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Ensino de filosofia e bilinguismo: dilemas e desafios da recepção filosófica

Teaching of philosophy and bilingualism: dilemmas and challenges of the philosophical reception

RESUMO

É possível ensinar Filosofia para estudantes Surdos? Quais são as condições mínimas necessárias para que o estudante Surdo aprenda os conteúdos filosóficos propostos nos programas do Ensino Médio? Eis as questões centrais deste artigo, que busca analisar as possibilidades de ensinar Filosofia na perspectiva do bilinguismo e verificar como ocorre a recepção dos conteúdos filosóficos por parte dos estudantes Surdos no Ensino Médio. Para isso, analisam-se tanto a legislação (Lei nº 10.436/2002, Decreto nº 5.626/2005 e Lei nº 13.146/2015) relacionada à inclusão, cultura e identidade surdas quanto seus desdobramentos no espaço escolar, especificamente no processo didático-pedagógico utilizado nas aulas por professores de Filosofia da educação básica no estado do Paraná. Entre outras conclusões, o estudo aponta a necessidade de oferta de formação específica para os professores, tanto em relação ao campo teórico e metodológico quanto à educação bilíngue dos estudantes Surdos em todo o processo de ensino e aprendizagem.

Palavras-chave:
Ensino de Filosofia; Cultura Surda; Recepção Filosófica; Educação Bilíngue

ABSTRACT

Is it possible to teach Philosophy to Deaf students? What are the minimum requirements necessary for the Deaf student to learn the philosophical content proposed in high school programs? These are the central questions of this article. This is about analyzing the possibilities of teaching philosophy from the perspective of bilingualism and checking how the reception of philosophical content by Deaf students happens in high school. For this purpose, it’s analyzed the legislation (Law 10436/2002, Decree 5626/2005 and Law 13146/2015) related to deaf inclusion, culture and identity and their impact on the school space, specifically in the didactic-pedagogical process used in classes by Philosophy teachers of basic education in the State of Paraná. Among the conclusions, this study points to the need of providing specific training for teachers in relation to the theoretical and methodological field, as well as the bilingual education of Deaf students throughout the teaching and learning process.

Keywords:
Teaching of Philosophy; Deaf Culture; Philosophical Reception; Bilingual Education

Introdução

Este artigo procura mostrar como ocorre o processo de recepção filosófica por parte dos estudantes Surdos1 1 O termo “surdo” grafado com inicial maiúscula refere-se, segundo Ladd (2013, p. XIV), à “[...] sua experiência primária e a sua fidelidade, muitos do quais percebem sua experiência como essencialmente semelhante a outras minorias linguísticas”. Ainda para Ladd (2013, p. XIV), surdo com inicial minúscula significa as pessoas que têm uma experiência audiológica. Diante disso, este trabalho se encontra em consonância com a primeira grafia, que diz respeito às pessoas que se identificam com a identidade e cultura surdas. . A sistematização foi feita, principalmente, a partir da legislação vigente sobre o sujeito Surdo e de uma pesquisa participante com aplicação de questionários, entrevistas bilíngues e atividades desenvolvidas nas aulas de Filosofia com os estudantes Surdos de uma escola da rede pública paranaense.

A educação bilíngue para Surdos, como aponta Fernandes, “pode ser definida como uma proposta educacional que compreende, em sua realização, a utilização de duas línguas na comunicação e no ensino dos Surdos: a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e a Língua Portuguesa” (FERNANDES, 2011FERNANDES, Sueli Fatima. Educação de Surdos. 2. ed. atual. Curitiba: IBPEX, 2011., p. 104). Nesse tipo de educação, os professores explicam, interagem e orientam as atividades por meio do uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras), o que preconiza, por parte do docente, o domínio linguístico desta, além da abordagem da língua portuguesa na sua modalidade escrita, como segunda língua.

A educação bilíngue é garantida pelo Decreto nº 5.626/2005 (BRASIL, 2005), que regulamenta a Lei nº 10.436/2002 e, no art. 22, aponta como organizar a inclusão escolar para Surdos:

I - escolas e classes de educação bilíngue, abertas a estudantes Surdos e ouvintes, com professores bilíngües, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental; [...] II - escolas bilíngües ou escolas comuns da rede regular de ensino, abertas a estudantes Surdos e ouvintes, para os anos finais do ensino fundamental, Ensino Médio ou educação profissional, com docentes de diferentes áreas do conhecimento, cientes da singularidade lingüística dos estudantes Surdos, bem como a presença de tradutores e intérpretes de Libras - Língua Portuguesa (BRASIL, 2005).

Corroborando essa perspectiva, recentemente foi aprovada a Lei nº 14.191/2021, que incluiu a modalidade de educação bilíngue na Lei nº 9.394/1996. Como se vê, a política nacional indica dois espaços possíveis para a escolarização de Surdos: (i) na escola de Surdos com professores bilíngues; (ii) na escola regular, com a presença do intérprete e Atendimento Educacional Especializado (AEE), indicada na legislação como escola inclusiva. Esse último foi o espaço onde se desenvolveu esta pesquisa.

No tocante à escola inclusiva, é importante pontuar que existe um grande contingente de excluídos da escolarização, na história, sendo preciso pensar na garantia da presença e nas condições para combater tal condição de exclusão. Quanto ao termo, ele pode ser aplicado a uma política de garantia da escola comum para todos, ou seja, a política a partir da qual se matricularam as pessoas Surdas nas escolas regulares.

Dito isso, o objetivo central deste artigo é analisar as condições de ensino-aprendizagem e, de modo especial, a experiência do filosofar do estudante Surdo, a partir da perspectiva do bilinguismo. Isso significa, em última instância, entender como os Surdos são tratados na escola regular, no que tange à socialização do conhecimento e à interação na disciplina Filosofia. Nesse sentido, a educação bilíngue, em geral, tem sido praticada de acordo com a visão da política oficial do governo (BRASIL, 2008), que a trata, assim como como a Libras, como elemento instrumental, entendendo que a inserção do intérprete resolve todos os problemas de acessibilidade linguística dos Surdos, ou seja,

a indiferenciação valorativa entre uma língua que representa a produção histórico-cultural de uma comunidade minoritária e o conjunto de recursos físicos, técnicos e materiais que constituem as tecnologias assistivas revelam um enorme distanciamento dos princípios do Bilinguismo (FERNANDES; MOREIRA, 2014FERNANDES, Sueli Fatima; MOREIRA, Laura Ceretta. Políticas de educação bilíngue para Surdos: o contexto brasileiro. Educar em Revista, Curitiba. Número 2/2014- Edição Especial p. 51-70, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/er/a/zJRcjrZgSfFnKpbqTDh7ykK/abstract/?lang=pt. Acesso em: 24 out. 2022.
https://www.scielo.br/j/er/a/zJRcjrZgSfF...
, p. 64).

Para compreender o contexto dos estudantes, é preciso considerar, entre outras, sua questão cultural e identitária e reconhecer o habitus como um elemento que se constitui a partir dos grupos sociais em que a pessoa convive. No caso do ensino da Filosofia, alguns elementos metodológicos se manifestam frequentemente; todavia, surge a questão de o texto estar escrito em português - segunda língua do estudante Surdo -, como também de como ocorrem a recepção do texto filosófico e a mediação docente na escola inclusiva.

Elementos do processo metodológico: bilinguismo e o ensino da Filosofia

A educação do e com o estudante Surdo precisa considerar a língua de sinais como língua natural2 2 No terreno conceitual da linguística, línguas naturais são produções sócio-históricas fruto das interações das comunidades de fala, em oposição às línguas artificiais, produzidas in vitro com finalidades específicas. As línguas de sinais são línguas de identificação cultural utilizadas em comunidades surdas que, por sua modalidade visuoespacial, não oferecem barreiras à aquisição em situação natural de interação social. O português falado, de modalidade oral-auditiva, não pode ser adquirido em situações naturais de uso por pessoas Surdas, em decorrência de suas perdas auditivas. e de identificação cultural das comunidades surdas, concebendo a língua portuguesa, em seu aspecto escrito ou verbal, como uma segunda língua. Observou-se, durante a elaboração desta pesquisa sobre a recepção filosófica do estudante Surdo no Ensino Médio, que alguns estudantes foram desprovidos de experiências que oportunizassem a aquisição da linguagem considerando a Libras como primeira língua, em situação de aprendizagem informal, no seio familiar, uma vez que é constituído, em sua maioria, por pessoas ouvintes.

A ausência de uma primeira língua na infância traz grandes prejuízos à aquisição da linguagem e à construção de conceitos abstratos, com desdobramentos ao aprendizado de conteúdos escolares. Assim, quando analisada essa prática a partir de algumas categorias de Bourdieu (1983BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.)3 3 Pierre Bourdieu será utilizado em todo o estudo apenas como chave analítica, a partir de seus conceitos, para pensar a relação sujeito-objeto. , como habitus, campo4 4 Entende-se campo como “apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas)” (BOURDIEU, 1983, p. 89). e capital, constatou-se como elas permitem condições para agir no campo ,com maior ou menor possibilidade de sucesso.

Em relação ao habitus, este é entendido como

um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações - e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas (BOURDIEU, 1983BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983., p. 62).

Diante do habitus do Surdo, em que se pode considerar a ausência ou aquisição tardia da língua de sinais como primeira língua, um dado que se deve considerar são as dificuldades nos processos de desenvolvimento da linguagem, de formação de conceitos e, especialmente, nas atividades de leitura e escrita da língua portuguesa, que deveria se configurar como uma segunda língua, aprendida em situação formal de escolarização. Essa observação pode ser associada ao capital cultural dos pais ouvintes, que, por falta de saberes da situação de minoria linguística de seus filhos, encontram dificuldades para identificar e compreender o bilinguismo que os envolve e os direitos linguísticos que lhes garantiriam acesso e comunicação em Libras.

Quando, de outro modo, o problema não é o capital cultural, há que se considerar o capital econômico. Nele, o processo de diagnóstico e de medidas pedagógicas de trabalho com a língua pode demorar para quem não possui nenhum acúmulo de capital, o que, por si, já é um complicador. Dessa forma, todo esse processo produz consequências no campo educacional, em que os herdeiros da cultura reconhecida como “superior” acabam por ter sua trajetória facilitada, obtendo maior sucesso no ambiente acadêmico.

Segundo Bourdieu,

para aqueles que, na geração precedente, tinham um monopólio nos níveis mais elevados, no ensino superior, nas grandes escolas, etc., esse tipo de intensificação generalizada da utilização da instituição escolar coloca problemas muito difíceis, obrigando a inventar todo tipo de estratégias; de modo que essas contradições são um fator extraordinário de inovação (BOURDIEU, 2004BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 61).

Os que não são herdeiros da cultura oral-auditiva hegemônica enfrentarão dificuldades no processo formal de ensino-aprendizagem que ocorre no interior do ambiente educacional, espaço monolíngue em língua portuguesa falada e escrita, em que os estudantes Surdos, como os demais, são chamados a compreender o que leem e a expor suas ideias em textos e apresentações por meio da língua majoritária.

Deve-se considerar, nessa situação, que o ensino de conceitos abstratos aos Surdos estará prejudicado, tendo em vista a invisibilidade de sua situação de minoria linguística, seja por falta de preparação da família, seja pela dificuldade de diagnóstico médico e de orientação pedagógica adequada, evidenciando a situação de bilinguismo necessária ao seu desenvolvimento pessoal e social. Nessa perspectiva, de acordo com Moura (2018MOURA, Maria Cecília de. Surdez e Linguagem. 2018 In: LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; SANTOS, Lara Ferreira dos (Org). Tenho um aluno Surdo, e agora? Introdução à Libras e Educação de Surdos. São Paulo: EdUFSCar, 2018. p.13-26., p. 18), é necessária “uma orientação bem feita que possa alertar os pais quanto aos efeitos devastadores que a ausência da linguagem pode trazer para o desenvolvimento linguístico, cognitivo e emocional de seus filhos”. A defesa da autora é para que os pais e familiares se estruturem e estejam atentos para a importância da presença da Libras de maneira precoce na vida de seus filhos. Isso porque

essas barreiras linguísticas e comunicativas decorrentes da ausência de uma língua comum, compartilhada entre pais e filhos na família, fica aprofundada quando se inicia a escolarização formal, pela ainda incipiente situação das comunidades bilíngues nas escolas (FERNANDES; MOREIRA, 2014FERNANDES, Sueli Fatima; MOREIRA, Laura Ceretta. Políticas de educação bilíngue para Surdos: o contexto brasileiro. Educar em Revista, Curitiba. Número 2/2014- Edição Especial p. 51-70, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/er/a/zJRcjrZgSfFnKpbqTDh7ykK/abstract/?lang=pt. Acesso em: 24 out. 2022.
https://www.scielo.br/j/er/a/zJRcjrZgSfF...
, p. 59).

A educação bilíngue é defendida no campo dos estudos surdos como processo que reconhece a alteridade surda para que o conhecimento ocorra de maneira ética, o que valoriza a criação de ambientes bilíngues não restritos à sala de aula com o intérprete5 5 Reconhece-se a importância do intérprete nas diversas salas de aula, verificando-se a sua relevância no aprendizado e na mediação nos espaços observados durante a pesquisa, como participantes em sala de aula de Filosofia; todavia, afirma-se que o Surdo tem o direito a ter a Libras presente nos vários espaços escolares, sendo necessária, para isso, uma educação bilíngue, como defendem a comunidade surda e o campo epistemológico dos estudos surdos. , mas sendo a Libras uma língua de mediação, de comunicação e interação em todos os ambientes escolares e com seus diversos agentes.

A língua é importante para que o estudante possa perceber como os pensadores/filósofos produziram uma reflexão no tempo e no espaço, tendo vivenciado os problemas do seu contexto. A argumentação presente no texto e os conceitos desenvolvidos pelos pensadores podem colaborar para que os educandos produzam conhecimento e discursos próprios acerca das suas questões no mundo. Nessa direção, uma mediação pedagógica presente no trabalho do professor de Filosofia consiste em “desconstruir e reconstruir a linguagem do texto - trabalhá-lo: retraçar seu ‘plano de imanência”, reinventar ‘seus conceitos e sua consistência’” (FABBRINI, 1995FABBRINI, Ricardo Nascimento. O ensino de filosofia no 2º. grau: uma “língua da segurança”. In: MUCHAIL, Salma Tannus. Filosofia e seu ensino. São Paulo: Educ, 1995. p. 77-85., p. 90). Portanto, para que o ensino de Filosofia ocorra, é preciso considerar o habitus do estudante, na tentativa de criar o entendimento de seu capital cultural e de como ele se relaciona com o campo. Isso possibilitará escolher as melhores estratégias, pois, quando se pensa que o estudante terá o processo educacional ofertado em língua diferente da sua língua de identificação cultural, que não é dominada totalmente por ele, percebe-se que haverá algumas dificuldades para legitimar o campo.

A partir de estudo exploratório6 6 O estudo exploratório compõe os procedimentos metodológicos desenvolvidos na tese de doutorado Sobre a recepção filosófica do estudante Surdo no Ensino Médio (REZENDE, 2019). Os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, consentindo a divulgação de dados, desde que preservado o anonimato quanto às respostas, sendo considerado o aspecto ético no tocante ao questionário e interação com as pessoas envolvidas. que utilizou questionários aplicados presencialmente a um grupo constituído de professores de Filosofia, Tradutor Intérprete de Língua de Sinais (TILS) e estudantes Surdos, foi possível uma primeira compreensão sobre a inclusão desses sujeitos no ensino de Filosofia, considerando a relação de ensino e aprendizagem no espaço da sala de aula. A atividade de coleta mencionada se inseriu na seguinte proposta de pesquisa:

A proximidade social e a familiaridade asseguram efetivamente duas das condições principais de uma comunicação ‘não violenta’. De um lado, quando o interrogador está socialmente muito próximo daquele que ele interroga, ele lhe dá, por sua permutabilidade com ele, garantias contra a ameaça de ver suas razões subjetivas reduzidas a causas objetivas; suas escolhas vividas como livres, reduzidas aos determinismos objetivos revelados pela análise. Por outro lado, encontra-se também assegurado neste caso um acordo imediato e continuamente confirmado sobre os pressupostos concernentes aos conteúdos e as formas de comunicação: esse acordo se afirma na emissão apropriada, sempre difícil de ser produzida de maneira consciente e intencional, de todos os sinais não verbais, coordenados com os sinais verbais, que indicam quer como tal o qual enunciado deve ser interpretado, quer como ele foi interpretado pelo interlocutor (BOURDIEU, 2011BOURDIEU, Pierre. A miséria do Mundo. 8. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2011., p. 695).

O grupo de participantes e o conhecimento e experiência de um dos autores do artigo, professor de Filosofia da Rede Estadual de Educação do Paraná, foram relevantes para a atividade, tendo a vivência no ambiente escolar possibilitado familiaridade com os demais colaboradores, aspecto importante na recepção e disposição em participar.

A categoria de experiência, considerando o pensamento de Dubet (1994DUBET, François. Sociologia da experiência. Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: Instituto Piaget. 1994., p. 104), foi percebida em resposta ao questionário já num primeiro momento7 7 A pergunta inicial foi: “Você se sente preparado para trabalhar com estudantes Surdos? Por quê?”. , com quatros docentes manifestando não estar preparados para trabalhar com o estudante Surdo, justificando que “a dificuldade de comunicação, sobretudo em uma disciplina que exige um esmiuçamento dos significados do que se diz, inviabilizam o trabalho” (PROFESSOR 1, 2011)8 8 Respeitando o aspecto ético, preservou-se a identidade do entrevistado, ressaltando que todos assinaram termos para participação na pesquisa. Esta análise corresponde ao primeiro momento da pesquisa, ocorrido no ano de 2011. Os questionários foram numerados, sendo o Professor 1 do primeiro estabelecimento e o Professor 4 do último. . Essa explicação denuncia a falta de formação inicial e continuada sobre Libras e cultura surda; outras três explicações apontaram a falta de preparo (formação) para o trabalho e desconhecimento da Libras.

Trabalhar com o estudante Surdo implica considerar, de acordo com Lacerda, Santos e Caetano (2018LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; SANTOS, Lara Ferreira dos; CAETANO, Juliana Fonseca. Estratégias Metodológicas para o Ensino de Estudantes Surdos. In: LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; SANTOS, Lara Ferreira dos (Org). Tenho um estudante Surdo, e agora? Introdução à Libras e Educação de Surdos. São Paulo: EdUFSCar, 2018. p.185 -200., p. 185), “suas singularidades de apreensão e construção de sentidos quando comparados aos estudantes ouvintes”, uma vez que esses educandos

tiveram poucos interlocutores em sua língua e, consequentemente, poucas oportunidades de trocas e debates, além de não terem acesso completo aos conteúdos de filmes, programas de televisão e outras mídias que privilegiam a oralidade (e nem sempre contam com legenda), ou possuem textos complexo de difícil acesso a estudantes Surdos com dificuldades no letramento em Língua Portuguesa (LACERDA; SANTOS; CAETANO, 2018LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; SANTOS, Lara Ferreira dos; CAETANO, Juliana Fonseca. Estratégias Metodológicas para o Ensino de Estudantes Surdos. In: LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; SANTOS, Lara Ferreira dos (Org). Tenho um estudante Surdo, e agora? Introdução à Libras e Educação de Surdos. São Paulo: EdUFSCar, 2018. p.185 -200., p. 185).

A falta de conhecimento do estudante no que concerne a elementos como a questão linguística e a cultura surda é relevante para planejar ações de ensino, com fins voltados à aprendizagem. O argumento exposto por Lacerda, Santos e Caetano (2018LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; SANTOS, Lara Ferreira dos; CAETANO, Juliana Fonseca. Estratégias Metodológicas para o Ensino de Estudantes Surdos. In: LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; SANTOS, Lara Ferreira dos (Org). Tenho um estudante Surdo, e agora? Introdução à Libras e Educação de Surdos. São Paulo: EdUFSCar, 2018. p.185 -200.) contribui para entender a importância da Libras, de modalidade visuoespacial, para estudantes surdos, assim como os desafios de compreensão da língua portuguesa como segunda língua. Isso foi corroborado pelo relato do Professor 1, no sentido de não estar preparado para trabalhar com o estudante Surdo nas aulas de Filosofia, na escola inclusiva9 9 O tempo pedagógico de duas horas-aula semanais de 50 minutos, numa sala com aproximadamente 40 estudantes, acaba por dificultar as condições para se aproximar do estudante Surdo, entender sua cultura e aprender a Libras. .

Nos diferentes locais de pesquisa, os docentes informaram que seus conhecimentos eram oriundos da experiência singular que tiveram com os estudantes Surdos até aquele momento. Consoante Dubet (1994DUBET, François. Sociologia da experiência. Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: Instituto Piaget. 1994., p. 104), “mesmo que a experiência pretenda ser, na maior parte dos casos, puramente individual, é certo que ela só existe verdadeiramente, aos olhos do indivíduo, na medida em que é reconhecida por outros”. Assim, o elemento de pertencimento ao campo acadêmico, além do olhar do “subcampo” do Ensino Médio, demonstra a capacidade do docente de buscar conhecimentos para lidar com as particularidades, visando a colaborar na aprendizagem filosófica.

Durante a formação inicial, os professores relataram não terem tido a oportunidade de aprender sobre o Surdo, a cultura surda e a Libras, tendo em vista que somente em 2002, em âmbito nacional, por meio da Lei nº 10.436, foi reconhecido o seu estatuto de língua, sendo instituído seu ensino nos cursos de formação de professores (Ensino Médio e superior10 10 Em todas as licenciaturas, Pedagogia, Educação Especial e Normal Superior, no prazo máximo de 10 anos - até 2016, portanto. ) e fonoaudiólogos com o Decreto nº 5.626/2005. Para levantar esse dado sobre a formação inicial e continuada acerca do conhecimento para o trabalho pedagógico com o Surdo, foi elaborado novo questionário11 11 Esse novo questionário correspondeu ao quarto momento pesquisa. , enviado para os 32 Núcleos Regionais de Educação (NREs) do estado do Paraná e respondido por docentes de Filosofia de 14 NREs, cuja maioria concluiu sua formação antes de 2002. A ausência de formação inicial é reforçada pela falta de cursos de formação continuada (por parte da mantenedora), privando os professores de Filosofia de acesso institucional aos aspectos culturais e linguísticos a ser contemplados no ensino de estudantes Surdos. Para adquirir o conhecimento da Libras e do ser Surdo, os docentes necessitam, por vezes, recorrer a investimentos próprios.

A respeito, o Professor 2 relatou: “Não, pois não tenho preparo, porém já tive estudante com essa ‘deficiência’12 12 O Professor 2 utilizou de forma recorrente o termo “deficiente/deficiência” grafado entre aspas para se referir ao estudante Surdo, uma concepção que remete à perspectiva clínico-terapêutica. Quando foi solicitado a responder, na questão 4, sobre o que pensava sobre surdez, o que reconhecia na possibilidade de aprendizagem e aquisição do conhecimento, iniciou o texto reiterando a perspectiva da patologia: “Bem, vejo que é uma ‘deficiência’” (PROFESSOR 2, 2011). ”. Em conversa com esse docente, foi comentado que havia um estudante Surdo na escola que cursou todo o Ensino Médio sem a presença de um intérprete, apenas com o auxílio do professor. Quando indagado sobre o conhecimento em Libras, ele afirmou ser leigo, ponto relevante para pensar o encaminhamento metodológico adotado na disciplina Filosofia pelo docente, que envolve, além dos diversos textos da área, filmes e músicas, sempre em português. É relevante tentar entender, desse modo, a mediação pedagógica desenvolvida, observando a ausência do intérprete e o uso de metodologias específicas: “Eu trabalhava com textos escritos e também o mesmo sabia [fazer] leitura labial, que ajudava no aprendizado” (PROFESSOR 2, 2011).

Para analisar a afirmação do Professor 2 sobre a leitura labial, o pesquisador utilizou pesquisas disponíveis na plataforma de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), acessadas a partir do emprego do descritor “leitura labial”; nessa busca, retornaram 22 produções e, com o filtro “revisado por pares”, foram obtidas dez produções, sendo sete em língua portuguesa e três em língua inglesa. É importante mencionar que os trabalhos que atenderam a esse parâmetro retratam uma abordagem clínica e ouvintista, visando a tentar utilizar esses dados para adoção de implante coclear, com a finalidade de restituição da audição pela implantação de dispositivo eletrônico, por meio de intervenção cirúrgica. Segundo Rezende (2010REZENDE, Patrícia Luiza Ferreira. Implante coclear na constituição dos sujeitos Surdos. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2010. Orientadora, Ronice Müller de Quadros; co-orientadora, Maura Corcini Lopes. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/94074/281476.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 18 fev. 2020.
https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstr...
),

o implante coclear dentro das tramas e relações de poder e saber para a normalização dos corpos Surdos. Esse é um fato inquietante para os Surdos, que constantemente questionam e condenam esta forma de normalizar o Surdo, constituída por uma visão clínica e ouvintista que ainda teima em imperar inclusive no povo Surdo (REZENDE, 2010REZENDE, Patrícia Luiza Ferreira. Implante coclear na constituição dos sujeitos Surdos. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2010. Orientadora, Ronice Müller de Quadros; co-orientadora, Maura Corcini Lopes. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/94074/281476.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 18 fev. 2020.
https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstr...
, p. 36).

A despeito dessas considerações, reafirma-se que dispositivos de normalização dos corpos Surdos não constituem o viés teórico adotado neste artigo. Assim, limita-se ao uso da técnica de leitura labial no espaço pedagógico, conforme estudo realizado pelas pesquisadoras Dell’Aringa, Adachi e Dell’Aringa (2007), envolvendo relatos de 31 pessoas que descreveram, mesmo as com maior habilidade em leitura labial, ser capazes de, no máximo, apreender metade das informações transmitidas:

O Portador de deficiência auditiva é capaz de ‘ler’ a posição dos lábios e ao mesmo tempo captar os sons da fala de um locutor, porém é provável que até o melhor leitor labial só consiga entender 50% das palavras articuladas, pois muitos fonemas possuem uma articulação invisível e outros a mesma articulação (DELL’ARINGA; ADACHI; DELL’ARINGA, 2007DELL’ARINGA, Ana Helena Bannwart.; ADACHI, Elisabeth Satico.; DELL’ARINGA, Alfredo Rafael. A importância da leitura orofacial no processo de adaptação de AASI. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, v. 73, n. 1, p. 101-105, 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rboto/a/xHxdh4MqmH3qdgQdSDNcYjP/abstract/?lang=pt. Acesso em: 24 out. 2022.
https://www.scielo.br/j/rboto/a/xHxdh4Mq...
, p. 102).

De acordo com Gesser (2009GESSER, Audrei. Libras?: Que língua é essa?: Crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola Editorial, 2009., p. 60-61), a utilização da leitura labial requer muito tempo para ser desenvolvida e os resultados, como mencionado anteriormente, não compreendem a totalidade da informação, principalmente por essa técnica utilizar o treinamento fonoarticulatório, sendo falsa a ideia de que todos os Surdos a realizam. A pesquisadora ressalta a importância de as pessoas que interagem constantemente com Surdos aprenderem a língua de sinais, visto que o recurso da leitura labial pode colaborar apenas numa emergência e de maneira pontual. Na aprendizagem, a necessidade de compreender o que está sendo trabalhado de maneira integral é fundamental, daí a urgência em avançar na compreensão do papel da Libras na educação bilíngue.

A necessidade de formação continuada envolvendo estudos sobre as identidades e cultura surdas e os aspectos linguísticos da Libras é um fator importante para superar a pseudoideia de que o estudante Surdo compreende tudo que é falado pelo uso da leitura labial, sendo relevante, na escola inclusiva, a presença do intérprete e de professores bilíngues que possam explicar e interagir com os educandos, respeitando os aspectos constitutivos que caracterizam o ser Surdo.

Por outro lado, não se pode considerar simplesmente que utilizar a modalidade do português escrito com o estudante Surdo supera todas as dificuldades, especialmente quando se trata de reflexões filosóficas complexas que requerem um conjunto de outras mediações. O questionamento socrático “Conheça a ti mesmo”, quando ampliado com as reflexões do cotidiano do estudante, reconhecidos os dispositivos incorporados e desenvolvidos pela pessoa Surda no ambiente escolar, deve considerar como é o aprendizado e a escrita do português por esse sujeito. Nesse contexto, Fernandes (1998FERNANDES, Sueli Fatima. Surdez e linguagens: é possível o diálogo entre as diferenças. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1998., 2003) e Quadros (1997QUADROS, Ronice Muller. A educação de Surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre : Artes Médicas, 1997.) argumentam que o processo de aprendizado da língua portuguesa para Surdos é diferente da Libras, que ocorre em situação natural de interação, pois precisa de uma mediação adequada. Sob a perspectiva bilíngue, a aquisição e conhecimento da Libras possibilitam condições para o aprendizado e o desenvolvimento no uso da língua portuguesa como segunda língua. Trata-se de entender a importância, nesse sentido, de o conhecimento escolar circular e ser disponibilizado em Libras e depois em língua portuguesa, corroborando, pari passu, o respeito à cultura surda no aprendizado da Filosofia, assim como o conhecimento da Libras, da cultura surda e das identidades surdas como condição necessária para a recepção filosófica.

Perguntado sobre o que pensa da surdez, o Professor 1 comentou:

É um fator limitante que traz enormes dificuldades aos professores despreparados, mais ainda quando os estudantes Surdos são pouco em uma turma com dúzias de estudantes. Penso que o professor ‘comum’ não dá conta de ensinar aos Surdos com a mesma eficácia com que o faz com relação aos demais (PROFESSOR 1, 2011).

A descrição manifesta um posicionamento, uma necessidade da formação, revelando, com isso, a urgência de a mantenedora estruturar políticas educacionais de formação continuada com pesquisadores e profissionais para consolidar estratégias de ensino que colaborem com a aprendizagem e para que os agentes educacionais consigam desenvolver um trabalho adequado e respeitoso com a diferença no ambiente escolar.

Carvalho (2011CARVALHO, Rosita Edler. Prefácio. In: FERNANDES, Sueli de Fatima. Fundamentos para educação especial. 2. ed. rev. e atual. Curitiba: Ibpex, 2011., p. 16), ao prefaciar a obra de Fernandes (2011FERNANDES, Sueli Fatima. Educação de Surdos. 2. ed. atual. Curitiba: IBPEX, 2011.), alerta sobre as condições que devem ser observadas para inclusão:

Articulações entre políticas públicas e, principalmente, o modelo de formação de professores, além das condições materiais de trabalho deles, cuja finalidade repousa no desenvolvimento integral e integrado dos estudantes, para que estes possam exercer, com felicidade, sua cidadania plena. (CARVALHO, 2011CARVALHO, Rosita Edler. Prefácio. In: FERNANDES, Sueli de Fatima. Fundamentos para educação especial. 2. ed. rev. e atual. Curitiba: Ibpex, 2011., p. 16).

O envolvimento dos vários agentes da educação é um elemento descrito como relevante para atingir o objetivo educacional de maneira ampla a partir da sala de aula. É preciso, assim, refletir de maneira comprometida sobre as perguntas radicais feitas por Heller (1983HELLER, Agnes. A Filosofia Radical. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1983.), ou seja, como devem viver, como devem pensar e como devem agir, principalmente, no campo escolar, os professores, equipe pedagógica, diretiva e demais profissionais da educação?

Verificou-se que as condições para o processo de inclusão do estudante Surdo são indagadas por alguns professores de Filosofia. Por exemplo, sobre o conhecimento que possuem da Libras, os entrevistados indicaram ter contato com ela apenas quando ministram aula para o estudante Surdo, não possuindo uma formação mínima, considerando o rigor conceitual presente na reflexão acerca da Filosofia, na presença dos textos filosóficos reconhecidos como fundamentais nas aulas. Nessa direção, questionam como agir diante da “dificuldade de comunicação, sobretudo em uma disciplina que exige um esmiuçamento dos significados do que se diz, inviabilizando o trabalho” (PROFESSOR 1, 2011).

Por outro lado, nos espaços em que o docente pode contar com o intérprete, pode ocorrer uma ideia equivocada do papel e das consequências da ação desse profissional junto ao conhecimento e ao estudante, pois alguns discursos do campo acadêmico revelam o desconhecimento das atribuições do TILS no espaço da sala de aula, fazendo emergir questões sobre o plano de trabalho docente dever ser alterado para adequar ou mesmo acomodar determinadas situações de interesse do professor. No entanto, o que deve modificar o planejamento e execução são os estudantes, suas carências e a maneira de pertencimento no mundo. Não precisa, portanto, haver preocupação com a presença do intérprete na sala, visto essa presença profissional possibilitar trabalhar sem nenhuma alteração no plano docente.

O sentimento de tranquilidade, porém, somente em parte é comungado pelos docentes. Isso ficou perceptível quando um professor afirmou se sentir despreparado por “não conhecer a linguagem de sinais” (PROFESSOR 3, 2011). Como afirma Gesser (2009GESSER, Audrei. Libras?: Que língua é essa?: Crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola Editorial, 2009., p. 21), a língua de sinais possui “todas as características de qualquer língua humana natural”. Mesmo que haja um profissional intérprete em todas as salas com estudantes Surdos, não cabe a ele ser o agente do conhecimento como objeto a ser ensinado e aprendido, mas tão somente fazer a interpretação/tradução, quer do português para Libras, quer da Libras para o português. A função de ensinar é do docente, que possui formação, conhecimento específico e condições para estabelecer a metodologia adequada ao conteúdo, a fim de que o estudante possa aprender.

Ao verificar a ausência de um elemento-base para o ensino - a comunicação -, segue-se um conjunto de indagações: para quem a aprendizagem é dirigida? Como ensinar sem domínio da língua (Libras/português)? Quais recursos são necessários para a aprendizagem? Diante de alguém que apresenta respostas iniciais para essas indagações, surge um deslocamento de papel, levando a realizar o que é possível, ante as condições postas. Mais especificamente sobre o tema deste estudo, como fazer para ensinar Filosofia para estudantes Surdos?

O relato do professor Fagner Carniel, em sua tese de doutorado, acerca da sua experiência como professor em um colégio onde havia somente estudantes Surdos, ao ser entrevistado pela equipe de diversidade do NRE, revela dilemas a ser superados. Os técnicos utilizaram Libras e língua portuguesa para manifestar a necessidade do conhecimento linguístico, cultural e identitário da pessoa Surda para o profissional da educação que pretende ministrar aulas para esse sujeito. O diálogo se iniciou com a seguinte pergunta:

- Olá professor, você é Surdo ou ouvinte? [...] atônitos por ele não ser Surdo, por não falar a língua de sinais e por não conhecer o colégio, estes técnicos o bombardearam com perguntas. Você sabe o que é ser Surdo? Você tem alguma ideia de como trabalhar com eles? Como você vai se comunicar com os estudantes? Já te disseram que eles não leem nem lábios? Filosofia e sociologia que abSurdo! Você vai encher eles de textos? - quase todas sempre finalizadas com um assustador: Você vai matar aquelas crianças! [...] o professor [...] afirma estar disposto a aprender com eles, estudar a língua de sinais. É claro que você vai aprender muito com eles, mas eu fico pensando naquelas crianças (CARNIEL, 2013CARNIEL, Fagner. A invenção (Pedagógica) da Surdez: Sobre a Gestão Estatal da Educação Especial na primeira década do século XXI. 2013. Tese (Doutorado em Sociologia Política) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2013., p. 34).

A equipe de diversidade do NRE, ao orientar o professor - candidato a assumir aulas de Filosofia -, revelou que: (i) na maioria dos casos, haveria intérprete em sala; (ii) sempre haveria estudantes ouvintes; (iii) dada a particularidade da escola, o professor não teria o intérprete à sua disposição durante as mediações, explicações e atividades pedagógicas. Assustado, o docente ficou sabendo que iria ministrar aulas para estudantes Surdos. Fica, com isso, a indagação final como elemento de reflexão: o que os estudantes Surdos aprendem? O que perdem diante da barreira linguística e da prática pedagógica que desconsidera sua cultura, sua identidade, seu habitus?

Como pesquisadores, é preciso atentar a trabalhar respeitando os estudantes, suas singularidades, utilizando o tempo pedagógico para promover uma reflexão do mundo, tendo o conhecimento filosófico como objeto fundante do modus operandi do fazer Filosofia; em outras palavras, ensinar elementos da atitude filosófica, da reflexão filosófica, do problema filosófico presente nas várias filosofias - construídas pelos filósofos como condição para pensar, agir e viver -, promovendo uma ressignificação do cotidiano.

Não deixar de trabalhar com a Filosofia foi um princípio descrito pelos participantes, que entendem que pensar no cotidiano, entender e posicionar-se no mundo devem ser inscritos num campo, o filosófico, pois é esse o lugar que os professores de Filosofia ocupam no ambiente educativo. Aqui cabe o alerta dos técnicos: “Você vai encher eles com textos” (CARNIEL, 2013CARNIEL, Fagner. A invenção (Pedagógica) da Surdez: Sobre a Gestão Estatal da Educação Especial na primeira década do século XXI. 2013. Tese (Doutorado em Sociologia Política) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2013., p. 34). É preciso considerar que a presença do texto filosófico, em si, não significa a garantia de uma boa aula de Filosofia, mas sua total ausência é sinal de alerta.

Frente à dificuldade de uma proposta para o ensino de Filosofia, devem-se considerar as pessoas Surdas no espaço escolar inclusivo, reconhecendo seus direitos linguísticos ao estabelecer condições para o aprendizado filosófico, para um filosofar que pondere os conceitos e problemas historicamente desenvolvidos pelos pensadores, assim como o cotidiano escolar dos estudantes. É nesse sentido que as perguntas propostas por Heller (1983HELLER, Agnes. A Filosofia Radical. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1983.) - como deve viver? Como deve pensar? Como deve agir? - podem contribuir com a recepção filosófica mediada pelo trabalho docente, com a presença do texto filosófico e os reais problemas da vida cotidiana dos educandos envolvidos.

A atividade docente13 13 A atividade docente contempla elaboração, planejamento, pensar na metodologia que será utilizada para explicação e realização das atividades, como realizar as atividades avaliativas, uso de ferramentas avaliativas que respeitem a língua natural do Surdo, neste caso, a Libras, e a cultura surda. com o estudante Surdo manifesta um jeito de ser e lidar pedagogicamente. Qual deve ser a atitude de aproximação com outros docentes de Filosofia, em situação semelhante no espaço pedagógico, permeado pela diversidade? Diversas foram as posições relatadas sobre a percepção da presença do estudante Surdo na sala de aula inclusiva, revelando um envolvimento, uma postura oriunda da análise da realidade, em que as pessoas afirmam que o Surdo deveria estar em outro espaço, com pessoas especializadas. As posições não expressam, desse modo, a defesa da educação bilíngue, pois aqueles que apresentaram esse posicionamento não manifestaram um conhecimento das questões que envolvem a epistemologia dos estudos surdos e seus desdobramentos. Isso demonstra a consequência da falta de formação continuada para os profissionais e da ausência desse debate na formação inicial.

Não se nega a presença do estudante Surdo com o ouvinte, tampouco a possibilidade do seu aprendizado. Nessa perspectiva, o ensino da Filosofia com estudantes Surdos deve buscar superar as condições desfavoráveis no ambiente inclusivo, como a falta de conhecimento da Libras, da cultura e identidades surdas por parte do docente, além da ausência de textos em videolibras ou SignWriting14 14 Sistema de escrita para registro das línguas de sinais, superando a falsa ideia de que sejam línguas ágrafas. , falta de intérpretes, de adaptações metodológicas e de mediação pedagógica. Não dar importância a esses desafios implica descompromisso com a formação do discente, conforme constatado nas pesquisas de Mendes (2014MENDES, Ademir Aparecido Pinhelli. Atitude filosófica do jovem no cotidiano escolar do Ensino Médio: um estudo sobre as possibilidades da recepção do conteúdo de filosofia política. 2014. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014., p. 94), quando analisa a recepção do estudante do Ensino Médio sobre o aprendizado da Filosofia.

Além desses desafios, há que se considerar o fato de existir o estudante indiferente ao conteúdo, à disciplina. Não gostar da disciplina revela, segundo Mendes (2014MENDES, Ademir Aparecido Pinhelli. Atitude filosófica do jovem no cotidiano escolar do Ensino Médio: um estudo sobre as possibilidades da recepção do conteúdo de filosofia política. 2014. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014., p. 96), um incômodo: como mobilizar alguém que afirma que é indiferente à presença do outro? Não se altera a prática pedagógica? O que isso revela?

As observações e os resultados colhidos a partir dos questionários sobre o ensino de Filosofia com estudantes Surdos em espaços inclusivos salientaram, entre outros elementos, o problema da metodologia e da situação de bilinguismo, que necessita ser enfrentado no ensino de Filosofia. Uma das condições observadas no ensino-aprendizagem diz respeito à forma de oferta do texto de Filosofia em uma língua de que os estudantes não possuem domínio pleno. Considerando o conteúdo dos entrevistados (em 2011) e os apontamentos realizados a partir das observações (em 2015 e 2016), foi possível reconhecer a necessidade de dar acesso ao texto em Libras, dar a devida importância à Libras como um direito linguístico, bem como propiciar condições para a mediação pedagógica dos conteúdos na disciplina Filosofia.

Nesse sentido, a criação de um ritual de aprendizagem na aula de Filosofia colabora para o respeito à língua de identificação cultural do estudante, sem que isso signifique redução/omissão de conteúdos/conhecimentos, assegurando o direito ao acesso e aprendizado do conhecimento filosófico, em igualdade com os demais. Por isso, é relevante a presença do intérprete, também importando formular questões e possibilitar a respostas em Libras. Outras estratégias, como a filmagem das aulas para oportunizar a retomada das explicações para estudo e considerar a escrita, respeitando o português como segunda língua, reconhecem a situação de bilinguismo como condição importante para a recepção filosófica da pessoa Surda.

Considerações finais

Diante das reflexões realizadas, é importante destacar que o contato do estudante Surdo com adultos Surdos permite a apropriação e enriquecimento da cultura surda, colaborando com a constituição da sua identidade. É fundamental que a educação ofertada para esses educandos proporcione “destaque ao papel central da língua, da cultura e das Identidades Surdas como campo discursivo de luta, como prática de significação, de produção de sentido sobre o mundo” (FERNANDES; MOREIRA, 2014FERNANDES, Sueli Fatima; MOREIRA, Laura Ceretta. Políticas de educação bilíngue para Surdos: o contexto brasileiro. Educar em Revista, Curitiba. Número 2/2014- Edição Especial p. 51-70, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/er/a/zJRcjrZgSfFnKpbqTDh7ykK/abstract/?lang=pt. Acesso em: 24 out. 2022.
https://www.scielo.br/j/er/a/zJRcjrZgSfF...
, p. 64).

Além disso, a pesquisa mostrou a importância que o intérprete tem para o aprendizado do estudante Surdo em sala de aula; que o Surdo tem o direito de aprender por meio de sua língua de identificação cultural; que a Libras deve estar presente nos vários espaços escolares; e que é necessária uma educação bilíngue, como defendem a comunidade surda e o campo epistemológico dos estudos surdos. No tocante ao bilinguismo, este não pode estar restrito à presença do TILS, como se isso fosse suficiente para a superação da desigualdade oriunda do habitus decorrente do campo familiar, manifestado no ambiente escolar. Importa perceber que os TILS são importantes na escola inclusiva, mas o docente e o processo de mediação docente precisam incorporar elementos da cultura surda, ter conhecimentos da Libras, estabelecer interação entre o estudante e o conteúdo (como ele vai ler o texto de Filosofia) e uma forma para manifestar o seu entendimento para o professor e o coletivo. Na medida em que se utiliza a Libras para explicar, interagir e possibilitar a manifestação das ideias dos estudantes Surdos, colabora-se para que as condições básicas da aprendizagem filosófica possam ocorrer e as respostas às perguntas radicais apresentadas por Heller (1983HELLER, Agnes. A Filosofia Radical. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1983.) possam ser vivenciadas.

Pensar e repensar o sentido do ensino de Filosofia com o estudante Surdo torna-se fundamental para demonstrar o lugar que ocupa o bilinguismo, a Libras, a cultura surda no processo de ensino-aprendizagem. Como as atividades são solicitadas e em qual língua ocorrem a instrução e a devolutiva pelos estudantes Surdos? Qual é o foco da aula de Filosofia? Considerando a prova e atividades realizadas em língua portuguesa, segunda língua do estudante, traduzidas para Libras muitas vezes pelos TILS e processadas e expressas em língua portuguesa, a quem favorece tal exercício? Mais: como isso efetiva o aprendizado filosófico? Certamente, existe uma intencionalidade positiva em realizar a tradução de atividades e provas para a Libras, mas, ao adotar o viés bilíngue, se deve ir além, não entendendo a língua e os TILS como acessórios para a aprendizagem.

Por fim, pode-se dizer que o ensino de Filosofia pensado a partir do bilinguismo deve superar o entendimento das políticas educacionais (visão governamental oficial) de apenas garantir a Libras como um quesito formal; ao contrário, deve possibilitar que o estudante Surdo tenha acesso à explicação, ao texto, à interação e à produção, respeitando sua língua natural e os elementos da cultura e identidade surdas.

REFERÊNCIAS

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  • REZENDE, Patrícia Luiza Ferreira. Implante coclear na constituição dos sujeitos Surdos. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2010. Orientadora, Ronice Müller de Quadros; co-orientadora, Maura Corcini Lopes. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/94074/281476.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 18 fev. 2020.
    » https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/94074/281476.pdf?sequence=1&isAllowed=y
  • 1
    O termo “surdo” grafado com inicial maiúscula refere-se, segundo Ladd (2013, p. XIV), à “[...] sua experiência primária e a sua fidelidade, muitos do quais percebem sua experiência como essencialmente semelhante a outras minorias linguísticas”. Ainda para Ladd (2013, p. XIV), surdo com inicial minúscula significa as pessoas que têm uma experiência audiológica. Diante disso, este trabalho se encontra em consonância com a primeira grafia, que diz respeito às pessoas que se identificam com a identidade e cultura surdas.
  • 2
    No terreno conceitual da linguística, línguas naturais são produções sócio-históricas fruto das interações das comunidades de fala, em oposição às línguas artificiais, produzidas in vitro com finalidades específicas. As línguas de sinais são línguas de identificação cultural utilizadas em comunidades surdas que, por sua modalidade visuoespacial, não oferecem barreiras à aquisição em situação natural de interação social. O português falado, de modalidade oral-auditiva, não pode ser adquirido em situações naturais de uso por pessoas Surdas, em decorrência de suas perdas auditivas.
  • 3
    Pierre Bourdieu será utilizado em todo o estudo apenas como chave analítica, a partir de seus conceitos, para pensar a relação sujeito-objeto.
  • 4
    Entende-se campo como “apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas)” (BOURDIEU, 1983, p. 89).
  • 5
    Reconhece-se a importância do intérprete nas diversas salas de aula, verificando-se a sua relevância no aprendizado e na mediação nos espaços observados durante a pesquisa, como participantes em sala de aula de Filosofia; todavia, afirma-se que o Surdo tem o direito a ter a Libras presente nos vários espaços escolares, sendo necessária, para isso, uma educação bilíngue, como defendem a comunidade surda e o campo epistemológico dos estudos surdos.
  • 6
    O estudo exploratório compõe os procedimentos metodológicos desenvolvidos na tese de doutorado Sobre a recepção filosófica do estudante Surdo no Ensino Médio (REZENDE, 2019). Os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, consentindo a divulgação de dados, desde que preservado o anonimato quanto às respostas, sendo considerado o aspecto ético no tocante ao questionário e interação com as pessoas envolvidas.
  • 7
    A pergunta inicial foi: “Você se sente preparado para trabalhar com estudantes Surdos? Por quê?”.
  • 8
    Respeitando o aspecto ético, preservou-se a identidade do entrevistado, ressaltando que todos assinaram termos para participação na pesquisa. Esta análise corresponde ao primeiro momento da pesquisa, ocorrido no ano de 2011. Os questionários foram numerados, sendo o Professor 1 do primeiro estabelecimento e o Professor 4 do último.
  • 9
    O tempo pedagógico de duas horas-aula semanais de 50 minutos, numa sala com aproximadamente 40 estudantes, acaba por dificultar as condições para se aproximar do estudante Surdo, entender sua cultura e aprender a Libras.
  • 10
    Em todas as licenciaturas, Pedagogia, Educação Especial e Normal Superior, no prazo máximo de 10 anos - até 2016, portanto.
  • 11
    Esse novo questionário correspondeu ao quarto momento pesquisa.
  • 12
    O Professor 2 utilizou de forma recorrente o termo “deficiente/deficiência” grafado entre aspas para se referir ao estudante Surdo, uma concepção que remete à perspectiva clínico-terapêutica. Quando foi solicitado a responder, na questão 4, sobre o que pensava sobre surdez, o que reconhecia na possibilidade de aprendizagem e aquisição do conhecimento, iniciou o texto reiterando a perspectiva da patologia: “Bem, vejo que é uma ‘deficiência’” (PROFESSOR 2, 2011).
  • 13
    A atividade docente contempla elaboração, planejamento, pensar na metodologia que será utilizada para explicação e realização das atividades, como realizar as atividades avaliativas, uso de ferramentas avaliativas que respeitem a língua natural do Surdo, neste caso, a Libras, e a cultura surda.
  • 14
    Sistema de escrita para registro das línguas de sinais, superando a falsa ideia de que sejam línguas ágrafas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2020
  • Aceito
    12 Out 2022
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