Acessibilidade / Reportar erro

Mas, afinal, que sujeito é esse? Dilemas ético-políticos, concepções de democracia e os sujeitos da aprendizagem na BNCC do Ensino Médio1 1 Esse artigo é fruto de investigações financiadas pelo CNPQ e pela FAPERJ.

RESUMO

O artigo examina as relações entre os sujeitos da aprendizagem, tanto o estudante quanto o/a professor/a, e a mobilização do conceito de democracia na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) correspondente à etapa do Ensino Médio, com destaque para a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas na versão final de 2018. A partir das circunstâncias históricas de produção dessa versão final da BNCC e da delimitação teórica dos dilemas que afetam as subjetividades contemporâneas, é analisado o modo pelo qual o conceito de democracia figura no texto da base curricular mencionada. Constata-se que a democracia é situada como regulador das aspirações ético-políticas de estudantes, sob o viés, no entanto, de horizonte de estabilidade política, desprovida de historicidade, esvaziando assim a agência e o enfrentamento da crise contemporânea pelos sujeitos da aprendizagem.

Palavras-chaves:
BNCC do Ensino Médio; Democracia; Sujeitos da Aprendizagem; Ética e política

ABSTRACT

The article examines the relationships between the subjects of learning, both the student and the teacher, and the mobilization of the concept of democracy, in the National Common Curricular Base, stage of High School, highlighting the area of Applied Human and Social Sciences, final version of 2018. The way in which the concept of democracy appears in the current curriculum base text is analyzed, based on the historical circumstances of the production of this final version of this curriculum and, also, based on the theoretical delimitation of the dilemmas that affect contemporary subjectivities. The main conclusion is that democracy is situated as a regulator of the ethical-political aspirations of students, under the bias, however, of a horizon of political stability, devoid of historicity, thus emptying the agency and the confrontation of the contemporary crisis by the subjects of learning.

Key words:
National Common Curricular Base; Democracy; Learning Subjects; Ethics and politics

Para situar lugares de enunciação acerca da BNCC do Ensino Médio

Caso um/a historiador/a de tempos futuros viesse a tomar como objeto de análise os anos situados entre 2012 e 2022 na sociedade brasileira, teria certamente que fazer seleções e recortes, como aliás procedem todos/as os/as que pensam sobre passados e suas possíveis interpretações. Talvez esse/a historiador/a hipotético/a constatasse o quanto nesses dez anos os enfrentamentos políticos e sociais se acirraram a ponto de esgaçar o frágil tecido da ordem democrática instaurada após o fim dos governos militares, com ênfase no período posterior ao golpe que depôs a presidenta Dilma Rousseff em 2016.

Nós que aqui escrevemos este artigo não nos encontramos nessa fictícia posição de afastamento temporal. Integramos como sujeitos este tempo, um presente agônico e de muitas incertezas, em particular quanto ao exercício de direitos, em bases democráticas, na realização quotidiana de trabalho intelectual docente e investigativo. Somos professores/as e pesquisadores/as que se encontram ao cruzar a Teoria da História com o Ensino/Aprendizagem da História, frisemos, de muitas histórias.

No cruzamento dessas identidades profissionais e de interesses de estudo se situa nosso lugar de enunciação no presente texto. Objetivamos, assim, sistematizar algumas considerações e provocações acerca das concepções de sujeitos da aprendizagem - tanto estudantes quanto os/as professores/as (PASCUAL, 2013PASCUAL, Jesus Garcia. Sujeitos da aprendizagem e tramas do ensino na contemporaneidade. Revista de Psicologia. Fortaleza, v. 4, n. 1, p. 52-62, 2013. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/790/0. Acesso em: 1 out. 2022.
http://www.periodicos.ufc.br/psicologiau...
) -, relacionadas aos dilemas ético-políticos da democracia, na forma como este conceito e aqueles sujeitos foram mobilizados na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) correspondente à etapa do Ensino Médio. A BNCC do Ensino Médio foi homologada pelo Ministério da Educação em dezembro de 2018, integralizando o documento final relativo à BNCC da Educação Básica em todas as suas etapas (BRASIL, 2018). Nosso foco está direcionado à parte relativa do que foi então designado como Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, na qual se insere o componente curricular História.

Se nos remetemos à BNCC do Ensino Médio e ao recorte entre 2012-2022, cabe justificar essas balizas à luz de alguns eventos demarcadores, a saber: a homologação pelo Ministério da Educação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio em janeiro de 2012, documento mobilizado como a principal fundamentação legal da BNCC (BRASIL, 2013); e o ano de 2022, momento em que muitas Secretarias Estaduais de Educação, em diversas unidades da federação brasileira, vivenciam o processo de decidir e implementar reformas curriculares que correspondam às prescrições da BNCC, etapa Ensino Médio.

Os eventos balizadores mencionados remetem a marcos no âmbito das políticas curriculares governamentais e nos servem de circunscrição para debates e enfrentamentos nessa esfera, os quais, sem dúvida, se inserem naqueles dez anos, mas referem-se também a momentos anteriores na contemporaneidade brasileira, nas ilações com o processo de democratização instaurado pela crise dos governos militares, no alvorecer da década de 1980, destaques para a promulgação da Constituição de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 1996; e algumas outras ações, entre elas a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais, na década de 1990, e, no alvorecer do século XXI, das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, relativas à obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, bem como a própria elaboração das Diretrizes Curriculares, culminando com a versão consolidada em 20132 2 Importante situar diferenças quanto à natureza e as especificidades das orientações e prescrições curriculares implementadas pelo governo federal a partir da promulgação da LDB, em 1996. A despeito do nome, os Parâmetros Curriculares efetivaram prescrições no sentido de estabelecer conteúdos e objetivos para a aprendizagem nas diversas etapas e modalidades da Educação Básica. Já as Diretrizes postularam concepções e orientações, detalhadamente construídas, de modo a problematizar as noções de currículo, associando-as à construção de prescrições curriculares, entre elas a base nacional. No caso da elaboração das Diretrizes, deve-se frisar o contexto político, sob os mandatos presidenciais de Luís Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, entre 2003 e 2014, pautados, no âmbito do Ministério da Educação, pela incorporação de demandas da sociedade civil, via consultas públicas, e pelo diálogo com diversos segmentos afeitos ao debate acerca da Educação Básica, entre associações profissionais, secretarias municipais e estaduais, professores/as da Educação Básica e das Universidades. Sobre tais políticas curriculares posteriores à LDB, ver, especialmente: SILVA, 2015. .

Na maneira como o documento final de 2018 relativo à BNCC é apresentado, entre os marcos legais mencionados, as Diretrizes Curriculares Nacionais, na versão consolidada, publicada em 2013, são referenciadas como a base da BNCC, nos termos desta última ser orientada “pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” que norteiam a primeira (BRASIL, 2018, p. 7).

Nossas reflexões mobilizam os marcos mencionados para não só situar a historicidade das políticas curriculares governamentais em pauta, mas para ir um pouco além dos mesmos, ou melhor, para abordá-los tendo em vista as dissonâncias entre a discursividade manifesta no texto do documento curricular proposto na forma de base nacional comum, e já em aplicação, e o que está em jogo - disputado e conflituoso -, nos corpos e vidas dos sujeitos que são diretamente afetados por tais políticas curriculares, no caso, os sujeitos que protagonizam, no quotidiano escolar, as identidades de “professor/a” e “estudante”. Nosso percurso analítico para abordar essas dissonâncias dialoga com a indagação sobre que sujeito é esse que se faz presente (ou ausente) no texto do currículo prescrito da BNCC do Ensino Médio na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

Para pensar sobre essas dissonâncias, argumentamos que cabe igualmente situar como o conceito de democracia, na qualidade de regulador ético político mobilizado em currículos e práticas escolares de ensino de História, é concebido na BNCC do Ensino Médio, ênfase nas competências e habilidades propostas para a área da Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Argumentamos que, se por um lado, o texto estabiliza o conceito de democracia, sem considerar a sua historicidade baseada na permanente inconclusão e na aposta em um vir-a-ser, por outro lado, há a sugestão de que as qualidades da democracia sejam auto evidentes aos sujeitos da aprendizagem - professores/as e estudantes -, como se o pacto em torno dos valores democráticos não demandasse um contínuo convencimento de sujeitos, agenciadores de práticas políticas, como corpos em assembleia (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Notas para uma teoria performativa de assembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.).

E o professor/a faltou....

Os corpos e vidas de professores/as e estudantes foram afetados, e estão sendo afetados, pelas políticas curriculares governamentais dos últimos dez anos e estão também imersos em outros acontecimentos. Os dez anos que entremeiam as balizas de 2012 e 2022 comportam alguns estratos de tempo (KOSELLECK, 2014KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Estudos sobre história. Tradução Marcus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora da PUC-Rio, 2014.) na associação com as camadas e ritmos do que é então percebido como ruptura e continuidade pelos mais variados sujeitos individuais e coletivos.

No âmbito da política, em termos das relações entre Estado e sociedade, houve um número considerável de eventos: as manifestações sociais de 2013, as eleições presidenciais em 2014, marcadas por maior polarização entre candidatos apoiados pelo PT e pelo PSDB, o golpe que destitui a presidenta eleita Dilma Rousseff para seu segundo mandato em 2016, a implementação de pautas reformistas neoliberais pelo governo do presidente Michel Temer (Reforma Previdenciária, entre outras), a expansão de ações de grupos conservadores e ultraconservadores, a qual culminou na eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2018; e durante seu governo, a implementação de novas reformas de cariz neoliberal, como a trabalhista, o redimensionamento de políticas curriculares e outras a ela associadas no âmbito do Ministério da Educação, o espaço aberto para a emergência de negacionismos diversos, amplificados pela pandemia de Covid 19, iniciada em 2020. De certo que a enumeração descritiva dos eventos elencados, e selecionados, não dá conta de tramas e enredos onde sujeitos diversos atuaram.

Poderíamos acrescentar outros eventos, os aqui enunciados nos servem para destacar mais uma chave de leitura para as balizas 2012-2022: se havia, em 2012, um processo de democratização em curso, com todas as suas mazelas e contradições, em 2022, podemos falar de crise democrática, à luz das ações do atual governo federal, nostálgicas do autoritarismo da ditadura militar brasileira, eivadas de negacionismos ambientais e científicos. Essa chave de leitura, que nos leva a situar e colocar em xeque a ordem democrática brasileira, figura para nós como um dos contextos durante o qual, com ritmos e questões próprias, se instituíram e transcorreram debates sobre currículos e estruturas da Educação Básica, em particular no que concerne à etapa do Ensino Médio.

No governo Temer (2016-2018), relembremos, foi editada como medida provisória a Reforma do Ensino Médio, em finais de 2016 (MP 746/16), sendo posteriormente homologada como lei em 2017 (Lei 13.415/17), redirecionando as premissas estabelecidas nas versões anteriores da BNCC, entre 2015 e 2017, para a postulação de uma BNCC do Ensino Médio ao fim homologada em 2018. Tal redirecionamento não nos parece fortuito, vindo ao encontro de pressões de entidades e grupos que apostaram na reestruturação do ensino médio, entendida como a etapa mais problemática da Educação Básica, fosse pelas indagações acerca de suas funções no processo formativo de jovens e adultos, fosse pela marca histórica, no caso brasileiro, de ser o gargalo afunilado onde muitos/as ingressavam, e poucos/as saíam, não completando as três séries previstas no curso regular. O fato da BNCC do Ensino Médio ter se adequado à reforma homologada em 2017 nos parece ser um dado importante para compreender os desenhos muito diferenciados desse documento curricular frente às prescrições da BNCC para o Ensino Fundamental3 3 Há já uma produção bibliográfica expressiva, em processo constante de expansão, acerca das diversas versões da BNCC e dos impactos do Novo Ensino Médio (NEM), cuja sigla abre para a crítica das muitas racionalizações/simplificações então prescritas. Entre tais críticas, dialogamos mais diretamente com: FERRETI, SILVA, 2017; SILVA, 2018; LOPES, 2019; BRANCO, BRANCO, IWASSE, NAGASHIMA, 2019; ARAÚJO, SILVA, 2021 (Dossiê organizado). Nos limites de nossas reflexões neste artigo não caberia realizar um inventário mais exaustivo dessa rica produção bibliográfica. .

A Reforma do Ensino Médio, entre outras mudanças, instituiu itinerários formativos sob a premissa de flexibilizar e racionalizar o funcionamento dessa etapa de escolarização. Na materialização dessa reforma na BNCC do Ensino Médio, entre outras prescrições, valoriza-se a possibilidade dos/as estudantes optarem por formações com objetivos e ênfases de conteúdo - os itinerários formativos - mais em acordo como seus gostos e preferências, ou nos termos do que figura com muitas repetições e ênfases, no “projeto de vida”, adequado aos desafios do mundo contemporâneo e integrado à “preparação básica para o trabalho e a cidadania” (BRASIL, 2018, p. 461-479).

A leitura de tais considerações, na forma como são enunciadas, nos levou à percepção de que há concepções de “sujeito professor” e de “sujeito estudante” muito distintas, manifestas, em particular, no apagamento da agência docente e na valorização dos espaços de deliberação dos/as estudantes sob a tópica do “protagonismo juvenil”, no que concerne ao seu “projeto de vida” e à escolha de seu “itinerário formativo”, numa escola tomada como “espaço que acolhe as juventudes” (BRASIL, 2018, p. 465-468), expressão destacada em negrito, e, dessa forma, “gritada” pelo menos quatro vezes entre as páginas 464 e 468.

O apagamento da agência docente se manifesta igualmente por meio do número de vezes que a palavra professor aparece no texto referente à etapa do Ensino Médio na versão final da BNCC de 2018: três vezes (BRASIL, 2018, p. 468, 529, 591). Sendo importante acrescentar que nenhuma delas figura na parte específica da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (BRASIL, 2018, p. 561-579), a parte mais desidratada, digamos, em função da ausência de prescrições associadas mais diretamente aos componentes curriculares que a compõe, no caso, História, Geografia, Filosofia e Sociologia.

Na leitura a contrapelo dessas prescrições, salta a impressão de que o/a professor/a faltou... E complementemos de forma imaginativa: a sala de aula projetada no texto é um espaço idealizado, repleta de estudantes exercendo seu protagonismo juvenil, com plena autonomia e ciência do que pretendem fazer ou estudar, acolhidos pela escola, em igualdade de condições socioculturais e econômicas.

Dilemas da subjetividade contemporânea nas agências de professores/as e estudantes

Cabe situar, para que possamos prosseguir nossas reflexões, qual concepção de sujeito e de sua condição no mundo - de subjetividade - balizam nossa interpretação e nossa crítica à ausência/presença dos agenciamentos de professores/as e estudantes na BNCC do Ensino Médio. Na junção de reflexões que pensam sobre educação e subjetividade, neste texto, elegemos como âncora as considerações de Alicia de Alba e Michael A. Peters, na coletânea Sujetos em proceso: diversidad, movilidad y políticas de subjetividad em siglo XXI (ALBA, PETERS, 2017ALBA, Alicia de e PETERS, Michael A. (Coord). Sujetos em proceso: diversidad, movilidad y políticas de subjetividad em siglo XXI. México: Universidad Nacional Autónoma de México; IISUE Educación, 2017.), citando-os:

Necesitamos reexaminar no sólo el tiempo, la historia y el desarrollo del sujeto, sus múltiples genealogías dentro de la historia de la filosofía moderna y su reinterpretación y reinscripción activas, sino también su lugar y movimiento geográfico, como cuerpo en el espacio y en movimiento a través de márgenes y de fronteras, en los límites de la cultura. Esto significa en parte el movimiento de cuerpos por los bordes - fronteras nacionales, tradiciones culturales y, cada vez más, en nuevas e inesperadas formas, por la configuración Norte-Sur de naciones ricas y pobres - a fin de llegar a un acuerdo con los procesos interculturales e internacionales, el intercambio, la hibridación, la apropiación, el contacto cultural y la estilización creativa. (ALBA, PETERS, 2017ALBA, Alicia de e PETERS, Michael A. (Coord). Sujetos em proceso: diversidad, movilidad y políticas de subjetividad em siglo XXI. México: Universidad Nacional Autónoma de México; IISUE Educación, 2017., p. 20).

A ênfase de Alba e Peters no exame do sujeito como “corpo em um espaço e em movimento através de margens e de fronteiras, nos limites da cultura” nos parece oportuna tendo em mente que tal abordagem não descarta historicidades e temporalidades, intrínsecas às concepções de sujeito formuladas por filósofos/as modernos/as e pós-modernos/as. Buscam, assim, destacar a presença de sujeitos diversos e plurais, em movimento, nos corpos que possibilitam e realizam suas ações e percepções no mundo, mapeadas pelas muitas desigualdades entre esses corpos no mundo, entre elas, as que demarcam fronteiras entre nações ricas e pobres, e acrescentaríamos, as fronteiras simbólicas e políticas das muitas desigualdades de sociedades como a brasileira, entre outras com passados coloniais.

A demarcação da diferença e da desigualdade entre sujeitos como corpos no mundo, constituindo-se como sujeitos na negociação/resistência frente às muitas desigualdades manifestas, por vezes, nos encontros e desencontros culturais entre indivíduos, povos e comunidades, possibilita colocar em xeque a premissa de que existe um sujeito humano universal isento de qualquer marcador de raça, classe, gênero e orientação sexual.

Na língua portuguesa, como assinalado por Grada Kilomba, a palavra sujeito é identificada como masculina, não havendo a possibilidade de flexioná-la em outros gêneros, ou dela ser neutra, como no caso da língua inglesa (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. Episódios de racismo quotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 11-21). Na apreensão crítica de Grada Kilomba, esse dado aparentemente isento de quaisquer premissas homogeneizadoras da condição humana é mais um dos elementos que viabilizam tomar como igual quem é diferente, no caso, quanto ao gênero que o identifica perante outros/as, instituindo assim uma de suas identidades como pessoa. Há na forma como falamos e nos comunicamos elementos que dizem coisas, e como reiterado por Kilomba, há pegadas falocêntricas, por vezes patriarcais, na semântica da língua portuguesa.

Tal questão semântica é também abordada por Adriana Cavarero. Ao analisar como as tradições da filosofia ocidental de caráter logocêntrico pautaram-se em abstrações generalizadoras tais como Homem, Sujeito e Ser, Cavarero contrapôs essas tradições à aposta em uma filosofia da expressão vocal, tomando a voz como índice de singularização e de expressão e do reconhecimento da singularidade de cada um/a na relação dialógica em que a fala só pode ser decifrada se houver escuta (CAVARERO, 2011CAVARERO, Adriana. Vozes plurais. Filosofia da expressão vocal. Tradução Flavio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.).

As ponderações de Alba, Peters, Kilomba e Cavarero, a despeito de suas especificidades em termos das questões que nortearam as obras aqui mencionadas, podem ser inseridas nos debates e seus desdobramentos acerca do que alguns designaram como giro linguístico (PALTI, 1998PALTI, Elias. Giro lingüístico y historia intelectual. Buenos Aires: Universidade de Quilmes, 1998.; REVEL, 2010REVEL, Jacques. “Recursos narrativos e conhecimento histórico”. In História e historiografia: exercícios críticos. Tradução de Carmen Lucia Druciak. Curitiba: Editora da UFPR, 2010, p. 205-233.), e, associado a ele, a guinada subjetiva (SARLO, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Cia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.; ARFUCH, 2010ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.) e a guinada ético-política (BEVERNAGE, 2012BEVERNAGE, Berber. History, memory, and state-sponsored violence. Time and justice. New York: Routledge, 2012.; RANGEL, 2019RANGEL, Marcelo de Mello. “A urgência do ético: o giro ético-político na Teoria da História e na História da Historiografia”. In Ponta de Lança, São Cristóvão, v. 13, n. 25, jul-dez 2019, p. 27-46.).

A reflexão sobre a condição humana como ser de linguagem redimensionou análises sobre a subjetividade, o que repercutiu, no caso das ditas Ciências Sociais e Humanas, em particular na História, em pelo menos três deslocamentos que aqui buscamos destacar: na problematização da narrativa em bases epistemológicas associadas ao esquadrinhamento de seus potenciais cognitivos; na consideração de que existem experiências do tempo, sendo a chave da categoria tempo também um objeto a ser investigado nas suas especificidades culturais e sociológicas; e na abertura para a historização das concepções sobre sujeito e suas identidades/alteridades.

De certo que as reflexões sobre a tríade conceitual narrativa-temporalidade-subjetividade não foram inventadas pelos debates associados aos giros linguístico, subjetivo e ético-político. De toda forma, a confluência de determinadas discussões e a publicação de textos referenciais entre as décadas de 1960 e a atualidade, em espaços acadêmicos de diversas sociedades em todos os continentes, elaborou outras configurações e instrumentalizações acerca dos dividendos epistemológicos e cognitivos relativos à tríade conceitual mencionada no âmbito das ditas Humanidades, incluindo-se, cabe frisar, a Educação e o campo do Ensino de História (MONTEIRO, 2020MONTEIRO, Ana Maria. “Currículo e docência. Uma trajetória de pesquisa em ensino de história”. In GONÇALVES, Marcia. Teorizar, aprender e ensinar história, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2020, 2020, p. 186-213.; GABRIEL, 2020GABRIEL, Carmen Teresa. “A aposta biográfica na articulação entre teoria e didática da história”. In GONÇALVES, Marcia. Teorizar, aprender e ensinar história, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2020, p. 148-167.).

Na significativa e extensa fortuna crítica acerca dos “dilemas da subjetividade contemporânea”, na apropriação de chave analítica utilizada por Leonor Arfuch (ARFUCH, 2010ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.), elegemos recuperar algumas das reflexões de Judith Butler (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.) e de Paul Ricoeur (RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. “A vida uma narrativa em busca de narrador”. In Escritos e conferências em torno da psicanálise. Tradução Edson Bini. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 197-211.).

Ao pensar sobre como um sujeito humano pode se compreender e se posicionar acerca de questões morais na busca por uma vida ética, Butler apresenta uma forma de circunscrever a subjetividade como algo transitório, em formação, imersa nas experiências singulares e sócio-históricas, implicada nas responsabilidades para com a vida em sociedade, sob premissas fortes de historicizar e valorizar as diferenças entre corpos no mundo. Nas palavras de Butler:

Quando o “eu” busca fazer um relato de si mesmo, pode começar consigo, mas descobrirá que esse “si mesmo” já está implicado numa temporalidade social que excede suas próprias capacidades de narração; na verdade, quando o “eu” busca fazer um relato de si mesmo sem deixar de incluir as condições de seu próprio surgimento, deve, por necessidade, tornar-se um teórico social. A razão disso é que o “eu” não tem história própria que não seja também a história de uma relação - ou conjunto de relações - para com um conjunto de normas. [...] Até certo ponto, as condições sociais de seu surgimento sempre desapossam o “eu”. (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 18, grifos nossos).

As imputações do que está em jogo com o relatar a si mesmo, o “tornar-se um teórico social”, se referem a um sujeito que não existe por si só, sendo, necessariamente, uma crítica à concepção adepta de premissas essencialistas da plena autonomia e da autorreferencialidade de bases racionalistas no escopo de determinadas tradições iluministas. A apreensão de que o “eu” não tem uma história que não esteja implicada nas normas e na temporalidade social que o instituem como sujeito no mundo fundamenta o que Butler compreende como sua despossessão.

Ao postular que não nascemos um “eu” possuidor de subjetividade, Butler tanto indica a inexorável dependência relacional para com o outro quanto sublinha a vulnerabilidade e a singularidade desse eu que se torna sujeito ao viver e agir no mundo; de modo que “o eu não nasce sem um encontro prévio, sem uma relação primária, sem um conjunto de impressões inaugurais oriundas de outro lugar” (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 79).

Butler empreende um pensar sobre as implicações sociais e históricas formadoras de um sujeito que se reconhece como tal à luz de suas vulnerabilidades, deliberações, e das imputações normativas do viver com outros. Tal postulação, contudo, se baseia em outra, a saber: a de que o vivido e o vivível não cabem no narrado. Como pondera Butler:

O corpo singular a que se refere uma narrativa não pode ser capturado por uma narrativa completa [...]. O sujeito sempre faz um relato de si mesmo para o outro, seja inventado, seja existente, e o outro estabelece a cena de interpelação como uma relação ética mais primária do que o esforço reflexivo que o sujeito faz para relatar a si mesmo. (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 33, grifos nossos).

Ao referenciar o “eu” que narra a si mesmo como um corpo singular, destacando que esse corpo não pode ser contido na narrativa, Butler sinaliza para nossa corporeidade como expressão do que somos e do como estamos no mundo. Corporeidade atravessada por marcadores de raça, fala, gênero, e tantos outros, elaborados discursivamente com base nessa corporeidade, sedimentando, muitas vezes, relações de poder normalizadoras de hierarquias, exclusões e graus de precariedade nas condições de vida de muitos sujeitos, nas mais diversas sociedades, em especial as que se regem por essencialidades patriarcais, misóginas, racistas e homofóbicas, e, acrescentemos, passados coloniais.

Ao situar a corporeidade e os limites intrínsecos a uma operação de relatar a si mesmo, Butler indica os desdobramentos éticos e políticos a partir dos quais nos responsabilizamos não só por nós, mas com os outros, deliberando sobre as condições de vida e de viver que urgem ser mudadas. Nesses termos, Butler afirma que:

O si mesmo em questão é claramente “formado” dentro de um conjunto de convenções sociais que suscitam a pergunta sobre se é possível ter uma boa vida dentro de uma má, e se deveríamos, ao nos reinventarmos com o outro e pelo outro, participar da recriação das condições sociais. [...] A resposta à exigência de relatar a si mesmo diz respeito a compreender ao mesmo tempo a formação do sujeito e sua relação com a responsabilidade. [...] Se certas versões da investigação moral preocupada com o si mesmo nos levam de volta a um narcisismo apoiado por meio de modos de individualismo socialmente impostos, e se esse narcisismo leva a uma violência ética [...], então parece obrigatório, quiçá urgente, reformular a questão da responsabilidade da seguinte maneira: como somos formados na vida social e a que custo? (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 170-171, grifos nossos).

As partes grifadas nas citações anteriores, no nosso entendimento, possibilitam complementar a ênfase sobre corpos em movimento/sujeitos em processo aludidos nas considerações de Alba e Peters, tendo como guia as reflexões de Judith Butler, entre elas a “despossessão”, que marca sujeitos como corpos no mundo formados por condições sociais sobre as quais não podem responder pela autoria, mas nas quais estão implicados, sendo também interpelados por outros sujeitos, de modo que venham (ou não) a deliberar acerca de atos que mudem as condições e normas sociais em vigor.

No sujeito “despossuído” de Butler há o chamamento para as dimensões ética e política dos processos de formação de sujeitos e subjetividades, para a crítica aos valores do narcisismo individualista, caros a uma concepção de sujeito que se faz por si mesmo, e para a posse autocentrada de decisões sobre si e sua vida que sejam descomprometidas com outros sujeitos e suas condições de vida.

A concepção de “sujeito-estudante”, na forma como aparece na BNCC do Ensino Médio, em especial quanto ao “projeto de vida” e à escolha dos itinerários formativos, nos parece ser muito próxima de um sujeito autorreferenciado e que exerce seu protagonismo juvenil como algo que nasceu junto com ele, desde que assumiu para si a alcunha de jovem. Da mesma forma, não há ponderação que enfatize o atravessamento desse “sujeito-estudante” pelos dilemas éticos e políticos contemporâneos, entre eles as desigualdades que hierarquizam e excluem, com brutalidade e violência, as diferenças entre indivíduos e grupos na crise democrática em curso. O/a jovem que exerce seu protagonismo nos termos da BNCC do Ensino Médio igualmente não parece afetado pelas muitas questões identitárias associadas aos marcadores sociais de classe, raça, gênero, entre outros.

Tal concepção de “sujeito-estudante” lida, em complementaridade, por meio da ênfase acerca de uma escola que acolhe as juventudes, com o apagamento do “sujeito professor/a”, esvaziando o protagonismo desse agente nos processos formativos que se realizam nos espaços escolares da Educação Básica. Nessa forma de conceber, o/a professor/a torna-se um sujeito elíptico, estando lá, nas escolas, mas não sendo nomeado e reverenciado na singularização e valorização de suas ações e identidades intelectuais e profissionais.

Em complementaridade às reflexões de Butler, dialogamos com Paul Ricoeur, em análises sobre o conceito de identidade narrativa, as quais possibilitam desvelar alguns dos procedimentos intrínsecos ao ato de narrar, em que a apreensão das temporalidades históricas e as construções identitárias subjetivas são instituídas e reelaboradas por palavras agregadas em enredo (RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. “A vida uma narrativa em busca de narrador”. In Escritos e conferências em torno da psicanálise. Tradução Edson Bini. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 197-211.).

O ato de narrar, ao produzir um enredo, configura uma identidade temporal e uma inteligência narrativa, gestando um conhecimento. A finalização desse ato cognitivo não se encerra no texto em si, mas no leitor. Ao ter como referência o valor da recepção manifesta nos atos de leitura, Ricoeur busca situar as interdependências entre narrativa e vida, acrescentando o quanto a vida humana em suas ações e percepções no mundo é simbolicamente mediatizada, uma espécie de círculo virtuoso entre experiência humana, sistemas simbólicos e narrativas que elaboramos e ouvimos.

A apreensão e compreensão do mundo no qual se vive, possibilitada pelo ato de narrar, possui para Ricoeur valor fundamental ao permitir a apreensão de nossas experiências temporais, nos termos de construir inteligibilidade para as relações entre passado, presente e futuro. Essa apreensão da experiência temporal se manifestaria para Ricoeur em nossas identidades narrativas, como assim enfatiza:

Insisto nesta expressão “identidade narrativa”, pois o que chamamos de a subjetividade não é nem uma sequência incoerente de acontecimentos, nem uma substancialidade imutável inacessível ao devir. É precisamente a espécie de identidade que exclusivamente a composição narrativa pode criar por seu dinamismo. [...] Essa definição da subjetividade pela identidade narrativa tem numerosas implicações [...]. É assim que aprendemos a nos tornar o narrador de nossa própria história sem que nos tornemos integralmente o autor de nossa vida. [...] Permitam-me dizer [...] que aquilo que chamamos de sujeito jamais é dado na partida. Ou, se é, arrisca-se a reduzir-se ao ego narcisista, egoísta e avaro [...] O que perdemos do lado do narcisismo nós o recuperamos do lado da identidade narrativa. Em lugar de um ego apaixonado por si mesmo nasce um self instruído pelos símbolos culturais [...] (RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. “A vida uma narrativa em busca de narrador”. In Escritos e conferências em torno da psicanálise. Tradução Edson Bini. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 197-211., p. 210-211).

As considerações de Ricoeur sobre identidade narrativa complementam as considerações de Butler no sentido de não só frisar a crítica ao sujeito que se faz por si mesmo, nos termos de “um ego narcisista”, mas também no sentido de frisar as dimensões de construção das identidades subjetivas, temporalizando-as e implicando-as de maneira relacional com outros sujeitos. Como nos interessa frisar, em particular, tais identidades se constituem nos processos formativos de subjetividades nos quais a leitura, a apreensão e a decifração do mundo se realizam por meio de muitas aprendizagens, entre elas as escolares, estas, certamente, possibilitadoras de nos “tornar o narrador de nossa própria história”.

No caso escolar, ocorrem processos formativos que se realizam em situações de comunicação onde sujeitos - professores/as e estudantes - distintos em suas identidades se implicam mutuamente na enunciação de falas e na partilha da escuta atenta dessas vozes plurais, em bases democráticas.

Ao apagar e elidir a agência docente, o texto da BNCC do Ensino Médio, em particular nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, instaura uma ética que investe em desconsiderar o/a professor/a, e, por conseguinte, uma concepção de ensino/aprendizagem dialógica entre professores/as e estudantes no universo diverso, complexo e conflituoso dos espaços escolares no Brasil contemporâneo. Por outro lado, no mesmo texto, observa-se a inflação do protagonismo dos/as jovens sem enfatizar os processos formativos escolares, nos quais atuam professores/as, de modo que estudantes possam se tornar “narradores de suas próprias histórias” em bases que problematizem fronteiras de classe, raça e gênero.

Tal investimento não nos parece ingênuo, se recuperarmos as condições políticas em que a Reforma do Ensino Médio e a própria BNCC referente a essa etapa vieram a ser homologadas. Entre essas condições, vale mencionar, as situações em que professores e professoras foram afetados pelas investidas do movimento “Escola sem Partido” (PENNA, 2016PENNA, Fernando de Araújo. “Programa Escola Sem Partido: uma ameaça à educação emancipadora”. In GABRIEL, Carmen Teresa; MONTEIRO, Ana Maria e MARTINS, Marcus Leonardo Bonfim. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016, p. 43-58.), sob a premissa de que seus fazeres profissionais se resumiam a uma pressuposta doutrinação ideológica. Nesse contexto de crise democrática e de depreciação de práticas educativas emancipadoras talvez possamos interpretar o que o texto da BNCC do Ensino Médio informa sem necessariamente dizer com todas as letras. Nessa direção, cabe então refletir sobre como o conceito de democracia é mobilizado nesse documento curricular.

O sujeito estudante na proposta da BNCC: formação para a cultura democrática

Tendo em vista a construção de uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva, condição para a cidadania e para o aprimoramento do educando como pessoa humana, as escolas devem se constituir em espaços que permitam aos estudantes valorizar: a não violência e o diálogo, possibilitando a manifestação de opiniões e pontos de vista diferentes, divergentes ou conflitantes; o respeito à dignidade do outro, favorecendo o convívio entre diferentes; o combate às discriminações e às violações a pessoas ou grupos sociais a participação política e social; e a construção de projetos pessoais e coletivos, baseados na liberdade, na justiça social, na solidariedade e na sustentabilidade. (BRASIL, 2018, p. 465).

A passagem acima deixa clara a orientação ético-política que sustenta a ideia de sujeito da aprendizagem proposta na BNCC: o texto projeta um sujeito que se forma para a valorização da cultura democrática. Os fundamentos da democracia oferecem a regulação ética a partir da qual o currículo e a cultura escolar devem se movimentar. O que está em jogo não é apenas o conhecimento e a adesão às regras de funcionamento de instituições democráticas nos termos da democracia liberal-representativa, mas sim a formação de um estudante que oriente suas práticas políticas em função dos valores democráticos substanciais. Em outras palavras, para além do enaltecimento da democracia representativa como regime político, o texto da BNCC aponta para a formação de um sujeito-estudante que valorize princípios eticamente orientados para as práticas democráticas no cotidiano - na vida e na escola - tais como: o diálogo com a diferença, a manifestação de pontos de vista contrários, o repúdio a todo tipo de discriminação, a defesa da liberdade, da justiça social, a solidariedade e a sustentabilidade. Estamos falando, portanto, de um programa democrático que sugere o desenvolvimento de direitos civis, políticos e sociais como condição para o aprimoramento da cidadania e garantia de justiça social - sem que isso altere ou comprometa o desenvolvimento do modo de produção capitalista e suas bases fundamentais, como a propriedade privada, o lucro e a desigualdade social.

Nesse sentido, a BNCC mantém vínculo com documentos e orientações curriculares anteriores, elaborados na esteira da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996 - um texto que sintetiza, para a educação, as aspirações do programa democrático definido pela Constituição de 1988. Desde então, muitas ações governamentais, no âmbito das orientações e prescrições curriculares, pautaram-se no compromisso com a formação de uma cidadania democrática (BITTENCOURT, 2018BITTENCOURT, Circe. “Reflexões sobre o ensino de História” Estudos avançados, 32 (93), p. 127-149, 2018. Disponível em https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/152562 Acesso em 8 out 2022.
https://www.revistas.usp.br/eav/article/...
, p. 142). Trata-se de um movimento iniciado na década de 1990 que conferiu à União a responsabilidade de estabelecer princípios para a Educação Básica em conjunto com estados e municípios. Além do caráter nacional, houve a ênfase em orientações e prescrições curriculares em que “mais importante do que aprender um conteúdo relativo a uma área de conhecimento é desenvolver procedimentos que permitam ao aluno aprender a conhecer” (MAGALHAES, 2006MAGALHAES, Marcelo. “Apontamentos para pensar o ensino de História hoje: reformas curriculares, Ensino Médio e formação do professor” Tempo 11 (21), Jun 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tem/a/YYr8PNC7mycyh6v9rQnhSxr/abstract/?lang=pt Acesso em 8 out. 2022.
https://www.scielo.br/j/tem/a/YYr8PNC7my...
, p. 53).

Ao mencionar as finalidades da área de Ciências Humanas e Sociais para o Ensino Médio, o texto destaca a necessidade de formação subjetiva do educando em duas grandes direções: formação para a cidadania a partir de princípios democráticos e preparação básica para o mundo do trabalho. Vida política e mundo do trabalho aparecem como eixos estruturantes das habilidades e competências propostas para a área. Espera-se, grosso modo, que o sujeito-estudante da aprendizagem seja capaz de identificar os projetos políticos e econômicos em disputa; compreender as regras de funcionamento da sociedade, as lógicas de poder, as teorias em torno do Estado.

o estudo das categorias Política e Trabalho no Ensino Médio permite aos estudantes compreender e analisar a diversidade de papéis dos múltiplos sujeitos e seus mecanismos de atuação e identificar os projetos políticos e econômicos em disputa nas diferentes sociedades. Essas categorias contribuem para que os estudantes possam atuar com vistas à construção da democracia, em meio aos enfrentamentos gerados nas relações de produção e trabalho. (BRASIL, 2018, p. 557).

Este investimento no conceito de democracia enquanto balizador ético-político para currículos escolares de história encontra elo com outra camada temporal de contexto: o Pós-Segunda Guerra Mundial e seus desdobramentos ao longo da segunda metade do século XX. De acordo com Circe Bittencourt (2018BITTENCOURT, Circe. “Reflexões sobre o ensino de História” Estudos avançados, 32 (93), p. 127-149, 2018. Disponível em https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/152562 Acesso em 8 out 2022.
https://www.revistas.usp.br/eav/article/...
), no contexto de redefinições políticas e ideológicas, sob patrocínio de entidades internacionais, como a Unesco, foi proposta a difusão de um ensino de “história para a paz” apontando para uma renovação curricular em escala internacional orientada para a valorização da democracia e dos direitos humanos (BITTENCOURT, 2018BITTENCOURT, Circe. “Reflexões sobre o ensino de História” Estudos avançados, 32 (93), p. 127-149, 2018. Disponível em https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/152562 Acesso em 8 out 2022.
https://www.revistas.usp.br/eav/article/...
, p. 139). O ensino de história se articulava, nesse sentido, a um ambiente político maior no pós-guerra: diante das enormes mazelas éticas promovidas pelo nazi-fascismo, a democracia adquire um valor e uma legitimidade universal. Segundo Luis Felipe Miguel:

A partir da Segunda Guerra Mundial, num processo contínuo, a democracia vem ganhando legitimidade universal. Nos países do Ocidente, é o único regime político capaz de garantir a aceitação dos governados. Em todo o mundo, os mais diversos regimes buscaram adaptar o rótulo de ‘democrático’ para si próprios, gerando uma miríade de democracias adjetivadas, das antigas ‘democracias populares’ do Leste europeu à ‘democracia islâmica’ da Líbia do coronel Muamar Gadaffi; ou, ao menos, afirmavam ser etapas necessárias para a edificação da democracia, como as ditaduras de segurança nacional na América do Sul.” (MIGUEL, 2014MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2014., p. 12).

A esse respeito, vale a pena destacar a reflexão de Cristian Laville (1999LAVILLE , Christian. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 19, nº 38, pp. 125-138. 1999. Disponível em https://www.scielo.br/j/rbh/a/jKD6TyyYNJXW7JMPnyxgBps/?lang=pt&format=pdf Acesso em 8 out 2022.
https://www.scielo.br/j/rbh/a/jKD6TyyYNJ...
). Ele apresenta um panorama acerca da relação entre currículo escolar de história e perspectiva democrática, considerando como marco fundamental, também, a experiência do pós-guerra. Para o autor, a valorização da cultura democrática inaugurada no pós-guerra propiciou gradativamente a substituição, no ensino de história, da perspectiva de formação do “cidadão-súdito” - voltado à instrução nacional e à exaltação dos valores e símbolos nacionais - para a formação do cidadão-participante nos termos da democracia (LAVILLE, 1999LAVILLE , Christian. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 19, nº 38, pp. 125-138. 1999. Disponível em https://www.scielo.br/j/rbh/a/jKD6TyyYNJXW7JMPnyxgBps/?lang=pt&format=pdf Acesso em 8 out 2022.
https://www.scielo.br/j/rbh/a/jKD6TyyYNJ...
, p. 126). O objetivo passou a ser a instrumentalização dos jovens para participar democraticamente da sociedade, desenvolvendo neles capacidades intelectuais e afetivas, incorporando características propriamente democráticas, como a abertura ao diálogo e à diferença, enquanto elemento procedimental do ensino-aprendizagem e objetivo da aprendizagem. Essa novidade promoveu uma mudança decisiva, segundo Laville: “a pedagogia da história passava de uma pedagogia centrada no ensino para uma pedagogia centrada nas aprendizagens dos alunos.” (LAVILLE, 1999, p. 127).

Entendido dessa maneira, o processo de ensino-aprendizagem só se efetiva na aprendizagem, e os critérios de validação ética se relacionam às formas pelas quais os sujeitos da aprendizagem apreendem os conteúdos da história para a vida - nos termos do autor, “formar indivíduos autônomos e críticos e levá-los a desenvolver as capacidades intelectuais e afetivas adequadas, fazendo com que trabalhem com conteúdos históricos abertos e variados” (LAVILLE, 1999LAVILLE , Christian. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 19, nº 38, pp. 125-138. 1999. Disponível em https://www.scielo.br/j/rbh/a/jKD6TyyYNJXW7JMPnyxgBps/?lang=pt&format=pdf Acesso em 8 out 2022.
https://www.scielo.br/j/rbh/a/jKD6TyyYNJ...
, p. 127). Nesse sentido, não se trata mais de lançar mão da história ensinada aos propósitos da identidade nacional nos termos oitocentistas, ou como mero meio de difusão da pesquisa histórica, mas de orientar o conhecimento sobre a história a um sentido ético-político segundo o qual os valores democráticos estão no centro. É a memória do nazi-fascismo e do holocausto que modifica a pergunta acerca do que para que serve ensinar história: não pode estar a serviço da violência e da perseguição às minorias e, também, não se isenta diante das questões do mundo contemporâneo.

Para além de conhecer e valorizar a democracia por meio dos estudos históricos, o que está em jogo é assumir uma perspectiva democrática de abordagem. A esse respeito, Abreu e Rangel (2015RANGEL, Marcelo de M.; DE ARAUJO, Valdei L. Apresentação - Teoria e história da historiografia: do giro linguístico ao giro ético-político. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 8, n. 17, 2015. Disponível em https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/917 Acesso em 7 out 2022.
https://www.historiadahistoriografia.com...
) nos ajudam a ampliar o argumento de Laville ao propor que esta reflexão ético-política gerada no pós-guerra atribui ao ensino de história a tarefa de se incorporar e instrumentalizar os meios para promover uma tendência à democratização, assumindo alteridade como imperativo decisivo (ABREU e RANGEL, 2015RANGEL, Marcelo de M.; DE ARAUJO, Valdei L. Apresentação - Teoria e história da historiografia: do giro linguístico ao giro ético-político. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 8, n. 17, 2015. Disponível em https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/917 Acesso em 7 out 2022.
https://www.historiadahistoriografia.com...
, p. 9). Nesse sentido, o ensino de história teria o potencial de produzir narrativas múltiplas em vez de unificadoras, empreendendo a passagem da produção de identidades delimitadas e etnocêntricas que deram conta de organizar os sentidos de verdade e realidade desde o século XIX, para o investimento, no pós-guerra, no primado da diferença (ABREU e RANGEL, 2015, p. 10). Ao enfatizar a ideia da tendência à democracia, os autores destacam o caráter de movimento que envolve esse conceito.

E este movimento, que ressalta a democracia em sua historicidade, elucida questões fundamentais para pensarmos o texto da BNCC: ao tomar a democracia como valor universal e a-histórico, supondo a existência de sujeitos-estudantes dispostos previamente a consagrá-la, não se estaria promovendo o esvaziamento político do conceito? Na BNCC a valorização da cultura democrática se apresenta como regulador ético-político para a formação do sujeito-estudante respondendo, assim, a um contexto internacional de pactuação em torno das vantagens da democracia para uma vida em comum - mas, também, de um alargamento acerca dos sentidos do democrático. Isto que Luis Felipe Miguel denomina de “democracia adjetivada” impõe o risco de esvaziamento do próprio conceito, de modo que um regime autoritário pudesse legitimar ações autoritárias em nome da democracia. A crise da democracia contemporânea evidencia as disputas por este conceito: ainda que os discursos e práticas de lideranças de extrema direita revelem o rompimento do consenso em relação à princípios éticos fundamentais da democracia - como o direito à vida, aos direitos humanos e à não discriminação de grupos minorizados, por exemplo - ainda é forte a exaltação das “verdadeiras democracias” inaugurada por estas lideranças (RUNCIMAN, 2018RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo, Todavia, 2018.; LEVITSKY e ZIBLATT, 2018LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.).

Mas, afinal, qual o lugar das Humanidades e da História como componente curricular escolar neste processo? Se a BNCC sugere a valorização da cultura democrática como mola mestra reguladora, é possível enfrentar a crise democrática contemporânea com os instrumentos oferecidos pela Base?

Democracia como conceito histórico em movimento e a BNCC

Com efeito, em função das tensões e das incertezas a ela subjacentes, a democracia constitui o político num campo amplamente aberto. Se há mais de dois séculos ela aparece como princípio organizador incontornável de toda ordem política moderna, o imperativo que traduz esta evidência tem sido sempre tão intenso quanto impreciso. Por ser fundadora de uma experiência de liberdade, a democracia nunca deixa de constituir uma solução problemática para instituir uma polis de homens livres. Nela se unem há muito tempo o sonho do bem e a realidade da indeterminação. O que há de particular a essa coexistência, é que não se trata de um ideal longínquo sobre o qual todos estariam de acordo; as divergências acerca de sua definição remetem aos meios empregados para realizá-la. [GRIFO MEU] (ROSANVALLON, 2010ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010., p. 74).

É dessa maneira que o cientista político Pierre Rosanvallon caracteriza o conceito moderno de democracia: não apenas em seu potencial aglutinador de sonhos de uma vida pública mais justa - dotada de maior liberdade e/ou igualdade -, mas assumindo um caráter essencialmente aberto, vacilante e fadado à indeterminação. Para ele, as definições de democracia, em termos modernos, estariam vinculadas a um estado permanente de vir a ser, de modo que os limites do democrático nunca estariam claramente definidos a priori. Abre-se margem, desse modo, para a crítica e a complementação dos cidadãos - um estado de agência contínua. Se atribui à democracia um caráter vacilante, instável, pois, nas sociedades democráticas as condições da vida comum nunca estão definidas por uma tradição ou impostas por uma autoridade; ela se apresenta, nesse sentido, como uma espécie de solução incompleta e problemática para a vida comum, o que leva à produção de certo mal-estar subjacente a sua história, sem jamais “resistir a uma categorização livre de discussões” (ROSANVALLON, 2010ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010., p. 74). Tal característica enseja uma história de desencantamento e indeterminação fundada nos princípios democráticos: “Tal vacilação constitui o impulso de uma busca e de uma insatisfação que se esforçam simultaneamente por se explicitar” (ROSANVALLON, 2010, p. 75). Em outras palavras, trata-se de um regime político que reúne as aspirações de participação social do homem comum na vida política, fadada às vacilações e aos desejos de progresso que este homem pode vir a buscar, causando sempre certa sensação de insatisfação que o impulsiona à agência, à busca de aperfeiçoamento, mas que, de tão infinita, tende a causar frustração.

Trata-se de um conceito temporalizado, nos termos de Reinhart Koselleck (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patricia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora da PUC-Rio, 2006.). Para ele, a abrangência e a elasticidade, próprias ao conceito de democracia, advêm de uma forma moderna de apreender os conceitos políticos. Uma forma temporalizada, na medida em que atravessada pelas circunstâncias histórico-sociais de produção, balizada por um tempo presente que aponta para um devir e para a possibilidade de mudança no futuro. Deste modo, conceitos temporalizados apostam numa circunscrição temporal presente, mas baseiam-se “apenas parcialmente na experiência”, já que “a expectativa que depositam no tempo que está por vir está em proporção inversa à experiência que lhes falta” (KOSELLECK, 2006, p. 297). Koselleck nos explica, ainda, que essa mudança é sintoma de uma abrangência maior no uso dos conceitos políticos para além do círculo da nobreza, dos eruditos, que conformava a sociedade estamental pré-moderna em uma estrutura linguística hierarquizada.

Ou seja, o vocabulário político moderno baseado na Filosofia Política Iluminista e em experiências fundamentais como a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, tornou mais abrangente a disseminação daquele novo vocabulário político, incorporando o cidadão comum como interlocutor e potencial enunciador e disseminador de tais valores, fazendo com que as práticas políticas estivessem à disposição de grupos cada vez mais heterogêneos e plurais, logo, capazes de produzir distorções de sentido - distorções não no sentido negativo do termo. “Produziu-se - na França revolucionária isso foi muito rápida - uma batalha em torno dos conceitos; o controle da linguagem se tornou tanto mais urgente quanto maior o número de pessoas precisava ser atingidas” (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patricia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora da PUC-Rio, 2006., p. 300); “A temporalização, que de início se inscrevia na teoria histórica, a partir de então penetrou fundo na vida quotidiana” (KOSELLECK, 2006, p. 301). Em suma, a política e a utilização dos conceitos instrumentalizaram a ação de pessoas comuns, incorporando, inclusive, suas aspirações de futuro; lutar em nome da Revolução, por exemplo, confere outro estatuto a experiências de guerras civis.

Em perspectiva temporalizada, conceitos tradicionais ou recentes passam a ser examinados por sua historicidade, isto é, por sua capacidade de definir experiências do presente até então inéditas, produzindo uma relação passado-presente-futuro não mais ancorada na possibilidade de que o futuro pudesse repetir o passado. Diante de conjunturas inéditas, os sujeitos históricos se comportam de forma variada e imprevisível: “Os homens perderam boa parte da confiança em seus passados, em seu poder de rearticulação, de reorganização do presente” (ARAÚJO e RANGEL, 2015RANGEL, Marcelo de M.; DE ARAUJO, Valdei L. Apresentação - Teoria e história da historiografia: do giro linguístico ao giro ético-político. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 8, n. 17, 2015. Disponível em https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/917 Acesso em 7 out 2022.
https://www.historiadahistoriografia.com...
, p. 320). É essa perda de confiança no passado que lança o agente político moderno à ação, apostando que a experiência histórica da política é sempre passível de modificação - a famosa frase de Marx, de que “tudo o que é sólido desmancha no ar” sintetiza essas aspirações. O conceito de democracia abriga, em sua condição vacilante e inconclusa nos termos de Rosanvallon, esse potencial para a ação mobilizado a partir da sua historicidade.

Se o conceito de democracia aparece no texto da BNCC como um regulador ético-político para o qual se dirige a formação do sujeito estudante do ensino médio, a concepção de democracia apresentada na Base não incorpora a historicidade que potencializa a agência política nos termos traçados aqui por Rosanvallon e Koselleck.

O trecho abaixo evidencia um traço geral recorrente nas proposições da BNCC para a área de Ciências Humanas: a ênfase na elaboração argumentativa, a partir da compreensão dos mecanismos de funcionamento da sociedade em sua dinâmica histórica.

No Ensino Médio, as análises sobre acontecimentos ocorridos em circunstâncias variadas permitem compreender processos marcados pela continuidade, por mudanças e por rupturas. Portanto, analisar, comparar e compreender diferentes sociedades, sua cultura material, sua formação e desenvolvimento no tempo e no espaço, a natureza de suas instituições, as razões das desigualdades, os conflitos, em maior ou menor escala, e as relações de poder no interior da sociedade ou no contexto mundial são alguns dos principais desafios propostos pela área para o Ensino Médio. (BRASIL, 2018, p 550-551, grifos nossos).

A sugestão é para que se conheçam as experiências históricas, a natureza das instituições de poder e o modo pelo qual elas se articulam historicamente. O esforço maior, como destacado, é no sentido de analisar, comparar e compreender diferentes sociedades, dispondo ao estudante as ferramentas para que ele entenda como o mundo social é construído. De imediato chama a atenção nessa passagem e no conjunto do texto um propósito descritivo que busca evidenciar problemas sem enfrentá-los com os instrumentos disponibilizados pela história.

A competência específica 6, que trata de maneira mais imediata da questão democrática, elucida questões decisivas ao nosso argumento:

COMPETÊNCIA ESPECÍFICA 6 Participar, pessoal e coletivamente, do debate público de forma consciente e qualificada, respeitando diferentes posições, com vistas a possibilitar escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. Nesta competência específica, pretende-se tratar da linguagem política (aristocracia, democracia, república, autoritarismo, populismo, ditadura, liberalismo, marxismo, fascismo, stalinismo etc.), mostrando como os termos passaram por mudanças ao longo da história. Portanto, cada uma das palavras precisa ser explicada e interpretada em circunstâncias históricas específicas. As interpretações podem ser variadas e o uso de determinadas palavras no cotidiano podem levar a conflitos, em especial por envolver doutrinas políticas que, não raro, são controvertidas. Diante desse grande desafio, é importante identificar demandas político-sociais de diferentes sociedades e grupos sociais, destacando questões culturais, em especial aquelas que dizem respeito às populações indígenas e afrodescendentes. As formas de violência física e simbólica, o reconhecimento de diferentes níveis de desigualdade e a relação desigual entre países indicam a importância da ampliação da temática dos Direitos Humanos, relacionada à aquisição de consciência e responsabilização tanto em nível individual como comunitário, nacional e internacional. (BRASIL, 2018, p. 565).

Lendo a BNCC para o ensino médio em conjunto, e a passagem acima em particular, fica a impressão de que ela foi elaborada a partir de um horizonte de estabilização do conceito de democracia. Ou seja, parte-se do pressuposto de que há um consenso entre os sujeitos da aprendizagem acerca das vantagens da cultura democrática, como se ela não demandasse um contínuo exercício de convencimento dos cidadãos acerca da contenção dos riscos autoritários e da necessidade de aprofundamento dos valores democráticos. Para que o propósito formador do texto tenha êxito, é necessário que o estudante já disponha previamente dos meios de valorização da cultura democrática. Isso explicaria, por exemplo, a proposição de uma abordagem descritiva das linguagens políticas envolvendo a emergência de sistemas autoritários e a análise de conceitos como fascismo e ditadura tendo em vista as suas interpretações abertas e variadas. A preocupação parece ser, estritamente, a exposição das controvérsias.

Lido neste tempo de crise democrática que é o nosso - uma crise que parece não ser passageira - em que os valores democráticos não estão mais pactuados, a solução proposta no texto nos parece insuficiente. Diante da crise, partimos do pressuposto de que os interlocutores em ação na cena pública, inclusive na escola e na aula, não estão previamente convencidos acerca das vantagens da democracia. E isto eleva a necessidade de historiciza-la, entendendo democracia como um conceito em movimento.

Mas, afinal, que sujeito é esse? Ensino de história e o enfrentamento da crise

Este artigo foi escrito considerando a prerrogativa da crise democrática contemporânea: o debate sobre a BNCC do Ensino Médio, as circunstâncias de sua elaboração entre 2012-2022, o/a professor/a ausente e as concepções de democracia propostas para os sujeitos estudantes. Uma crise que delimita o horizonte de escrita e de leituras da própria BNCC: em um documento tão ocupado com a valorização da cultura democrática, convém indagar, como a leitura desse texto instrumentaliza os sujeitos da aprendizagem, professores/as e estudantes, para a agência política vocalizada para a defesa da democracia? Esse conceito vacilante, inconcluso e disponível a um vir-a-ser. Mais ainda: e se a democracia estiver sob ameaça, se o horizonte de ação passa a ser não apenas o aprofundamento, mas o restabelecimento dos pactos democráticos estabelecidos no pós-guerra? E diante de um quadro de esgarçamento do pacto democrático, qual o lugar do ensino de História nesse contexto? A leitura da BNCC promovida aqui se orienta por essas indagações.

Ao trazermos à tona os sujeitos da aprendizagem e as concepções de democracia propostas no texto da BNCC do Ensino Médio para área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, propomos não apenas um exame de ausências e presenças conceituais no documento, mas uma reflexão sobre os sentidos do democrático possíveis de serem construídos na escola nestes tempos de crise. Estamos falando de sujeitos da aprendizagem, professores/as e estudantes, implicados nos dilemas de suas subjetividades em formação, no estabelecimento de pacto democrático, lido e apreendido à luz de sua historicidade, na perspectiva de potencializar a agência no tempo presente e na expectativa do desejo de mudança.

REFERÊNCIAS

  • ABREU, Marcelo S. de; RANGEL, Marcelo de M. “Memória, cultura histórica e ensino de história no mundo contemporâneo.” História e Cultura, v. 4, p. 7-24, 2015. Disponível em: https://ojs.franca.unesp.br/index.php/historiaecultura/article/view/1625 Acesso em 8 out 2022.
    » https://ojs.franca.unesp.br/index.php/historiaecultura/article/view/1625
  • ALBA, Alicia de e PETERS, Michael A. (Coord). Sujetos em proceso: diversidad, movilidad y políticas de subjetividad em siglo XXI. México: Universidad Nacional Autónoma de México; IISUE Educación, 2017.
  • ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
  • BEVERNAGE, Berber. History, memory, and state-sponsored violence. Time and justice. New York: Routledge, 2012.
  • BITTENCOURT, Circe. “Reflexões sobre o ensino de História” Estudos avançados, 32 (93), p. 127-149, 2018. Disponível em https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/152562 Acesso em 8 out 2022.
    » https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/152562
  • BRANCO, Alessandra Batista de Godoi, BRANCO, Emerson Pereira, IWASSE, Lilian Fávaro Algrâncio, NAGASHIMA, Lucila Akiko. Urgência da reforma do Ensino Médio e emergência da BNCC. Revista Contemporânea de Educação. Rio de Janeiro, v. 14, n. 29, p. 345-363, 2019. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/view/22187 Acesso em: 8 de out. 2022.
    » https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/view/22187
  • BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília (DF): MEC, SEB, DICEI, 2013.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília (DF): MEC, 2018.
  • BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Tradução Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
  • BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Notas para uma teoria performativa de assembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
  • CAVARERO, Adriana. Vozes plurais. Filosofia da expressão vocal. Tradução Flavio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
  • FERRETI, Celso João e SILVA, Monica Ribeiro da. Reforma do Ensino Médio no Contexto da Medida Provisória N. 746/2016: Estado, Currículo e Disputas por Hegemonia. Educação e Sociedade. Campinas, v. 38, n. 139, p. 385-404, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/LkC9k3GXWjMW37FTtfSsKTq/?format=pdf⟨=pt Acesso em: 8 out. 2022.
    » https://www.scielo.br/j/es/a/LkC9k3GXWjMW37FTtfSsKTq/?format=pdf⟨=pt
  • GABRIEL, Carmen Teresa. “A aposta biográfica na articulação entre teoria e didática da história”. In GONÇALVES, Marcia. Teorizar, aprender e ensinar história, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2020, p. 148-167.
  • KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. Episódios de racismo quotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
  • KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Estudos sobre história. Tradução Marcus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora da PUC-Rio, 2014.
  • KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patricia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora da PUC-Rio, 2006.
  • LAVILLE , Christian. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 19, nº 38, pp. 125-138. 1999. Disponível em https://www.scielo.br/j/rbh/a/jKD6TyyYNJXW7JMPnyxgBps/?lang=pt&format=pdf Acesso em 8 out 2022.
    » https://www.scielo.br/j/rbh/a/jKD6TyyYNJXW7JMPnyxgBps/?lang=pt&format=pdf
  • LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
  • LOPES, Alice Casimiro. Itinerários formativos na BNCC do Ensino Médio: identificações docentes e projetos de vida juvenis. Revista Retratos da Escola. Brasília, v. 13, n. 25, p. 59-75, 2019. Disponível em: https://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/963 Acesso em: 8 out. 2022
    » https://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/963
  • MAGALHAES, Marcelo. “Apontamentos para pensar o ensino de História hoje: reformas curriculares, Ensino Médio e formação do professor” Tempo 11 (21), Jun 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tem/a/YYr8PNC7mycyh6v9rQnhSxr/abstract/?lang=pt Acesso em 8 out. 2022.
    » https://www.scielo.br/j/tem/a/YYr8PNC7mycyh6v9rQnhSxr/abstract/?lang=pt
  • MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
  • MONTEIRO, Ana Maria. “Currículo e docência. Uma trajetória de pesquisa em ensino de história”. In GONÇALVES, Marcia. Teorizar, aprender e ensinar história, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2020, 2020, p. 186-213.
  • PALTI, Elias. Giro lingüístico y historia intelectual. Buenos Aires: Universidade de Quilmes, 1998.
  • PASCUAL, Jesus Garcia. Sujeitos da aprendizagem e tramas do ensino na contemporaneidade. Revista de Psicologia. Fortaleza, v. 4, n. 1, p. 52-62, 2013. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/790/0 Acesso em: 1 out. 2022.
    » http://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/790/0
  • PENNA, Fernando de Araújo. “Programa Escola Sem Partido: uma ameaça à educação emancipadora”. In GABRIEL, Carmen Teresa; MONTEIRO, Ana Maria e MARTINS, Marcus Leonardo Bonfim. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016, p. 43-58.
  • RANGEL, Marcelo de Mello. “A urgência do ético: o giro ético-político na Teoria da História e na História da Historiografia”. In Ponta de Lança, São Cristóvão, v. 13, n. 25, jul-dez 2019, p. 27-46.
  • RANGEL, Marcelo de M.; DE ARAUJO, Valdei L. Apresentação - Teoria e história da historiografia: do giro linguístico ao giro ético-político. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 8, n. 17, 2015. Disponível em https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/917 Acesso em 7 out 2022.
    » https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/917
  • REVEL, Jacques. “Recursos narrativos e conhecimento histórico”. In História e historiografia: exercícios críticos. Tradução de Carmen Lucia Druciak. Curitiba: Editora da UFPR, 2010, p. 205-233.
  • RICOEUR, Paul. “A vida uma narrativa em busca de narrador”. In Escritos e conferências em torno da psicanálise. Tradução Edson Bini. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 197-211.
  • ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010.
  • RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo, Todavia, 2018.
  • SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Cia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
  • SILVA, Monica Ribeiro da. Currículo, ensino médio e BNCC. Um cenário de disputas. Revista Retratos da Escola. Brasília, v. 9, n. 17, p. 367-379, 2015. Disponível em: https://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/586/660 Acesso em: 1 out. 2022.
    » https://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/586/660
  • SILVA, Monica Ribeiro da. A BNCC da reforma do ensino médio: o resgate de um empoeirado discurso. Educação em Revista. Belo Horizonte, v. 34, p. 1-15, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/V3cqZ8tBtT3Jvts7JdhxxZk/abstract/?lang=pt Acesso em: 8 out. 2022.
    » https://www.scielo.br/j/edur/a/V3cqZ8tBtT3Jvts7JdhxxZk/abstract/?lang=pt
  • SILVA, Monica Ribeiro da; ARAÚJO, Ronaldo Marcos de Lima. Educação na Contramão da Democracia -A Reforma do Ensino Médio no Brasil. Trabalho Necessário. Niterói, v. 19, n. 39, p. 6-14, 2021. Apresentação de dossiê temático. Disponível em: https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/issue/view/2497/569 Acesso em: 1 out. 2022.
    » https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/issue/view/2497/569
  • 1
    Esse artigo é fruto de investigações financiadas pelo CNPQ e pela FAPERJ.
  • 2
    Importante situar diferenças quanto à natureza e as especificidades das orientações e prescrições curriculares implementadas pelo governo federal a partir da promulgação da LDB, em 1996. A despeito do nome, os Parâmetros Curriculares efetivaram prescrições no sentido de estabelecer conteúdos e objetivos para a aprendizagem nas diversas etapas e modalidades da Educação Básica. Já as Diretrizes postularam concepções e orientações, detalhadamente construídas, de modo a problematizar as noções de currículo, associando-as à construção de prescrições curriculares, entre elas a base nacional. No caso da elaboração das Diretrizes, deve-se frisar o contexto político, sob os mandatos presidenciais de Luís Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, entre 2003 e 2014, pautados, no âmbito do Ministério da Educação, pela incorporação de demandas da sociedade civil, via consultas públicas, e pelo diálogo com diversos segmentos afeitos ao debate acerca da Educação Básica, entre associações profissionais, secretarias municipais e estaduais, professores/as da Educação Básica e das Universidades. Sobre tais políticas curriculares posteriores à LDB, ver, especialmente: SILVA, 2015.
  • 3
    Há já uma produção bibliográfica expressiva, em processo constante de expansão, acerca das diversas versões da BNCC e dos impactos do Novo Ensino Médio (NEM), cuja sigla abre para a crítica das muitas racionalizações/simplificações então prescritas. Entre tais críticas, dialogamos mais diretamente com: FERRETI, SILVA, 2017; SILVA, 2018; LOPES, 2019; BRANCO, BRANCO, IWASSE, NAGASHIMA, 2019; ARAÚJO, SILVA, 2021 (Dossiê organizado). Nos limites de nossas reflexões neste artigo não caberia realizar um inventário mais exaustivo dessa rica produção bibliográfica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2022
  • Aceito
    21 Out 2022
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: educar@ufpr.br