aspects of the dialogue between history and biography, emphasizing new theoretical and methodological contributions that also contribute to revisit its use and production for the teaching of history.

Keywords:
History; Biography; Teaching history; Temporalities

A essência da pesquisa e da escrita promovida no empreendimento biográfico é o tempo. É no atravessamento das temporalidades que marcam a vida do/a biografado/a, imbrincadas pelas temporalidades de quem ousa narrar a vida, que a escrita biográfica se situa. É nesta perspectiva que o presente artigo pretende assentar suas contribuições para a prática biográfica produzida pela historiografia, como também sua adoção e produção para o ensino de história. Buscamos evidenciar como novos aportes teóricos e metodológicos podem contribuir para o aprofundamento do diálogo entre história e biografia, propondo uma revisitação da trajetória, por vezes conturbada, entre os dois gêneros.

Podemos iniciar nossa reflexão a partir das temporalidades expressas na narrativa, especialmente sua vinculação com uma perspectiva linear e cronológica. A escrita biográfica parece nos impelir a reproduzir uma estrutura textual que propõe ordem, ritmo e cronologia à vida humana. Entretanto, as discussões em torno dessa escrita em seus diversos campos de produção, evidenciaram que a estrutura cronológica era apenas um caminho a ser seguido, apenas uma forma de situar a vida no tempo/espaço. A vida humana narrada a partir de datações que iniciam com o nascimento, destacando elementos como estudos, trabalho, casamento, filhos/as, e enfim, culminando com a morte, suscitaram debates a respeito de uma escrita biográfica que objetiva situar-se em determinados marcos temporais e mobilizar uma narrativa que evidencia a unicidade do ser.

Essa unicidade, coesão ou até mesmo predestinação apresentada em muitas narrativas biográficas, destacava a emergência de pensarmos como o tempo atravessa não somente a vida humana, como também as formas de narrá-la. Imbuídos do intento de dar sentido à biografia, de torná-la legível, obliteramos as camadas temporais expostas e sobrepostas presentes na narrativa. Estas camadas temporais estão presentes no vivido; no registrado nas fontes; no dito, no silenciado, no escolhido e no narrado; e são elas que nos afastam da ideia de unicidade do ser, indicando sempre a impossibilidade de narrar “toda” a vida.

Nos últimos anos, com a profusão de publicações de caráter biográfico, diversos debates foram suscitados, pondo em destaque questões como os princípios éticos, metodológicos e narrativos da escrita biográfica. Seus limites e contribuições incentivaram diversas áreas do conhecimento a revisitarem a escrita biográfica, destacando, de modo especial, as problemáticas entre história e biografia, tensões que encetam ainda em seu lugar de origem - ao menos na sua versão ocidental: a Grécia antiga. O gênero biográfico voltava aos debates como novidade para a historiografia, como um “novo domínio da história”1 1 Referência ao livro “Novos Domínios da História”, no qual o historiador Benito Bisso Schimidt apresenta um panorama sobre o debate entre história e biografia. , ao mesmo tempo em que se apresentava como um velho conhecido.

Neste cenário, algumas contribuições foram produzidas, destacando-se três textos que, provocativamente, Alexandre Avelar (2017AVELAR, Alexandre de Sá. O reencontro com o General: relendo uma tese nove anos depois. Diálogos, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 3-14, 2017. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/article/view/39523. Acesso em: 20 jan. 2018.
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.p...
, p. 4) elenca como os mais citados e comentados entre historiadores/as: “O desafio biográfico”, de François Dosse (2015)DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015., e os artigos “A biografia como problema” (1998) e “A biografia como problema historiográfico” (2010), de Sabina Loriga e Jacques Revel, respectivamente. Os termos “desafio” e “problema” causam um desconforto inicial para quem pretende trilhar os caminhos biográficos, afinal, ambos parecem aconselhar certa cautela aos historiadores/as que almejam fazer as vezes de biógrafos/as, colocando sob suspeita a aproximação entre os gêneros.

A precaução com os limites entre história e biografia não é uma novidade, porém o debate parece ter ganhado fôlego nos últimos anos, com o aumento vertiginoso de biografias e autobiografias difundidas em diferentes suportes: livros, filmes, minisséries, etc. A boa recepção do público consumidor, por vezes atraído pelas histórias íntimas de personalidades, que nos permitem conhecer o lado mais humano desses protagonistas, ampliou a oferta de biografias produzidas por diferentes profissionais, principalmente, jornalistas.

A profusão de narrativas fundamentadas em histórias de vida pode ter sido impulsionada pelas falhas do regime de historicidade presentista, que, analisadas por François Hartog (2014)HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014., indicam um momento de valorização nostálgica de personagens de outro tempo, numa relação próxima à historia magistra vitae, em que se buscava, nas diferentes trajetórias, a exemplaridade de suas ações. Essa falha do presentismo denotaria um desconforto de um presente hipertrofiado, resultando desse processo a busca por raízes, por identidades, por uma ânsia de memória e pela patrimonialização (HARTOG, 1996HARTOG, François. Time, History and the writing of History - KVHAA Konferenser 37 (Regime de Historicidade). Stockholm, 1996. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/113/o/Fran%C3%A7ois_Hartog_-_Regime_de_Historicidade_(1).pdf. Acesso em: 01 jun. 2017.
https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/113...
).

Durante os processos de falhas do presentismo - iniciados na década de 1970 -, podemos situar a redescoberta ou o retorno da biografia ao campo historiográfico. A retomada da biografia adveio com a crise do paradigma estruturalista, segundo o qual a história deveria compreender as estruturas que organizam os mecanismos econômicos e sociais, independente das ações individuais. Na historiografia francesa, podemos situar uma alteração no papel dos indivíduos a partir da terceira geração dos Annales - que, antes, dedicada a pesquisas sobre o imaginário e as mentalidades coletivas, passou a produzir importantes obras sobre personalidades individuais. Mantendo-se fiéis à perspectiva da história-problema, os/as historiadores/as passaram a utilizar a biografia para compreender determinados contextos sociais.

Desde então, tendo mais proximidade de algumas correntes historiográficas, como a micro-história italiana, a biografia vem promovendo profundos debates entre os/as historiadores/as que buscam esclarecer aspectos teóricos, metodológicos, e, porque não, fronteiriços com o gênero biográfico. O acautelamento é fundamentado, principalmente, pela associação do gênero a modelos já bastante criticados de fazer história, vinculados ao culto aos heróis e grandes vultos.

Muitos historiadores passaram a utilizar outros termos em uma tentativa de se esquivar da palavra biografia, empregando, por exemplo, termos como “trajetória” - em referência a Pierre Bourdieu (1996)BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p. 183-192. - ou “percurso”, evitando, assim, uma possível ligação com o gênero biográfico e sua associação com a “história historicizante”, denunciada por Lucien Febvre (SCHMIDT, 2017SCHMIDT, Benito Bisso. Os múltiplos desafios da biografia ao/à historiador/a. Diálogos, Maringá, v. 21. n. 2, p. 44-49, 2017. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/article/view/39527. Acesso em: 20 ago. 2018.
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, p. 45). A adoção destas estratégias indica que as avassaladoras críticas de Pierre Bourdieu sobre a “ilusão biográfica” ainda reverberavam entre os profissionais da história. As críticas direcionadas à sensação de unicidade do ser estão também vinculadas ao emprego de termos que indicam tempo/espaço na narrativa, tais como: “já”, “desde então”, “desde pequeno”, “sempre”, que, segundo o autor, contribuiriam para a compreensão de que a vida é um conjunto de ações coerente e orientada, expressando uma intenção subjetiva e objetiva de projeto (BOURDIEU, 1996BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p. 183-192., p. 184).

As discussões sobre a narrativa biográfica evidenciavam uma antiga e sensível questão: as tensões entre verdade e ficção na disciplina histórica. Entretanto, a especificidade da narrativa biográfica talvez esteja no fato de que, ao narrar uma vida, o/a historiador/a precisa levar em consideração questões psicológicas e comportamentais que demonstram o caráter fragmentário e dinâmico dela. Mas, seguindo uma tradição biográfica estabelecida, e a própria retórica da disciplina, “contentamo-nos com modelos que associam uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e decisões sem incertezas” (LEVI, 2006LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 167-182., p. 169). Esse modelo narrativo aparenta ser mais seguro e verificável, já que, pela ordenação cronológica de uma vida, as fontes estariam mais inteligíveis ao leitor, acentuando a veracidade da narrativa.

Contudo, não escapam a esse modelo narrativo as lacunas deixadas pelas fontes históricas, ou mesmo a impossibilidade de narrar “toda a vida”, fato que fomentou uma aproximação dos/as historiadores/as com outros campos do conhecimento. Sua caracterização como “gênero híbrido” (DOSSE, 2015DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.) indica que sua prática ocorre em vários campos de produção discursiva, como no cinema, na antropologia, no jornalismo e na literatura, o que ampliaria o rol de possibilidades para os modelos narrativos biográficos. Dentre os diálogos estabelecidos com outros campos do conhecimento, a aproximação com a literatura foi bastante atrativa, evidenciando a busca por uma inspiração estética “sem preocupação com as variadas e refinadas possibilidades cognitivas que tais referências oferecem” (SCHMIDT, 2004SCHMIDT, Benito Bisso. Grafias da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica. Revista História, São Leopoldo, v. 8, n. 10, p. 131-142, 2004. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/issue/view/127. Acesso em: 20 ago. 2018.
http://revistas.unisinos.br/index.php/hi...
, p. 133).

O alerta com relação à inspiração literária visa a indicar que o/a biógrafo/a precisa ter consciência de seus recursos narrativos, pois são eles que configuram a personagem. Além disso, tais recursos não dizem respeito somente à forma, mas às próprias escolhas epistemológicas do/a autor/a (SCHMIDT, 2017SCHMIDT, Benito Bisso. Os múltiplos desafios da biografia ao/à historiador/a. Diálogos, Maringá, v. 21. n. 2, p. 44-49, 2017. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/article/view/39527. Acesso em: 20 ago. 2018.
http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/D...
). Seguindo ainda esta linha de reflexão, Schmidt exemplifica a utilização de flashbacks e de diálogos, usuais em biografias literárias e jornalísticas, e que muito poderiam contribuir para biografia histórica, expressando, por exemplo, o tempo da memória e as relações dos indivíduos com os/as contemporâneos, entretanto, “como fazer isso sem romper com os protocolos da operação historiográfica? O lugar acadêmico teria flexibilidade suficiente para permitir essas ousadias?” (SCHMIDT, 2017SCHMIDT, Benito Bisso. Os múltiplos desafios da biografia ao/à historiador/a. Diálogos, Maringá, v. 21. n. 2, p. 44-49, 2017. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/article/view/39527. Acesso em: 20 ago. 2018.
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, p. 48).

Esboçando uma resposta à questão, o autor menciona os trabalhos de Georges Duby (1987)DUBY, Georges. Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1987. e Natalie Davis (1977)DAVIS, Natalie Zemon. Nas margens: três mulheres do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., os quais dialogaram, respectivamente, com Guilherme Marechal, e com personagens do século XVII, “mas isso seria possível aos/às jovens historiadores/as que escrevem suas dissertações e teses?” (SCHMIDT, 2017SCHMIDT, Benito Bisso. Os múltiplos desafios da biografia ao/à historiador/a. Diálogos, Maringá, v. 21. n. 2, p. 44-49, 2017. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/article/view/39527. Acesso em: 20 ago. 2018.
http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/D...
, p. 48). Desafiando ainda mais os/as jovens praticantes do ofício, Vavy Pacheco Borges indica que, para alguns, “a escrita de uma vida é um exercício que se pratica melhor na velhice, depois de já se estar adiantado nesse percurso” (BORGES, 2008BORGES, Vavy Pacheco. Fontes biográficas: grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla Bessanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p. 203-233., p. 216).

Se as ousadias com relação à narrativa biográfica e os quesitos do/a biógrafo/a se apresentam como desafios aos/às jovens historiadores/as, a situação torna-se ainda mais complexa quando observamos que, ao se dedicarem à biografia, esses profissionais investiam anos na empreitada de tecer uma vida: Jacques Le Goff, 15 anos dedicados à São Luís e quatro décadas à São Francisco de Assis; Carlos Herrejón Peredo, 30 anos voltados à vida do mexicano Miguel Hidalgo; além, claro, do contra-exemplo, quando, por conta da longa dedicação, ocorre a recusa da empreitada, como no caso de Vavy Pacheco Borges, ao se negar a escrever uma biografia sobre Getúlio Vargas.

Mas, afinal, a necessidade de uma longa dedicação estaria mais relacionada ao biógrafo/a ou ao biografado/a? As vidas cujo impacto atravessaram tempos e espaços - com grande inserção coletiva - seriam mais difíceis de narrar? As possibilidades de resposta para essa questão fazem emergir outra problemática do gênero biográfico: a representatividade.

A questão da representatividade é analisada por Adriana Barreto de Souza como algo comum nas biografias, apontando que existe uma predominância entre dois usos desse gênero: a representatividade e o estudo de caso. Com relação ao primeiro modelo, a singularidade da trajetória seria a principal motivação do/a biógrafo/a, entendendo que a vida narrada sintetizaria outras biografias, que estariam presentes no próprio texto, representadas por meio de números e de quadros estatísticos. Nessa análise, a autora aponta o uso de procedimentos clássicos da história social como forma de legitimação do estudo, procedimentos pautados na generalização (SOUZA, 2003SOUZA, Adriana Barreto de. Trajetórias militares, política imperial e escrita da História. Métis, Caxias do Sul, v. 2, p. 95-108, 2003. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/view/1043. Acesso em: 20 ago. 2018.
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php...
).

Já, com relação ao estudo de caso, os/as biógrafos/as adotam como ponto de partida a análise macroestrutural, elaborando, a partir desse estudo, quadros explicativos. Somente após esse processo, a investigação biográfica se inicia, o que torna a função da biografia unicamente ilustrativa (SOUZA, 2003SOUZA, Adriana Barreto de. Trajetórias militares, política imperial e escrita da História. Métis, Caxias do Sul, v. 2, p. 95-108, 2003. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/view/1043. Acesso em: 20 ago. 2018.
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php...
). Nessa perspectiva, “o trabalho com a idéia de estudo de caso valoriza ainda menos o biográfico como lugar de produção de um discurso histórico” (SOUZA, 2003SOUZA, Adriana Barreto de. Trajetórias militares, política imperial e escrita da História. Métis, Caxias do Sul, v. 2, p. 95-108, 2003. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/view/1043. Acesso em: 20 ago. 2018.
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php...
, p. 96).

Quando não buscam dedicar suas páginas a mostrarem o quão singular é a trajetória de seu/sua biografado/a, muitos/as historiadores/as produzem longas narrativas sobre o contexto em que a personagem está inscrita. A contextualização, que, por vezes, ocupa um ou mais capítulos de um trabalho, pretende criar efeitos de realidade, configurando um/a moldura/palco/cenário para a atuação do/a biografado/a. Entretanto, é preciso mensurar o risco de supervalorização do contexto como instância explicativa, engessando a atuação do indivíduo em seu meio social e em seu tempo; “é preciso vê-lo em movimento” (BORGES, 2008BORGES, Vavy Pacheco. Fontes biográficas: grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla Bessanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p. 203-233., p. 223).

Observar e narrar esse “movimento” objetiva dar à trama biográfica um equilíbrio, que, mesmo indicando certa determinação histórica ao situar a personagem no espaço/tempo, ainda consegue demonstrar como esses agentes constroem suas redes, produzem dinâmicas e tomam decisões.

Em nosso dia-a-dia, ao tomarmos uma decisão, pautamo-nos pelo que sabemos naquele momento, pelas possibilidades concretas que então se apresentam. Os atos decisórios se dão no coração e na mente, em um cruzamento dos tempos passado - presente - futuro bastante imbricados. Infelizmente, a maioria das vezes não ficam documentados os comos e os porquês das decisões do biografado; poucas vezes pode-se acompanhar os desafios decisórios, em momentos de conflito, as hesitações e dúvidas. Mas é preciso ter sempre em mente que esses existiram (BORGES, 2008BORGES, Vavy Pacheco. Fontes biográficas: grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla Bessanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p. 203-233., p. 224).

A exclusão das experiências pessoais pode levar à negligência ou à correção dos elementos egotistas da biografia, sendo o resultado desse processo “um dos mais melancólicos: o tempo histórico se torna uma superfície desprovida de impressões digitais” (LORIGA, 2011LORIGA, Sabrina. O pequeno X: da biografia à História. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 223). Nesse sentido, enfocar a personagem ao longo do tempo é perceber que seu movimento não é linear e unidirecional, mas sujeito a incertezas, a descontinuidades, a oscilações e a incoerências, e essas inconstâncias precisam dialogar com um contexto maior, que deve ser levado em conta, mas que não pode engessar os ritmos próprios de uma vida. Sugestionando como pensar este diálogo entre indivíduo e sociedade, Schmidt, parafraseando E. P. Thompson, manifesta a necessidade de expressar o “fazer-se” da personagem ao longo de sua existência, de maneira vigilante, para não imputar uma coerência artificial à vida estudada (SCHMIDT, 2004SCHMIDT, Benito Bisso. Grafias da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica. Revista História, São Leopoldo, v. 8, n. 10, p. 131-142, 2004. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/issue/view/127. Acesso em: 20 ago. 2018.
http://revistas.unisinos.br/index.php/hi...
, p. 139).

Esta artificialidade do empreendimento biográfico - algo inevitável nesse tipo de narrativa - não está presente somente no momento da tessitura da escrita realizada pelo/a biógrafo/a, mas está marcadamente presente nas fontes autobiográficas, como também em outras fontes memorialísticas produzidas sobre a personagem. Perceber a narrativa da vida presente nesses suportes de memória exige mais do que um exercício de análise das fontes por parte do/a historiador, requer que este indique as escolhas adotadas pela pesquisa, mencionando seu percurso, deixando evidente seu trabalho e “bem clara a presença e a forma de ser do sujeito que a construiu” (BORGES, 2008BORGES, Vavy Pacheco. Fontes biográficas: grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla Bessanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p. 203-233., p. 225).

Ainda pensando a respeito dos suportes de memória, torna-se fundamental perceber as temporalidades presentes nesses documentos, afinal, teriam os documentos biográficos e autobiográficos “estratos de tempo”? Essa metáfora instrumentalizada por Reinhart Koselleck (2014)KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2014. poderia auxiliar na compreensão das camadas temporais do tempo vivido individualmente? Como mobilizar o tempo vivido, o tempo da produção do acervo e o tempo da narrativa?

Na assertiva de Michel de Certeau (apudHARTOG, 2014HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014., p. 19), a objetivação do passado fizera do tempo um elemento impensado da disciplina histórica, o que pode ser entendido como um alerta para nós historiadores/as. A partir destas reflexões podemos buscar auxílio na proposição de Carlos Herrejón Peredo, que, ao se dedicar à biografia de Miguel Hidalgo, “o pai da pátria mexicana”, propõe refletir sobre um marco teórico para a biografia:

[…] tengo para mi que la clave para entender y organizar una biografia es buscar las decisiones más transcendentes, las que orientan los principales periodos de la vida, las que redefin en las relaciones familiares, amorosas, laborales, profesionales, morales, religiosas, etcétera, de tal manera que las acciones posteriores de la persona generalmente son consecuencia de la resolución primordial. Funcionan como goznes que van armando la estructura biográfica a través del tiempo (PEREDO, 2013PEREDO, Carlos Herrejón. Buscando los goznes: buscando los goznes en la biografia de Hidalgo. In: BAZANT, Milada. Biografia: modelos, métodos y enfoques. Zinacantepec/Estado de México: El Colegio Mexiquense, 2013. p. 41-51., p. 44).

As reflexões de Peredo partiram da própria biografia de Hidalgo, que costumava repetir que a história “tiene dos ojos: la cronología y la geografia” (PEREDO, 2013PEREDO, Carlos Herrejón. Buscando los goznes: buscando los goznes en la biografia de Hidalgo. In: BAZANT, Milada. Biografia: modelos, métodos y enfoques. Zinacantepec/Estado de México: El Colegio Mexiquense, 2013. p. 41-51., p. 42). Para o historiador, o tempo e o espaço não seriam apenas coordenadas para situar a personagem, “el tiempo es la oportunidad en la vida y abre la posibilidad de cambios para otorgarle a la biografia un sentido dramático. El espacio no es sólo escenario, sino otro actor de la historia con que en el personaje interactúa” (PEREDO, 2013PEREDO, Carlos Herrejón. Buscando los goznes: buscando los goznes en la biografia de Hidalgo. In: BAZANT, Milada. Biografia: modelos, métodos y enfoques. Zinacantepec/Estado de México: El Colegio Mexiquense, 2013. p. 41-51., p. 42). Para além da importância do tempo e do espaço na vida e na narrativa biográfica, Carlos Herrejón buscou destacar a necessidade de perceber as chamadas “decisões transcendentais” do sujeito, pois essas orientariam os principais períodos de uma vida, estando diretamente relacionadas com as relações amorosas, de trabalho, as amizades e inimizades, etc. Essas decisões provocariam quebras que definiriam, romperiam ou condicionariam a trajetória de uma vida, sendo essas quebras nomeadas por Peredo como goznes.

Si la historia en general es un processo temporal, la vida de una persona lo es de manera especial. Y a pesar de los hados, el hombre tiene parte y responsabilidad en la conducción de ese proceso. Las decisiones transcendentes son, pues, los goznes de ese proceso (PEREDO, 2013PEREDO, Carlos Herrejón. Buscando los goznes: buscando los goznes en la biografia de Hidalgo. In: BAZANT, Milada. Biografia: modelos, métodos y enfoques. Zinacantepec/Estado de México: El Colegio Mexiquense, 2013. p. 41-51., p. 44).

Numa tradução literal, goznes seriam dobradiças, que representariam a unidade de uma vida marcada por suas rupturas. Entanto, apesar de indicar que essas quebras podem estar relacionadas aos sujeitos com os quais o/a biografado/a interage, a dimensão transcendental dessas quebras ocorreria especialmente “cuando se trata de asumir actitudes y caminos de vida moral contrarios a los antes transitados. Entoces nos hallamos ante un cambio de decisión trascendente, ante una conversión” (PEREDO, 2013PEREDO, Carlos Herrejón. Buscando los goznes: buscando los goznes en la biografia de Hidalgo. In: BAZANT, Milada. Biografia: modelos, métodos y enfoques. Zinacantepec/Estado de México: El Colegio Mexiquense, 2013. p. 41-51., p. 44). Esta reflexão de Peredo - realizada após 30 anos de dedicação à biografia de Hidalgo, o que resultou em dezenas de publicações sobre o biografado - está intimamente ligada à personagem estudada, pois os aspectos transcendentais e de conversão, por exemplo, estão diretamente relacionados aos estudos teológicos de Hidalgo; estudos realizados ao longo de sua vida, já que, durante boa parte de sua trajetória, exerceu a função de sacerdote.

Podemos buscar indícios destes goznes na materialidade produzida durante a vida humana; acervos documentais, fotográficos, tridimensionais, narrativas orais, e outras tantas marcas que expressam uma trajetória vivida. Consultando acervos documentais, por exemplo, podemos perceber as motivações e os processos de acumulação documental realizados pelo/a biografado/a, já que o gesto de guardar documentos também é resultado de processos de escolhas e de descartes. Afinal, ao arquivar uma vida “o guardador imortaliza uma época e produz representações e marcas de si mesmo” (CUNHA, 2017CUNHA, Maria Teresa Santos. O arquivo pessoal do professor catarinense Elpídio Barbosa (1909-1966): do traçado manual ao registro digital. História da Educação, Porto Alegre, v. 21, n. 51, p. 187-206, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/heduc/v21n51/2236-3459-heduc-21-51-00187.pdf. Acesso em: 20 jan. 2018.
https://www.scielo.br/pdf/heduc/v21n51/2...
, p. 191). Ao compor um arquivo pessoal, os objetos autobiográficos materializam uma proposta de leitura associada à imagem que se quis preservar de si mesmo (CUNHA, 2017CUNHA, Maria Teresa Santos. O arquivo pessoal do professor catarinense Elpídio Barbosa (1909-1966): do traçado manual ao registro digital. História da Educação, Porto Alegre, v. 21, n. 51, p. 187-206, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/heduc/v21n51/2236-3459-heduc-21-51-00187.pdf. Acesso em: 20 jan. 2018.
https://www.scielo.br/pdf/heduc/v21n51/2...
). Evidentemente, todo arquivamento do eu, mesmo sendo uma prática íntima, possui uma função pública, que auxiliará na difusão de uma narrativa sobre a vida daquela pessoa.

Como nos alerta Artières (1998ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11. n. 21, p. 9-34, 1998. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061. Acesso em: 20 jan. 2018.
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/inde...
, p. 31), esse processo de arquivar a própria vida não é neutro; “é muitas vezes a única ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como ele desejaria ser visto”, ou seja, há, no processo de arquivamento, uma artificialidade que precisa ser compreendida e, na medida do possível, desvendada. Os documentos ali presentes podem ser entendidos como um preparo simbólico de seu próprio processo, reunindo provas para uma defesa, ou organizando-as para refutar a representação que os outros possuem de nós. “Arquivar a própria vida é desafiar a ordem das coisas: a justiça dos homens assim como o trabalho do tempo” (ARTIÈRES, 1998ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11. n. 21, p. 9-34, 1998. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061. Acesso em: 20 jan. 2018.
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/inde...
, p. 31).

Para além da função prática, burocrática e comprobatória dos documentos que constituem um acervo pessoal, o processo de acumulação e de triagem é marcado por uma função simbólica. Na confluência entre as dimensões materiais e simbólicas configuradas em um acervo, podemos entrever uma imagem que o/a biografado/a buscou preservar de si mesmo. Além disso, também podemos observar as redes constituídas, seus espaços de circulação, e de modo mais apurado, as escritas autobiográficas. Ao dispor de relatos do próprio protagonista, entendemos que essas narrativas produzem ‘projeções de si’, e, inevitavelmente, um enquadramento de memória (POLLAK, 1989POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278. Acesso em: 05 nov. 2016.
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), realizado por muitos indivíduos.

Nesses registros de caráter autobiográfico estão presentes o desejo de perpetuar-se, de constituir a própria identidade para tempos vindouros, ou, nas palavras de Renato Janine Ribeiro (1998RIBEIRO, Renato Janine. Memórias de si, ou... Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 35-42, 1998. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2068. Acesso em: 20 ago. 2016.
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, p. 35), de forjar uma glória. Nesses textos, podemos observar, de modo mais atento, seus posicionamentos, suas escolhas, seus objetivos e suas vinculações, mesmo aquelas dissimuladas pela narrativa. Ângela de Castro Gomes destaca que as práticas de escrita de si evidenciam, com clareza, como uma trajetória individual tem um percurso que se altera ao longo do tempo, que decorre por sucessão, o que pode mostrar como o mesmo período da vida de uma pessoa pode ser “decomposto” em tempos com ritmos diferentes: um tempo da casa, um tempo do trabalho, etc. (GOMES, 2004GOMES, Angela Maria de Castro. Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 13).

Temporalidades, narrativas e ensino de história

Os tensionamentos entre história e biografia, seus profícuos diálogos, seus limites e fronteiras, e seus processos metodológicos, indicam reflexões oportunas entre os gêneros, como também mudanças nas operações discursivas em ambos. Ao mesmo tempo em que se discutia a reaproximação entre história e biografia no meio acadêmico, em outros lugares - em que o diálogo entre os gêneros não esteve tão afastado - outros questionamentos eram promovidos reacendendo a discussão. Neste caso em específico, estamos nos referindo aos debates no campo do ensino de história.

Em 2009, a historiadora Kalina Vanderlei Silva assegurava que não seria exagero afirmar que muitos dos professores brasileiros sentiriam calafrio só de pensar em utilizar biografias como tema de ensino (SILVA, 2009SILVA, Kalina Vanderlei. Biografias. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Novos temas nas aulas de história. São Paulo: Contexto, 2009. p. 13-28., p. 13). Corroborando com a autora, pensamos que a afirmação ainda é bastante atual e facilmente justificada, pois,

A perspectiva biográfica no cotidiano escolar encontrou lugar de destaque nos currículos escolares imperiais e seguiu incólume no período republicano. A influência da historiografia positivista pautou os elementos que seriam significativos na construção de programas de ensino que resultassem na formação de cidadãos com sólidos valores patrióticos, e que demonstrassem reverência aos grandes vultos do passado, tomando-os como exemplos a ser seguidos. O fim do regime militar no Brasil abriu espaço para que os currículos de História fossem questionados e revistos. Até então, desde a constituição da História enquanto disciplina escolar, a perspectiva mais simplista da abordagem biográfica formou gerações de estudantes (MONTEIRO; MÉNDEZ, 2012MONTEIRO, Katani Maria Nascimento; MÉNDEZ, Natalia Pietra. Gênero, biografia e ensino de História. Revista Aedos, Porto Alegre, v. 4, n. 11, p. 84-97, 2012. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/30636. Acesso em: 01 ago. 2020.
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, p. 91).

Presente desde o surgimento da História como disciplina escolar, a biografia era mobilizada a partir da noção de exemplaridade, repercutindo uma perspectiva de história baseada nos “grandes fatos” e “grandes feitos”, os quais recebiam contornos de personalidades consideradas ilustres, que, para além dos eventos que protagonizaram, deveriam ser (re)conhecidos como exemplo a ser seguido. Os indivíduos biografados deveriam inspirar as novas gerações, contribuindo para a formação de cidadãos que valorizassem os grandes vultos do passado, e que, numa perspectiva da história magistra vitae, perpetuassem os mesmos valores.

As mudanças curriculares desenvolvidas após a ditadura civil-militar no Brasil, contribuíram de maneira significativa para a revisitação da presença de narrativas biográficas nos programas de história. A disciplina passou por transformações profundas, repensando seu propósito, seus objetivos, sua metodologia e, também, seus materiais didáticos. Nesse processo a biografia não foi excluída das aulas de história - e nem deveria -, mas recebeu outros sentidos e, principalmente, outros protagonistas.

Nos livros didáticos mais recentes podemos encontrar relatos biográficos nos textos principais dos capítulos, ou ainda, em quadros destacados como “box complementar”, que geralmente são nomeados com títulos que indicam uma formação adicional: para saber mais, conhecendo mais, outras histórias, etc. Observando a estrutura de escrita biográfica presente nesses textos, podemos observar que, independente do seu posicionamento no layout do livro, a maioria das biografias ainda narra a trajetória do indivíduo de forma linear, contínua e coesa, apresentando uma vida sem descontinuidades ou incertezas, e em alguns casos, praticamente uma vida já predestinada.

Já indicamos ao longo deste texto, as diversas críticas dirigidas à escrita biográfica pautada nestes princípios que concebem o indivíduo de forma homogênea. Sem pretensão de repetirmos nossas considerações, destacamos apenas a necessidade de compreendermos que a vida do/a biografado/a deve ser percebida em suas múltiplas facetas, destacando suas contradições e seus descontínuos. Nesse processo, nos afastando da ilusão biográfica, podemos perceber a multiplicidade de ações, as dúvidas, as incertezas, as redes de apoio, os lugares de circulação, entre tantos outros fatores, que são fundamentais para a tomada de decisão e tão importantes para o agir humano. A biografia pautada nestes princípios tanto humaniza os/as biografados/as, quanto aproxima estas vivências dos/das discentes que estudam suas trajetórias, fato que contribui para que alunos e alunas consigam se perceber como protagonistas e agentes históricos.

Mesmo que ainda apresentem uma narrativa biográfica de contornos clássicos, os livros didáticos impõem aos professores/as e alunos/as importantes exercícios de pensar o movimento humano no tempo/espaço. Aprofundar o estudo biográfico a partir do que foi apresentado no livro é uma oportunidade ímpar de pensar a biografia também como recurso metodológico. A pesquisa sobre a personagem pode iniciar a partir da análise de outras biografias, percebendo mudanças nas narrativas sobre o/a biografado/a ao longo do tempo. Essas mudanças indicarão as diferentes intencionalidades para o estudo do/a protagonista, observando quais informações foram evidenciadas e quais suprimidas, observando, ainda, a variedade de fontes mobilizadas em sua produção. Por fim, torna-se fundamental procurar informações a respeito do/a produtor/a da biografia, entendendo, desse modo, a artificialidade da escrita biográfica e as intencionalidades de seu/sua produtor/a.

As mesmas orientações são válidas para a análise de outros suportes em que as histórias de vida são narradas: as cinebiografias. Alguns filmes baseados em histórias de vida já se tornaram clássicos em sala de aula: Carlota Joaquina - Princesa do Brasil (1995)CARLOTA Joaquina. Direção de Carla Camuratti. [S.l.:s.n.], 1995. 1 fita (140 min).; Mauá - o Imperador e o Rei (1999)MAUÁ - O imperador e o rei. Direção: Sérgio Rezende. Produção: Joaquim Vaz de Carvalho. [S.l.:s.n.], 1999. 1 fita (2h 15min).; Olga (2004)OLGA. Muitas paixões numa só vida. Direção: Jayme Monjardim. Produção: Rita Buzzar. [S.l.]: Nexus Cinema; Globo Filmes; Lumière Pictures, 2004. DVD (141 min).; Getúlio (2014)GETÚLIO. Direção: João Jardim. Produção: Pedro Borges; Carla Camurati; Carlos Diegues. [S.l.]: Copacabana Filmes, 2014. Available on : https://www.netflix.com/watch/80187186?source=35. Acesso em: 5 out. 2020.
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; Maria Antonieta (2007)MARIA Antonieta. Direção: Sofia Coppola. Produção: Sofia Coppola. [S.l.:s.n.], 2007. 1 DVD (123 min); e tantos outros. Ao exibir uma cinebiografia em sala de aula, o/a professor/a precisa contextualizar o período histórico, mas também propor aos discentes que percebam as escolhas narrativas que dão contorno ao enredo.

Para além das orientações metodológicas fundamentais para a exibição de um filme em sala de aula (entender a produção como representação; analisar o contexto histórico, mas também, seu contexto de produção; perceber as intencionalidades do/a diretor/a), é importante discutirmos com os/as discentes a respeito das camadas temporais presentes nestas narrativas, tentando situar as ações do/a protagonista e evitando enquadrar o/a biografado/a em esquemas narrativos que o impelem ao papel de vilão/ã ou mocinho/a, por exemplo. Essa dualidade é bastante comum em biografias, e, muitas vezes, a narrativa já é construída de forma que seu público percorra a vida narrada observando uma série de eventos que “comprovem” a tendência do protagonista para o bem ou para o mal, limitando as relações humanas entre ações nos dois polos e sugestionando previamente a interpretação dos/as alunos/as.

As orientações sugeridas são fundamentais para analisarmos as narrativas biográficas que já estão presentes nas salas de aula, mas também nos indicam a potencialidade da escrita biográfica enquanto metodologia para o ensino de história. Para além da análise de biografias, é bastante pertinente o exercício de biografar, tornando o/a aluno/a protagonista nos processos de pesquisa e de escrita. Para conseguir desenvolver o empreendimento biográfico, o/a estudante precisará levantar informações e fontes sobre seu/sua biografado, e, também ter domínio de importantes princípios da escrita da história.

Os/as discentes poderão perceber os diferentes locais de produção do discurso histórico, entendendo o exercício de escrita como manuseio, interpretação e cruzamento de fontes, experimentando a complexidade de produzir uma escrita legível para seu público, apresentando uma coerência a respeito da personagem narrada, mas sem cair nas armadilhas da ilusão biográfica. Nesse processo é fundamental analisar com os/as estudantes as lacunas da pesquisa, percebendo a impossibilidade de narrar “toda a vida”, demonstrando as múltiplas escolhas e também, as temporalidades que estão presentes nos documentos pessoais e em todas as fontes mobilizadas. As lacunas nos permitem refletir sobre as intencionalidades de trabalhos anteriores e/ou o exercício de autobiografia promovido pelo/a próprio biografado/a ou por outros agentes de memória.

Estas e outras tantas questões podem ser levantadas a partir do manuseio metodológico da biografia em sala de aula. Complementando as potencialidades, é importante destacar que a iniciativa possibilita ainda ampliarmos o rol de biografados/as, dando destaque a indivíduos que durante muito tempo foram invisibilizados. Ainda hoje, a maioria dos livros didáticos apresenta biografias de políticos e militares, sendo predominantes as biografias masculinas. Timidamente outros protagonistas vem ganhando espaço nos materiais didáticos, porém, alguns continuam relegados ao box complementar, com narrativas que por vezes, objetivam apontar curiosidades e a excepcionalidade de suas trajetórias.

Ao incentivar os/as alunos/as a produzirem biografias nas aulas de história, podemos promover a pesquisa por histórias de vida pouco conhecidas, valorizando, inclusive, pessoas e episódios que não constam nas narrativas “oficiais nacionais”, destacando eventos e personagens próximos dos/as alunos/as, indivíduos historicamente importantes, mas que não recebem visibilidade como tais.

Buscando incentivar a produção didática a partir de histórias de vida invisibilizadas, a Olímpiada Nacional em História do Brasil (ONHB), em sua 11º edição, propôs como tarefa a temática “Os excluídos da História”. Provocativamente, a tarefa incentivava os/as estudantes a observarem,

[...] quem são os sujeitos da história que por muito tempo não mereceram datas comemorativas, monumentos ou destaque dentro dos livros didáticos? Quem são os sujeitos históricos que, embora estudados pelos historiadores e cientistas sociais atualmente e muitas vezes mencionados em sala de aula pelos professores, são rejeitados por parte da sociedade, pela narrativa dominante dos meios de comunicação de massa e até mesmo por uma parcela dos estudiosos que prefere negar a sua importância? Por que alguns protagonistas trazem desconforto às narrativas estabelecidas? (MENEGUELLO; PEDRO, 2020MENEGUELLO, Cristina; PEDRO, Alessandra. Excluídos da História: uma exposição virtual. Campinas: UNICAMP, 2020. Disponível em: https://www.olimpiadadehistoria.com.br/especiais/excluidos-da-historia. Acesso em: 01 ago. 2020.
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).

Motivados pela proposição da ONHB, alunos/as de todo o Brasil promoveram pesquisas sobre personagens com relevância histórica em seus estados, contemplando narrativas de norte a sul do país. Os materiais didáticos produzidos buscavam evidenciar personalidades desconhecidas do público em geral, mas com atuação reconhecida - ou não - em suas localidades. Entretanto, independente do reconhecimento local/regional/nacional das personalidades elencadas, destacamos a importância da atividade como metodologia de pesquisa e como possibilidade de produzir novas narrativas que destaquem novos personagens, ou ainda, novas narrativas a respeito de indivíduos já (re)conhecidos, mas que, ao terem suas vidas revisitadas, nos possibilitam conhecer outras facetas de suas atuações, indicando que a pesquisa e a escrita biográfica, como toda história, jamais poderão se colocar como conclusivas a respeito de algo, ou alguém.

Ao trazermos o exemplo desenvolvido pelo ONHB, que objetivava não apenas pensar a atuação de indivíduos excluídos da história, mas também lançar questionamentos a respeito das escolhas e das narrativas já consolidadas em determinados panteões da história, destacamos a potencialidade da análise e da escrita biográfica para o ensino de história. Amplamente debatidas na academia, as tensões entre história e biografia ainda necessitam de aprofundamento quando mobilizadas no espaço escolar. Os tensionamentos produzidos pela intensa utilização de biografias no ensino de história, trouxeram consequências que associaram o gênero a uma perspectiva de história já bastante contestada.

Deste modo, precisamos revisitar a escrita biográfica e destacar seu potencial a partir de suportes metodológicos que se relacionem com seu lugar de produção. Tendo consciência dos recursos narrativos empregados, como também da análise criteriosa das fontes históricas que registram uma trajetória de vida, os/as estudantes podem reconhecer importantes fundamentos da pesquisa histórica, percebendo seu protagonismo como indivíduos e produtores de história, experenciando diversas temporalidades.

  • 1
    Referência ao livro “Novos Domínios da História”, no qual o historiador Benito Bisso Schimidt apresenta um panorama sobre o debate entre história e biografia.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2020
  • Aceito
    15 Out 2020
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