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Certificação de Jovens e Adultos, experiência e conhecimento em Ciências: notas para os campos do Currículo e da Avaliação1 1 Esta pesquisa contou com recursos da Universidade de Brasília e do Programa de Apoio a Docente Recém-Doutor Antônio Luís Vianna 2020 - Universidade Federal do Rio de Janeiro.

RESUMO

A verificação e posterior certificação de conhecimentos elaborados por sujeitos jovens e adultos é papel historicamente desempenhado por exames supletivos e, desde o início dos anos 2000, por meio do Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos - o Encceja. Apresentamos aqui uma reflexão acerca da forma como os conhecimentos relacionados à disciplina escolar Ciências são mobilizados nesse exame. Nossa preocupação se remete à relação entre conhecimento e experiência e ao papel que a linguagem assume na expressão de tais conhecimentos. Interessa aqui realizar um exercício, considerando o contexto de circulação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de visibilizar a forma pela qual os discursos que compõem tais documentos permitem-nos questionar o lugar da especificidade dos sujeitos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) na produção daquilo que conta como conhecimento.

Palavras-chave:
Educação de Jovens e Adultos; Avaliação; Currículo

ABSTRACT

The verification and subsequent certification of knowledge developed by youths and adults has historically been done through supplementary examinations and, since the early 2000s, through the National Examination for the Certification of Youth and Adult Skills (Encceja). We present here a reflection on how knowledge related to the school subject of Science is addressed in this examination. Our concern is over the relationship between knowledge and experience and the role that language plays in the expression of this knowledge. Our interest lies in conducting an exercise, considering the context of the circulation of the National Common Curricular Base (BNCC) to visualize how the discourses that comprise these documents allow us to question the place of the specific characteristics of the subjects of Youth and Adult Education (YAE) in the production of what counts as knowledge.

Keywords:
Youth and Adult Education; Assessment; Curriculum

A certificação dos saberes construídos ao longo da vida na Educação de Jovens e Adultos

O período de redemocratização no Brasil foi marcado por uma série de acontecimentos que reverberaram nas décadas seguintes, sobretudo na década de 1990. Nesse período estávamos saindo de um intervalo de mais de 20 anos de supressão das liberdades políticas, consequência de um regime ditatorial, com impacto nos mais diversos campos da vida social, entre os quais a educação. A luta por direitos sociais tem como um dos marcos principais a promulgação da Constituição Federal de 1998, acontecimento este que se destaca como uma das principais conquistas do período de abertura democrática. O texto constitucional definiu, entre outros, a educação como um direito universal de todos os cidadãos, devendo o Estado ser o responsável por sua oferta. Dentre os dispositivos relacionados à educação, figura também a competência da União no que diz respeito à definição das diretrizes e bases da educação nacional, estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) - Lei nº. 9.394/1996. No que tange à educação de pessoas jovens e adultas, embora, desde a LDB de 1971, já se fizesse presente a menção a cursos e exames supletivos, é a partir da LDB de 1996 que se pode notar a emergência em textos legislativos do termo Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Ainda que isso não signifique a plena efetivação do direito à educação para os sujeitos jovens e adultos, que, por motivos diversos, não puderam realizar seus estudos na educação básica em idade regular ou que dela tiveram que se afastar, a emergência da EJA no texto da LDB de 1996 representa o reconhecimento pelo Estado de que há uma parcela significativa da população ainda marginalizada em relação a esse direito que é a educação. Nessa irrupção da EJA, sua própria concepção como uma modalidade específica da educação constitui-se um reconhecimento de que é necessário o desenvolvimento de uma educação que respeite a especificidade desses sujeitos, o que se refletiria não apenas em uma seleção de conhecimentos diferenciada, como na escolha de estratégias metodológicas apropriadas a esse público. Assim, ao assegurar “oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames” (BRASIL, 1996, Art. 37, § 1º), a LDB reconhece que esses sujeitos possuem percursos de vida distintos daqueles dos sujeitos da educação regular, e sinaliza, portanto, que são necessários não apenas planejamentos pedagógicos que considerem tal especificidade, mas também a seleção e organização de mecanismos de avaliação capazes de apreender aqueles conhecimentos que foram construídos ao longo de suas vidas.

No que diz respeito às avaliações externas para essa modalidade da educação, representadas pelo que, até então, conhecíamos como exames supletivos, nos parece produtivo dar foco à forma pela qual os conhecimentos vêm sendo representados. Nessa perspectiva, diferente de conceber que haveria uma transposição dos conhecimentos dos programas curriculares para as avaliações, entende-se que tais conhecimentos do currículo da EJA deveriam ser eles próprios concebidos tendo em vista a relação que estabelecem com as histórias de vida dos sujeitos dessa modalidade, afinal, “os conhecimentos e habilidades adquiridos pelos educandos por meios informais” deverão ser aferidos e reconhecidos mediante os exames (BRASIL, 1996, Art. 38, § 2º). Isso significa dizer que, ainda que o conhecimento a ser avaliado (SANTOS, 2017SANTOS, André Vitor Fernandes dos. Regularidades discursivas sobre mudança curricular e a produção de subjetividades no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPGE/UFRJ. 2017.) estabeleça fortes relações com o conhecimento disciplinarizado (GABRIEL & FERREIRA, 2012GABRIEL, Carmen Teresa; FERREIRA, Marcia Serra. Disciplina escolar e conhecimento escolar: conceitos sob rasura no debate curricular contemporâneo. In: LIBÂNEO, José Carlos; ALVES, Nilda (Org.) Temas de pedagogia: diálogos entre didática e currículo. São Paulo: Cortez, p. 227-241. 2012.), ele se constitui algo singular, um artefato sui generis, que deveria emergir dessa relação que se estabelece com as especificidades desse público, atento àquilo que foi desenvolvido em termos de conhecimento ao longo de suas histórias de vida. De igual modo, considera-se que tais conhecimentos também se submetem à lógica dos instrumentos de avaliação, atendendo a especificidades diversas que vão desde o formato das questões ao método de cálculo do desempenho, aspectos que acabam por contribuir para a regulação daquilo que conta como conhecimento.

No Brasil, até o início dos anos 2000, os exames supletivos desempenharam papel central no que diz respeito aos processos de certificação de jovens e adultos. Tais exames eram ofertados principalmente pelas secretarias de estado de educação e buscavam aferir os conhecimentos desenvolvidos ao longo de suas histórias de vida que possuíssem equivalência com aqueles que vêm historicamente produzindo os currículos dos níveis fundamental e médio na educação básica. Criado pelo governo federal em 2002, o Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos - Encceja (BRASIL, 2002) passou a se constituir um “instrumento de avaliação para aferição de competências e habilidades de jovens e adultos em níveis do Ensino Fundamental e Médio” (BRASIL. MEC, 2002). Dentre seus objetivos, consta o ideal de se “estruturar uma avaliação direcionada a jovens e adultos que sirva às Secretarias da Educação para que procedam à aferição ao reconhecimento de conhecimentos e habilidades dos participantes”, passando a ser uma alternativa aos exames supletivos desenvolvidos e aplicados pelas Secretaria de Estado de Educação. Cabe apontar que autores como Catelli Jr., Gisi e Serrão (2013) nos ajudam a pensar que o processo de implementação dessa política educacional ocorreu em um cenário de disputas, onde permaneceram em jogo os múltiplos entendimentos acerca dos caminhos da Educação de Jovens e Adultos no país, e os sentidos, funções e alcance de um exame de certificação de escolaridade nesta modalidade específica. Para os autores, é importante compreender que o Encceja é produzido em um movimento no qual circulam discursos que envolvem a qualidade do processo educativo, assim a “construção da proposta e das justificativas para essa política apoiava-se na sua função como parte dos esforços de avaliação para melhoria da educação básica” (CATELLI JR., GISI & SERRÃO, 2013CATELLI JR, Roberto; GISI, Bruna. SERRÃO, Luís Felipe Soares. Encceja: scenario of disputes in the education for youth and adults Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (online), Brasília, v. 94, n. 238, p. 721-744, set./dez. 2013 Disponível em: http://rbep.inep.gov.br/ojs3/index.php/rbep/issue/view/285/23 Acesso em: 28 out. 2022.
http://rbep.inep.gov.br/ojs3/index.php/r...
, p.740).

De forma inequívoca, tal política pode ser identificada como parte de um movimento de constituição de um “sistema” nacional de avaliação da educação, já que se nota a ocorrência de enunciados que colaboram para constituir o Encceja como uma prática discursiva também em outras políticas produzidas no mesmo período (SANTOS, 2017SANTOS, André Vitor Fernandes dos. Regularidades discursivas sobre mudança curricular e a produção de subjetividades no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPGE/UFRJ. 2017.). Afinal, é também na década de 1990, na esteira da publicação da LDB (BRASIL, 1996), que se inicia um processo de reforma curricular que culmina na publicação e veiculação de um vasto conjunto de documentos que visam orientar os currículos das instituições da educação básica. O documento de maior expressão são os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN (BRASIL, 1997), que se tornaram uma referência para a produção dos currículos pelos estados e municípios. O que nos parece importante sublinhar é a emergência e circulação de enunciados, tais como as competências e habilidades, as noções de contextualização e problematização, bem como o foco em perspectivas interdisciplinares para a abordagem do conhecimento escolar. Tais enunciados, não por coincidência, emergem também no âmbito das práticas discursivas que fundamentam as políticas de avaliação produzidas nessa mesma época, tais como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), criado em 1995, e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), criado em 1998. Com isso, não se quer dizer que seria o campo do Currículo ou da Avaliação o lócus de origem desses enunciados em questão, mas que é preciso pensar a emergência nessas distintas práticas discursivas como reflexo de seu pertencimento a um sistema de raciocínio próprio que à época vinha informando as políticas formuladas nacional e internacionalmente.

Tal sistema de raciocínio constitui uma maneira específica de concebermos a relação entre Currículo e Avaliação e, em decorrência disso, a forma pela qual concebemos a noção de conhecimento que subjaz a esses dois campos. Para pensarmos nessa forma particular de conceber o conhecimento, nos aproximamos da noção de alquimia das disciplinas escolares (POPKEWITZ, 2001POPKEWITZ, Thomas. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.) reconhecendo nela uma metáfora potente para compreender como os conhecimentos escolares, no nosso caso, aqueles relativos especificamente à disciplina escolar Ciências, são produzidos e representados nos instrumentos que compõem as avaliações como o Encceja. Para Thomas Popkewitz (2001POPKEWITZ, Thomas. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.), a alquimia das disciplinas escolares é um processo por meio do qual os saberes de referência, os campos disciplinares de determinadas áreas do conhecimento, são transformados em disciplinas tipicamente escolares. Nessa perspectiva, a alquimia se constitui em uma mescla de práticas regulatórias e de instrução que envolve três níveis de procedimentos: o primeiro nível estaria relacionado aos conteúdos e ao processo de fragmentação que valoriza determinadas informações; o segundo, à ênfase em determinados recursos textuais; e, por fim, o terceiro nível envolveria a ligação do conhecimento com as subjetividades por meio dos testes, provas e de todo o processo que está relacionado à preparação para eles (POPKEWITZ, 2001).

Nesse processo, contingências e complexidades da vida cotidiana são reconsideradas como estruturas lógicas, não temporais, e como bases a partir das quais a aprendizagem ocorre, em um movimento em que tais conhecimentos ganham um status de estabilidade. Ao transformar o conhecimento científico em categorias conceituais que adaptam o conhecimento pedagógico às questões escolares, são produzidos efeitos de poder que “marca[m] os limites do conhecimento aprovado e, ao mesmo tempo, exclu[em] qualquer conhecimento que não tenha obtido sanção oficial” (POPKEWITZ, 2001POPKEWITZ, Thomas. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001., p. 114). Em produção recente, Marsico e Ferreira (2020MARSICO, Juliana; FERREIRA, Marcia Serra. História do Currículo do Presente: investigando processos alquímicos no ensino de Ciências para a Educação de Jovens e Adultos no Brasil. ETD - Educação Temática Digital. Campinas, v.22, n.4, p. 837-855. out./dez. 2020. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/8660143. Acesso em: 28 out. 2022.
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) destacam como a experiência de vida dos estudantes jovens e adultos, em especial aquelas advindas do mundo do trabalho, atravessam a produção curricular para a modalidade, em um movimento que focaliza construção de uma ação cidadã e autônoma dos sujeitos na sociedade, produzindo ferramentas de transformação da própria condição social. Assim, mobilizar a noção de alquimia das disciplinas escolares para investigar sobre os conhecimentos avaliados “é colocar em evidência a forma pela qual, por meio das avaliações externas, projeta-se não apenas um padrão de desempenho a ser demonstrado por aqueles que dessas políticas tomam parte, mas também um padrão do que se deve ou deveriam ser os sujeitos da EJA e daquilo que deveria ser ensinado/aprendido em processos formais de escolarização” (SANTOS, 2021SANTOS, André Vitor Fernandes dos. Ciências na certificação de jovens e adultos: o que conta como conhecimento? In: VIII Encontro Nacional de Ensino de Biologia, Fortaleza. VIII Encontro Nacional de Ensino de Biologia - ENEBIO, VIII Encontro Regional Nordeste de Ensino de Biologia - EREBIO-NE e II Simpósio Cearense de Ensino de Biologia - SCEB, 2021. Disponível em: https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/74720. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 3572-3573).

Aqui, investigamos o conhecimento em um contexto de virada cultural e linguística, assumindo que a realidade não é algo dado, que possa ser representada pela linguagem, mas algo que se situa em “uma posição privilegiada na construção e circulação do significado” que damos às coisas no mundo (HALL, 1997HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, v. 22, nº 2, p. 15-46, jul./dez. 1997. Disponível em: http://www.gpef.fe.usp.br/teses/agenda_2011_02.pdf. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71361/40514. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 28, grifo original). Longe de significar abrir mão da materialidade das coisas do mundo, assumir tal postura é reconhecer que é na relação entre linguagem e materialidade que construímos o que conhecemos como (e nomeamos de) realidade (HALL, 1997). Nesse contexto, nos interessa pensar a centralidade da linguagem no acesso ao conhecimento como experiência, ou ainda, em como a experiência de vida dos sujeitos jovens e adultos pode ser percebida como conhecimento - conhecimento este a ser avaliado.

Ao mobilizarmos a noção de experiência, em diálogo com Jorge Larrosa (2011LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu. (org.) O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 35-86, 2011.), assumimos os sujeitos como território, como superfícies de sensibilidade em que algo acontece e os transforma, deixando marcas, produzindo conhecimento. É a partir desse conhecimento produzido pela experiência que nos relacionamos com - e produzimos na relação com a linguagem - o que nomeamos realidade. Afinal, a experiência, por sua natureza de irrupção, novidade e imprevisibilidade, nos posiciona em um lugar outro, que exige novos olhares e não nos permite continuar da mesma forma que antes, transformando nossa forma de pensar e nos relacionar com o mundo (BÁRCENA, 2002BÁRCENA, Fernando. Educación y experiencia en el aprendizaje de lo nuevo. Revista Española de Pedagogía, año LX, n° 223, p.501-520, septiembre-diciembre, 2002. Disponível em: https://revistadepedagogia.org/lx/no-223/educacion-y-experiencia-en-el-aprendizaje-de-lo-nuevo/101400009852/. Acesso em: 28 out. 2022.
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). Tal processo de produção do conhecimento é assim entendido como uma criação, uma experiência que produz uma resposta única e singular ao acontecimento de sua própria trajetória de vida.

Na relação com o conhecimento disciplinarizado (GABRIEL & FERREIRA, 2012GABRIEL, Carmen Teresa; FERREIRA, Marcia Serra. Disciplina escolar e conhecimento escolar: conceitos sob rasura no debate curricular contemporâneo. In: LIBÂNEO, José Carlos; ALVES, Nilda (Org.) Temas de pedagogia: diálogos entre didática e currículo. São Paulo: Cortez, p. 227-241. 2012.), percebemos uma ambiguidade que simultaneamente caracteriza tais conhecimentos como potentes para a escolarização de adultos, ao mesmo tempo em que representam a ausência da escolarização em idade considerada adequada nos documentos legais sobre a educação básica. Afinal, na EJA, as experiências que esses estudantes adultos carregam consigo dizem respeito às relações produzidas no âmbito do mundo adulto e que, tradicionalmente, são projetadas como um lugar futuro na formação de alunos do ensino regular (MARSICO, 2018MARSICO, Juliana. Formação de professores e a constituição de subjetividades: Uma abordagem discursiva do currículo na Educação de Jovens e Adultos. [Tese de Doutorado]. Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ. 2018. 201p.). O exercício aqui é o de refletir sobre como o conhecimento a ser avaliado na certificação de jovens e adultos é concebido como tal.

Tal empreendimento analítico é feito a partir tanto das nossas atuações como docentes que se relacionam com a EJA, como dos nossos interesses em analisar as políticas como fontes para a escrita de uma história que permita compreender a formação dos artefatos curriculares. É também a partir de nossa experiência profissional e acadêmica na área do ensino e da formação de professores nas Ciências Biológicas que optamos por dar foco aos conhecimentos de Ciências neste texto, além de reconhecer que, frequentemente, as áreas científicas têm sido alvo de políticas de Currículo e Avaliação. Este estudo foi realizado desde uma perspectiva que o Grupo de Estudos em História do Currículo (NEC/UFRJ) concebe como sendo uma abordagem discursiva para a História do Currículo (FERREIRA & SANTOS, 2017SANTOS, André Vitor Fernandes dos. Regularidades discursivas sobre mudança curricular e a produção de subjetividades no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPGE/UFRJ. 2017.), uma perspectiva que se identifica com a História do Presente, valorizando a análise das mudanças epistemológicas sociais que produzem os princípios que governam aquilo que os sujeitos da educação são (ou deveriam ser), ao mesmo tempo que também informam quem são os sujeitos que estão fora daquilo que foi concebido como a regra ou a normalidade (POPKEWITZ, 2008POPKEWITZ, Thomas. Cosmopolitanism and the age of school reform: Science, Education, and Making Society by Making the Child. Routledge. 2008.).

Assim, o recurso a fontes tais como os documentos que fundamentam o Encceja produzidos em momentos históricos distintos ou a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL, 2018) não pretende produzir uma história factual ou arquivística, mas sim produzir um registro que explore “as distinções, diferenciações e divisões por meio das quais os objetos da escolarização são produzidos, ordenados e classificados” (POPKEWITZ, 2008POPKEWITZ, Thomas. Cosmopolitanism and the age of school reform: Science, Education, and Making Society by Making the Child. Routledge. 2008., p. 7). Sobre esses aspectos passamos a falar na seção a seguir, em uma perspectiva que entende as fontes documentais como superfícies que nos permitem apreender não apenas a irrupção de enunciados específicos sobre o conhecimento a ser avaliado (SANTOS, 2017SANTOS, André Vitor Fernandes dos. Regularidades discursivas sobre mudança curricular e a produção de subjetividades no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPGE/UFRJ. 2017.) na Educação de Jovens e Adultos, mas também de perseguí-los na articulação discursiva que estabelecem com outros enunciados, ainda que nem sempre originados no contexto da avaliação ou da EJA, mas que passam a constituir isso que, em última análise, conta como conhecimento.

Conhecimento de Ciências no Encceja e o conhecimento dos jovens e adultos: em que estamos de acordo?

Como destacamos anteriormente, ainda que a criação do Encceja seja um acontecimento do início dos anos 2000, isso representa um movimento mais amplo associado à ideia de reforma que marcou vários campos, especialmente a educação. Cabe destacar, também, que esse movimento reformador está assentado em uma racionalidade da administração gerencial, que se desloca de uma perspectiva que privilegia o desenvolvimento, controle, avaliação e aperfeiçoamento dos resultados, para outra em que os resultados assumem certa centralidade. Nessa perspectiva, investe-se na avaliação deixando-se em segundo plano os investimentos diretos em serviços educacionais, com ênfase especial para aqueles direcionados ao público da EJA, historicamente insuficientes (CATELLI JR.; GISI & SERRAO, 2013CATELLI JR, Roberto; GISI, Bruna. SERRÃO, Luís Felipe Soares. Encceja: scenario of disputes in the education for youth and adults Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (online), Brasília, v. 94, n. 238, p. 721-744, set./dez. 2013 Disponível em: http://rbep.inep.gov.br/ojs3/index.php/rbep/issue/view/285/23 Acesso em: 28 out. 2022.
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). É nesse cenário que passam a circular noções, tais como a de habilidades e competências, em um movimento que reatualiza a centralidade que os objetivos educacionais vêm assumindo historicamente no pensamento pedagógico desde pelo menos os anos 1960 e 1970. Essa associação contemporânea entre perspectivas que ora se aproximam de uma racionalidade tyleriana, ora enfatizam a centralidade de um planejamento, tal qual proposto por Benjamin Bloom e outros autores que operam em uma lógica que concebe os comportamentos como hierarquicamente organizados, vem pavimentando a forma como concebemos a relação entre currículo e avaliação.

Todo esse conjunto de discursos cria as condições de possibilidade para que se iniciasse a circulação de uma série de enunciados relacionados à avaliação e ao currículo que passam a regular o que conta como conhecimento a ser avaliado. Mas não é só isso, tais enunciados que funcionam como regras discursivas, em última análise, acabam por regular também aquilo que deveria ser ensinado pelos professores e professoras, ou seja, também o que deveria ser aprendido pelos estudantes ao longo de suas trajetórias no âmbito da educação básica. Nesse sentido, currículo e avaliação vêm tendo seus limites postos sob rasura pelas políticas educacionais à medida que vai se produzindo uma relação entre eles em que um acaba por se corporificar no outro, em um movimento incessante de significação entre os dois elementos desse par, com efeitos para as ações de ensino e a consequente necessidade de avaliá-las. Neste sentido, nos parece importante destacar a forma como as matrizes de habilidades e competências dessas ações de avaliação operam, projetando determinadas formas de ser, de se comportar. Tais projeções se configuram como performances a serem demonstradas pelos estudantes e, nessa perspectiva, “podem ser compreendidas como expectativas de comportamento e de realizações, projeções de subjetividades a serem representadas, declarações sobre os tipos de sujeitos que são esperados por essa e nessa sociedade” (SANTOS, 2021SANTOS, André Vitor Fernandes dos. Ciências na certificação de jovens e adultos: o que conta como conhecimento? In: VIII Encontro Nacional de Ensino de Biologia, Fortaleza. VIII Encontro Nacional de Ensino de Biologia - ENEBIO, VIII Encontro Regional Nordeste de Ensino de Biologia - EREBIO-NE e II Simpósio Cearense de Ensino de Biologia - SCEB, 2021. Disponível em: https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/74720. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 3574).

Embora o Encceja não tenha sido desenhado para atender especificamente aqueles jovens e adultos em processo de escolarização, compreendemos que, ao buscar certificar conhecimentos que teriam sido construídos a partir de experiências não escolares em uma perspectiva que toma como referente o conhecimento escolar, de alguma forma, uma projeção de subjetividade é realizada para os participantes que buscam essa política de avaliação. É o que buscamos trazer no exemplo a seguir. A Portaria nº. 2.270, que institui o Encceja (BRASIL, 2002, p. 2), por exemplo, afirma que o exame:

avaliará competências e habilidades desenvolvidas por jovens e adultos no processo escolar ou nos processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais, tendo por base Matriz de Competências e Habilidades especialmente construída para este Exame.

O que destacamos aqui é que, no exame, é portanto não apenas avaliada a projeção das aprendizagens que deveriam ter sido realizadas ao longo das trajetórias de vida, esperando-se também que a demonstração delas se realize levando em conta aquilo que viria a se configurar em uma matriz de competências e habilidades que informaria a construção dos instrumentos de avaliação a serem respondidos pelos participantes desse exame.

No que diz respeito especificamente aos conhecimentos de Ciências, ou seja, àquele conjunto de conhecimentos que deveria ser desenvolvido junto aos alunos em idade regular e matriculados no ensino fundamental, e que são demonstrados pelos participantes jovens e adultos por meio das questões de prova elaboradas tendo como base Matriz de Competências e Habilidades2 2 Matriz de Competências e Habilidades do Encceja - Ciências - Ensino Fundamental. Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_basica/encceja/matriz_competencia/Mat_Cien_Nat_EF.pdf. Acesso em: 20 set. 2021. , destacamos a forma como eles se configuram, nesse documento, imiscuídos aos enunciados próprios das mencionadas reformas ocorridas na década de 1990. Mais do que meros conhecimentos disciplinares, eles se apresentam associados a algumas noções específicas que se voltam particularmente para o fortalecimento dos conhecimentos selecionados como importantes no ensino da disciplina escolar Ciências, para processos instríncecos à escolarização e também para aspectos relacionados à vida do jovem e adulto, sujeito dessa avaliação.

Primeiramente destacamos a permanência de sentidos voltados ao desenvolvimento de competências e habilidades que são relacionadas com os “modos de funcionamento” da escola. No ambiente escolar somos inseridos em um sistema de raciocínio que organiza e regula as aprendizagens, nos ensinando a “aprender a conhecer” e nos subjetivando como alunos e professores. Na escola somos convidados a:

  • I - Dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica.

  • II - Construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas.

  • III - Selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema.

  • IV - Relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas para construir argumentação consistente.

  • V - Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos para elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural.3 3 Tomamos por fonte para a análise dos textos das Competências e Habilidades apresentadas ao longo do texto a Matriz de Competências e Habilidades do Encceja - Ciências - Ensino Fundamental, conforme explicitado na nota anterior. Esse é o documento disponibilizado na página do Instituto Nacional Anísio Teixeira que serve como referência de estudos para aqueles que participam do exame. Cabe destacar, contudo, que a análise dos editais publicados a partir de 2008 traz como referência legal a Portaria INEP nº 147 de 04/09/2008, que regulamenta o art. 3º da Portaria Ministerial nº 3.415, de 21 de outubro de 2004, no que tange à fundamentação teórico-metodológica do Encceja. A Portaria INEP nº 147 de 2008 define matrizes consideravelmente mais extensas, nas quais cada uma conta com 45 habilidades. Não foram encontrados registros públicos que justifiquem a redução do número de habilidades, tampouco a razão para as alterações textuais entre uma versão e outra.

De modo semelhante, percebemos que discursivamente são valorizados aspectos que envolvem os processos de seleção, de organização e de transformação dos conhecimentos oriundos das Ciências Naturais. É comum, nessa área disciplinar, a hegemonização desses pressupostos na redação de competências tais como:

F1 - Compreender a ciência como atividade humana, histórica, associada a aspectos de ordem social, econômica, política e cultural.

[...]

F6 - Aplicar conhecimentos de ciência e tecnologia e procedimentos de investigação científica em diferentes contextos.

Assim, entendemos que os conhecimentos das Ciências Naturais compreendidos como aqueles advindos de uma metodologia específica que conferem legitimidade à produção científica são também reconhecidos como “necessários” ao jovem e adulto que deseja a certificação do ensino fundamental. A utilização de verbos como examinar, relacionar, diagnosticar, investigar, representar, comparar, estabelecer, comuns nas práticas científicas e nas atividades escolares em ciências, certamente testemunha a valorização das finalidades científicas e educacionais dessa área do conhecimento. O que refletimos aqui não sobre é a validade ou a importância de tais conhecimentos, mas o fato de a linguagem utilizada para acessá-los ser, por vezes, distante das linguagens utilizadas pelos jovens e adultos que participam do Encceja. Uma vez que distantes da cultura escolar e, portanto, da disciplina escolar ciências, esses são códigos que não perpassam seus cotidianos, sendo, possivelmente, de difícil articulação durante a avaliação.

Analisando as habilidades arroladas na Matriz de Competências e Habilidades, percebemos como alguns temas caros ao ensino de Ciências vão se articulando com esses sujeitos projetados pelas políticas. Ganham força, por exemplo, diálogos voltados à saúde do jovem e do adulto. Assim, saúde e o cuidado individual e coletivo parecem ser preocupações na/para a EJA. Enunciados voltados ao desenvolvimento de hábitos pessoais, à associação da saúde com o desenvolvimento humano, à prevenção de doenças infecciosas são destacados como urgentes demandas, e, por sua vez, “selecionam” sujeitos que estejam atentos a essas questões e/ou que possuam um arcabouço teórico, ou vivências cotidianas e práticas culturais que possibilitem identificá-las e compreendê-las. Para exemplificar, destacamos as habilidades abaixo:

H5 - Associar a solução de problemas da comunicação, transporte, saúde (como epidemias) ou outro, com o correspondente desenvolvimento científico e tecnológico.

H11 - Identificar variações em indicadores de saúde e de desenvolvimento humano, a partir de dados apresentados em gráficos, tabelas ou textos.

H16 - Associar problemas de saúde a sintomas, testes diagnósticos simples ou possíveis consequências da automedicação.

H17 - Relacionar saúde com hábitos alimentares, atividade física e uso de medicamentos e outras drogas, considerando diferentes momentos do ciclo de vida humano.

H18 - Analisar o funcionamento de métodos anticoncepcionais, reconhecendo a importância de alguns deles na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.

Uma outra análise possível é o reconhecimento de uma ideia de aplicação em determinadas situações, fortalecendo um sentido de aplicação de um saber, de um saber-fazer, que vão produzindo para esses conhecimentos das ciências naturais um certo caráter de utilidade, como observamos a seguir:

H3 - Identificar, em representações variadas, fontes e transformações de energia que ocorrem em processos naturais e tecnológicos.

H4 - Identificar processos e substâncias utilizados na produção e conservação dos alimentos, e noutros produtos de uso comum, avaliando riscos e benefícios neles envolvidos.

H6 - Reconhecer argumentos pró ou contra o uso de determinadas tecnologias para solução de necessidades humanas, relacionadas à saúde, moradia, transporte, agricultura etc.

Nas superfícies textuais aqui destacadas, parece claro o recurso a conhecimentos próprios da disciplina escolar Ciências, tais como energia, uso de substâncias e procedimentos para produção de alimentos e o impacto das tecnologias no cotidiano. Consideramos interessante destacar a produção dessa relação entre esses conhecimentos e os verbos relacionados às operações cognitivas a serem demonstradas, tais como ‘identificar’ e ‘reconhecer’. Nessa construção, a associação entre o conhecimento e aquele algo a se “fazer” em determinado contexto é geralmente materializada nas questões que compõem as provas que são aplicadas aos participantes. Destacamos também a forma como tais conhecimentos a serem avaliados parecem preservar a vinculação que possuem com uma perspectiva de conhecimento escolar ou, nos termos propostos por Gabriel e Ferreira (2012GABRIEL, Carmen Teresa; FERREIRA, Marcia Serra. Disciplina escolar e conhecimento escolar: conceitos sob rasura no debate curricular contemporâneo. In: LIBÂNEO, José Carlos; ALVES, Nilda (Org.) Temas de pedagogia: diálogos entre didática e currículo. São Paulo: Cortez, p. 227-241. 2012.), o conhecimento disciplinarizado, como é possível notar nos textos das habilidades em destaque a seguir:

H7 - Relacionar diferentes seres vivos aos ambientes que habitam, considerando características adaptativas.

H9 - Relacionar transferência de energia e ciclo de matéria a diferentes processos (alimentação, fotossíntese, respiração e decomposição).

H26 - Relacionar diferentes fenômenos cíclicos como dia e noite, estações do ano, climas, fases da lua, marés e eclipses aos movimentos da Terra e da Lua.

Ainda que tenhamos a compreensão de que os conhecimentos científicos circulam para além dos seus espaços de produção, ou seja, para além dos contextos dos saberes de referência, compreendemos que noções tais como as relativas a “características adaptativas”, “transferência de energia” ou “fenômenos cíclicos” além de serem altamente escolarizadas, constituem-se como formas de falar características de um universo relacionado à escolarização, portanto, muitas vezes distante dos contextos da maior parte dos jovens e adultos que participam do exame em questão. É neste contexto discursivo, no qual os conhecimentos das ciências naturais apresentam certo caráter de utilidade, que destaca-se também o entendimento que de que tais conhecimentos estejam relacionados com a vida doméstica do jovem e adulto, por vezes acessando a dimensão da experiência desses sujeitos ou projetando habilidades que contribuiriam para a melhoria da mesma, estabelecendo, assim, associação com relações cotidianas de consumo. Nesse sentido, destacam-se enunciados como:

H12 - Associar a qualidade de vida, em diferentes faixas etárias e em diferentes regiões, a fatores sociais e ambientais que contribuam para isso.

H20 - Interpretar informações contidas em rótulos, embalagens, bulas, receitas, manuais de instrumentos e equipamentos simples.

H21 - Avaliar produtos de uso cotidiano (limpeza, higiene, alimentos, medicamentos ou outros) de mesma finalidade, baseando-se em suas propriedades.

H24 - Diagnosticar situações do cotidiano em que ocorrem desperdícios de energia ou matéria, propondo formas de minimizá-las.

H28 - Relacionar diferentes recursos naturais - seres vivos, materiais ou energia - a bens de consumo utilizados no cotidiano.

Marsico (2018MARSICO, Juliana. Formação de professores e a constituição de subjetividades: Uma abordagem discursiva do currículo na Educação de Jovens e Adultos. [Tese de Doutorado]. Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ. 2018. 201p., p. 85) aponta o trabalho como uma categoria importante na produção curricular na Educação de Jovens e Adultos, “tanto em enunciados que caracterizam o estudante como trabalhador, diferentemente do aluno do ensino regular, como em enunciados que colocam essa categoria como eixo de organização curricular”. Percebemos que os documentos curriculares do Encceja não fogem a essa regularidade discursiva, sendo, inclusive, apontados os conhecimentos das ciências como promotores de melhorias ou articulações com o trabalho e a vida do trabalhador, tais como:

H13 - Relacionar a incidência de doenças ocupacionais, degenerativas e infectocontagiosas a condições que favorecem a sua ocorrência.

H14 - Selecionar alternativas de condições de trabalho e/ou normas de segurança em diferentes contextos, valorizando o conhecimento científico e o bem estar físico e mental de si próprio e daqueles com quem convive.

É importante salientar que os discursos que perpassam os conhecimentos em ciências naturais no Encceja também nos orientam ao entendimento do papel do jovem e adulto como pertencentes à coletividade. O sentido de coletivo é associado às noções de solidariedade, de conservação, desenvolvimento sustentável e atenção às situações cotidianas, conforme destacamos abaixo:

H19 - Selecionar propostas em prol da saúde física e mental dos indivíduos ou coletividade, em diferentes condições etárias, culturais ou sócio-ambientais.

H29 - Compreender o significado e a importância da água e de seu ciclo em sua relação com condições sócio-ambientais.

H30 - Analisar propostas de uso de materiais e recursos energéticos, tendo em vista o desenvolvimento sustentável, considerando características e disponibilidades regionais (de subsolo, vegetação, rios, ventos, oceanos etc.).

Os enunciados aqui analisados nos permitem verificar que, gradativamente, o Encceja vem produzindo sentidos se não sobre o que é a EJA, sobre o tipo de sujeito que deve ser o jovem e adulto que busca a certificação por meio desse exame. Em uma perspectiva onto-epistemológica (SANTOS, 2017SANTOS, André Vitor Fernandes dos. Regularidades discursivas sobre mudança curricular e a produção de subjetividades no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPGE/UFRJ. 2017.), assumimos que as noções de habilidades e competências, bem como outros princípios que encontram na reforma curricular da década de 1990 seu ponto de irrupção, passam a regular aquilo que é concebido como conhecimento e, portanto, a dizer, de alguma forma, quem somos ou quem deveríamos ser. Nesse movimento, os conhecimentos específicos da área de ciências naturais produzem significações que reforçam os entendimentos sobre este sujeito e o que se deseja que ele alcance.

Abrindo caminhos para questionar os currículos e as políticas de avaliação

A análise dos dados aqui apresentada nos permite evidenciar a maneira pela qual as políticas de avaliação vêm significando aquilo que conta como conhecimento a ser avaliado e, por consequência, como o conhecimento deve ser ensinado e aprendido nas instituições da educação básica. Tal regulação se expande para além das fronteiras dessas instituições à medida em se produz uma associação quase que inextricável entre as políticas de avaliação e as políticas de currículo, com impactos para as políticas de certificação e de acesso a cursos profissionalizantes e superiores, ou seja, atingindo e passando a regular mesmo os sujeitos que estão fora de processos de escolarização.

Essas reflexões permitem problematizar a produção curricular contemporânea, como é o caso da BNCC (BRASIL, 2018), que, à medida que seus textos parecem tomar como referência uma certa noção de estudantes que se constitui como norma, ou seja, a de indivíduos em idade considerada adequada à modalidade regular de oferta da educação básica. Ainda que esses documentos curriculares contemporâneos mencionem a variedade de modalidades da educação básica, abarcando, por exemplo, a EJA, a educação indígena e a educação quilombola, destacamos a forma pela qual o poder opera, com ênfase para a maneira como os enunciados acabam por regular o que conta como conhecimento, acentuado pelo fato de que, diferentemente dos PCN (1997), a BNCC (2018) constitui uma normatização obrigatória que resulta em que currículos devam ser produzidos a partir de suas orientações. Se o objetivo do Encceja é identificar e mensurar um determinado traço latente (ou um conjunto deles) que teria sido desenvolvido ao longo das trajetórias desses jovens e adultos que participam anualmente do exame em busca da certificação, o desenvolvimento dos instrumentos de avaliação deve levar em conta a dimensão da experiência, sem a qual o conhecimento não se constrói e tampouco pode ser acessado. Urge assim não apenas a reflexão sobre como as políticas de currículo contemporâneas serão significadas para esta modalidade da educação que é a EJA, mas é também urgente que as políticas de avaliação sejam repensadas de modo a se conectar mais fortemente com as características do seu público.

Nessa perspectiva, destacamos, a partir da análise dos textos que compõem a Matriz de Competências e Habilidades do Encceja, que as especificidades do público da EJA parecem não assumir centralidade na concepção daquilo que é tomado como conhecimento a ser avaliado, uma vez que são hegemonizados conhecimentos relacionados às áreas disciplinares e ao processo de escolarização, cabendo a sua abordagem quando da elaboração das questões que compõem dos instrumentos de avaliação. A ênfase no conhecimento, e entendemos aqui que essa tenha sido a opção dos formuladores da política em foco, acaba por secundarizar a dimensão contextual da experiência. Nesse sentido, o que buscamos apontar aqui é como os textos curriculares e os que sustentam as políticas de avaliação como o Encceja podem acabar por distanciar essas ações de determinados grupos sociais, dificultando o acesso a direitos garantidos, como é o caso da certificação almejada por indivíduos que construíram conhecimentos ao largo dos processos de escolarização.

Por fim, salientamos que o cumprimento integral do direito à educação e, no caso em tela, o reconhecimento dos saberes construídos por sujeitos jovens e adultos ao longo de suas histórias de vida devem ter por princípio o reconhecimento das características do público da EJA. Isso significa que os currículos devem ser pensados tendo como horizonte as experiências vivenciadas por esses sujeitos. Dizer isso significa também assumir que ainda que os conhecimentos sejam pensados em relação com aquilo que teria sido construído em processos formais de escolarização no âmbito das disciplinas escolares, como o caso de Ciências, eles precisam ser concebidos em uma perspectiva que não tome a escola como o único referente, mas a vida familiar, a convivência humana, o trabalho, os movimentos sociais e organizações da sociedade civil e as manifestações culturais de que tomam parte esses sujeitos. Longe de negar o papel da escola, essa perspectiva nos abre para a possibilidade de acolher as aprendizagens desses sujeitos em sua inteireza, para além das formas que nós professores e professoras da escola básica nos acostumamos a fazer.

REFERÊNCIAS

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  • SANTOS, André Vitor Fernandes dos. Ciências na certificação de jovens e adultos: o que conta como conhecimento? In: VIII Encontro Nacional de Ensino de Biologia, Fortaleza. VIII Encontro Nacional de Ensino de Biologia - ENEBIO, VIII Encontro Regional Nordeste de Ensino de Biologia - EREBIO-NE e II Simpósio Cearense de Ensino de Biologia - SCEB, 2021. Disponível em: https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/74720 Acesso em: 28 out. 2022.
    » https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/74720
  • 1
    Esta pesquisa contou com recursos da Universidade de Brasília e do Programa de Apoio a Docente Recém-Doutor Antônio Luís Vianna 2020 - Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • 2
    Matriz de Competências e Habilidades do Encceja - Ciências - Ensino Fundamental. Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_basica/encceja/matriz_competencia/Mat_Cien_Nat_EF.pdf. Acesso em: 20 set. 2021.
  • 3
    Tomamos por fonte para a análise dos textos das Competências e Habilidades apresentadas ao longo do texto a Matriz de Competências e Habilidades do Encceja - Ciências - Ensino Fundamental, conforme explicitado na nota anterior. Esse é o documento disponibilizado na página do Instituto Nacional Anísio Teixeira que serve como referência de estudos para aqueles que participam do exame. Cabe destacar, contudo, que a análise dos editais publicados a partir de 2008 traz como referência legal a Portaria INEP nº 147 de 04/09/2008, que regulamenta o art. 3º da Portaria Ministerial nº 3.415, de 21 de outubro de 2004, no que tange à fundamentação teórico-metodológica do Encceja. A Portaria INEP nº 147 de 2008 define matrizes consideravelmente mais extensas, nas quais cada uma conta com 45 habilidades. Não foram encontrados registros públicos que justifiquem a redução do número de habilidades, tampouco a razão para as alterações textuais entre uma versão e outra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2022
  • Aceito
    24 Out 2022
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