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Da responsabilidade ética do responder para que serve a escola1 1 Pesquisas realizadas com financiamento do CNPq e da FAPERJ.

RESUMO

Fomos instadas a essa discussão pela “perseguição” sofrida pela escola no momento de pandemia de Covid-19, perseguição esta à qual é nosso dever ético-político responder. Trata-se de um ensaio que pretende problematizar o servir da escola - que parece lhe conferir sentidos -, defendendo que tais sentidos só aparecem na relação com o outro que os constitui e que perturba, também, nossa própria subjetivação. A escola, como nome, só existe porque integra o todo vivido da experiência com o mundo e conosco e, portanto, não pode ser definida a priori ou por um servir. Na construção do texto fomos assombradas por conversas detonadas pela interpelação “para que serve a escola?”, vinda de professores e agentes administrativos da rede municipal de Educação da cidade de Niterói, Rio de Janeiro. Do ponto de vista teórico, dialogamos principalmente com Judith Butler, Janet Miller e Gert Biesta, para defender que uma teoria pedagógica responsável ou responsiva precisa fazer qualquer ideal de escola vir acompanhado de sua desconstrução.

Palavras-chave:
Teoria de currículo; Escola; Subjetivação; Responsabilidade ética

ABSTRACT

We were urged to this discussion by the “persecution” suffered by the school during the COVID-19 pandemic, a persecution to which it is our ethical-political duty to respond. This is an essay that intends to problematize the serving of the school - which seems to confer its meanings - to defend that such meanings only appear in the relationship with the other that defines them and that also distort our own subjectivation. The school, as a name, only exists because it integrates the whole lived experience with the world and with ourselves and, therefore, cannot be defined a priori or by a serving. In the construction of this text, we were haunted by conversations triggered by the interpellation “What purpose does school serve?” with teachers and administrative agents of the municipal education network in the city of Niterói, Rio de Janeiro, Brazil. From a theoretical point of view, we have a dialogue mainly with Judith Butler, Janet Miller and Gert Biesta to defend that a responsible or responsive pedagogical theory needs to make any ideal of school come accompanied by its deconstruction.

Keywords:
Curriculum Theory; School; Subjectification; Ethical responsibility

Introdução

Não importa que palavra utilizemos - porque não há, em certo sentido, palavras. Importa apenas que respondamos, que assumamos responsabilidade, que assumamos nossa responsabilidade.

(BIESTA, 2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 83)

Ao debater com Lévinas, Butler (2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.) argumenta que a ação de contar uma história surge sempre “como demanda sobre o perseguido, e seu dilema central é se deve-se ou não matar em resposta à perseguição” (p. 122). Para a autora, é por meio de uma acusação que os sentidos da perseguição surgem como demanda e como convite para agir responsivamente com o perseguido. Essa responsabilidade de agir com o perseguido não aparece com a perseguição, mas em função da relação com o outro, um dilema ético que aparece como uma exigência sobre aquilo que chega e sobre o qual não se tem qualquer controle. Já que a perseguição “forma o horizonte de escolha e fundamenta nossa responsabilidade, [...] ela cria as condições em que assumimos a responsabilidade. Não a criamos, e por isso devemos estar atentos a ela” (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 31).

O que está em jogo é a condição de pensar a dependência, não desejada nem escolhida, em relação ao outro. Dada a perseguição, “alguma coisa se coloca em meu lugar, e surge um eu que só pode compreender seu lugar já ocupado pelo outro” (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 18, grifo da autora). Ainda que a perseguição não seja resolvida - porque não conseguimos resolver nada em nome de um sujeito -, talvez seja possível, como insiste Butler (2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.), compreender que, se todos agem em dependência com o outro e à mercê do outro, impõe-se a exigência de uma resposta. Tal resposta é independente do que tenha acontecido para o outro e, por isso, não depende de que haja um desejo de vingança ou o cultivo de uma vontade ou uma escolha por responder.

Dessa maneira, a relacionalidade ontológica que nos obriga a responder ao outro, a agir com o perseguido ou a responder sobre a perseguição está no centro deste texto. Nele, queremos tratar da escola e da “perseguição” - aqui mais como acontecimento específico - que ela vem sofrendo no momento característico da crise sanitária provocada pelo SARS-CoV-2. Sendo um vírus potencialmente mortal, ele é também parte do mundo, companheiro, como nomeia Haraway (2008HARAWAY, Donna. When species meet. Minnesota: University of Minnesota Press, 2008.), e muitas ações que ele provocou já estavam no mundo sob outras formas (PRECIADO, 2020PRECIADO, Paul B. Aprendiendo del virus. In: AGAMBEN, G. et al. Sopa de Wuhan. ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.). No que tange à escola, o vírus reacendeu falas sobre a falta de qualidade da escolarização definida por supostos déficits em relação a resultados de aprendizado esperados. Mobilizou, também, a ideia de professores mal formados para dar conta das demandas postas pelo isolamento, como se fossem os únicos profissionais a ter que aprender a lidar com uma situação inusitada.

Foi além, na recorrente interpretação de que os professores resistiam a retornar ao presencial apenas porque não queriam trabalhar, que se materializou em tentativas subsequentes de retirada de benefícios dos profissionais durante e em função do período remoto. Falas como a do deputado federal Ricardo Barros, líder do governo na Câmara - “só professor não quer trabalhar na pandemia. [...] Não tem nenhuma razão para o professor não dar aula” - foram repetidas muitas vezes na mídia por jornalistas, muitos deles trabalhando de forma remota. A questão se tornou uma espécie de lema: “as escolas serão as últimas a fechar e as primeiras a abrir”, não só na campanha municipal do Rio de Janeiro como em outras cidades do Brasil - uma repetição da repetição (SMITH, 1995SMITH, Sidonie. Performativity, autobiography and resistance practice. Auto/Biography Studies, [s. l.], v. 10, n. 1, p. 17-33, 1995. DOI: https://doi.org/10.1080/08989575.1995.10815055
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) que marcou o discurso de “perseguição” da escola.

Aqui não pretendemos, no entanto, ser exaustivas em enumerar críticas à escola nem em fornecer exemplos que sustentem as falas ouvidas durante estes dois últimos anos. Queremos apenas construir um cenário em que o servir da escola foi posto em questão, em especial no primeiro ano da crise sanitária, pela exigência de maiores distanciamentos sociais, com o fechamento das instituições, assim como ocorreu com as universidades. Entretanto, antes de prosseguirmos, pensamos ser possível argumentar que, se houve falas como as que citamos, houve também reconhecimento das dificuldades e da valorização do trabalho do professor por responsáveis que tiveram de lidar com as crianças em situação de aprendizado. Ainda que tal reconhecimento tenha surgido aqui e ali, muitas vezes ele foi acompanhado de certa culpabilização das escolas por estarem fechadas, em especial quando o distanciamento foi sendo reduzido.

Não seguiremos com este argumento porque nosso objetivo é eminentemente teórico: pretendemos problematizar o servir da escola - que parece lhe conferir sentido, defendendo que os sentidos de escola só aparecem na relação com o outro que os constitui e que perturba, também, nossa própria subjetivação. A escola, como nome, só existe porque integra o todo vivido da experiência com o mundo e conosco e, portanto, não pode ser definida a priori ou por um servir. Ela existe para além da definição normativa que povoa nossas crenças, é um lugar de invenção de si mesma. Provavelmente poderíamos fazê-lo sem citar esses recentes momentos de “perseguição” da escola e dos docentes. Calar sobre eles, no entanto, não se apresenta como opção, porque seria admitir que isso não é parte de nós e de todos nós no mundo, que não estaria implicado nas nossas relações com o outro, com aquilo que falamos e para quem falamos (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.). Então, insistimos para que este texto seja narrável, o que faz dele um texto autobiográfico e que, por vezes, pode ser chamado de narrativa autobiográfica.

Os limites para nossas experiências e interpretações para o servir da escola nos faz reconhecer que a perseguição a qual trazemos - do servir, da escola e da responsabilidade - “nos devolve não aos nossos atos e escolhas, mas a uma região da existência que é radicalmente não desejada, a invasão primária e inauguração do Outro em relação a mim” (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 114). Dessa maneira, o modo de fazer dele autobiográfico é uma forma de atuação nossa que, anterior a outras possibilidades, é base para a susceptibilidade da qual não temos escolha, pois, como já anunciamos, nos tornamos responsáveis pelos outros - assumimos eticamente responder à perseguição.

As experiências que aqui estão narradas “não repousam no passado ou são trazidas do passado ao presente” (MILLER; MACEDO, 2018MILLER, Janet L.; MACEDO, Elizabeth. Políticas públicas de currículo: autobiografia e sujeito relacional. Práxis Educativa, v. 13, n. 3, p. 948- 965, 2018. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/12397. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 958), mas assumem um retorno constante para as várias temporalidades (MILLER, 2005; SANTOS, 2022SANTOS, Maria do Socorro dos. “Cada outro é cada outro”: do currículo e diferença em quilombola do Arrojado. 2022. 205 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.). Trata-se de uma abertura contínua para as narrativas e a recusa para uma versão simplista da memória - o que significa que não é um texto descritivo, completo ou essencializado de nossas experiências (MILLER, 2005; 2021). Nosso intuito, assumido para pensamento da teoria pós-estrutural, é usar a narrativa ou a autobiografia como forma para explorar a construção social e política que “simultaneamente, chama a atenção para interpretações sempre incompletas, sempre presas à repressão, sempre intermináveis” (MILLER, 2021, p. 35). Por isso, como forma de pesquisa educacional, se move para além de contar nossas versões da perseguição à escola, já que reinscreve “situações e identidades já conhecidas como fixas, imutáveis, presas a concepções normalizadas, e portanto excludentes, do quê e de quem é possível” (MILLER, 2021, p. 37). Ou seja, ela não está sujeita às conversões de uma escrita com descrições estáticas (MILLER, 2005; SANTOS, 2022), mas sim para a incompletude, que nos coloca em um lugar de perseguidas - invade-nos e exige respostas para as tarefas da escola.

Dito isso, assombramos este texto com falas enunciadas durante as atividades de um projeto de pesquisa realizado na cidade de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, com professores e agentes administrativos da rede municipal de Educação. Nesse projeto, temos procurado argumentar em favor da produção de políticas públicas de currículo - com foco na qualidade, como a maioria se define - a partir da escola, defendendo a articulação entre política pública e processos de subjetivação. Em uma das primeiras atividades do projeto, a interpelação detonadora das conversas que mantivemos - equipe de pesquisa e profissionais da rede, em sua maioria professores - se apresentou sob a forma da questão: para que serve a escola? Uma interpelação que pretendia detonar um processo intersubjetivo capaz de desalojar (ou complicar) “noções unitárias, tanto do eu como de vozes e de sistemas prescritivos de ensino e aprendizagem” (MILLER, 2005MILLER, Janet L. Sounds of silence breaking: Women, autobiography, curriculum. New York: Peter Lang, 2005., p. 55). Tratava-se de um convite para “uma invenção ficcional e radicalmente contingente do eu que não pod[ia] requerer a manifestação de uma presença de si sem deixar transparecer uma procuração constitutiva” (PIMENTEL JÚNIOR; CARVALHO; SÁ, 2017PIMENTEL JÚNIOR, Clívio; CARVALHO, Maria Inez da Silva de Souza; SÁ, Maria Roseli Gomes Brito. Pesquisa (auto)biográfica em chave pós-estrutural: conversas com Judith Butler. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 12, n. 1, p. 203-222, 2017. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/9364. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 213). Ou, como defende Miller (2005MILLER, Janet L. Sounds of silence breaking: Women, autobiography, curriculum. New York: Peter Lang, 2005.), uma intenção que aparece “sempre presa na representação, sempre interminável” (p. 53) em qualquer escrita ou processo performático. Procurávamos provocar todos nós esse processo performático de representar um vasto mundo de coisas que ainda estavam à beira de serem autorizadas a serem narradas [na medida em que já tínhamos nos autorizado à narrativa], mas já acontecidas, o que, segundo Pinar (2016PINAR, W. Estudos curriculares: ensaios selecionados. Seleção, organização e revisão técnica: Alice Casimiro Lopes & Elizabeth Macedo. São Paulo: Cortez, 2016.) é “possibilitado pelo fato da não coincidência estrutural” (p. 25). Não que tal provocação fosse imprescindível para a representação, afinal estamos sempre interpelados pela presença do outro: “humanos, processos vivos, condições inorgânicas e meios de vida” (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 144).

Animamos este texto com algumas respostas provocadas [ou não, vai saber] pela questão detonadora da nossa conversa, sem a intenção de reconstruir o vivido daquele momento por impossível e indesejável. Possivelmente, seria mais adequado referir-nos a rastros de respostas, visto que elas não são evidências, mas “fantasmas vivos que nos acompanham, sem que possam ser ditos verdades ou mesmo representações” (MACEDO; SILVA, 2021MACEDO, Elizabeth; SILVA, Paulo de Tassio. Pesquisa pós-qualitativa e responsabilidade ética: notas de uma etnografia fantasmática. Práxis Educacional, v. 17, n. 48, p. 1-20, out./dez. 2021. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/praxis/article/view/8902. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 16). Nesse sentido, serão trazidas como abertura ao outro totalmente outro, recusando-se qualquer redução moral e ética, postura “essencial para determinar a ação e a possibilidade de esperança” (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 34).

Se, por vezes, teremos a impressão de que as respostas apenas repetem discursos hegemonizados sobre o servir da escola, procuraremos argumentar que nenhum discurso esgota a possibilidade de resposta, do desejo que está sempre em curso com os acontecimentos do e no mundo. Buscaremos destacar que as normas não direcionam nossas ações ou dizem do nosso reconhecimento, mas de uma relação possível de reconhecimento nosso com o outro (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.). As respostas circulantes em nossas conversas sobre o servir da escola não expressam o reconhecimento de um ou de outro; elas aparecem para ambos porque existe um quadro de referência normativa. Assim, porque houve interpelação, e porque fomos todos interpelados pela “perseguição”, respondemos o servir da escola, na teia da relação nossa e dos outros [mundo] com a escola, o que inclui lidar com o inesperado do próprio servir da escola.

Por fim, por tudo que vimos argumentando, primeiro propomos, neste texto, interpelar o servir da escola com foco na “perseguição” e as versões para seus servires; e, em seguida, de forma responsável e responsiva, falar da escola como servir e não como serviço - sabendo que, pelas ordens do cálculo, isso só é possível como teoria pedagógica em projeto da desconstrução.

O servir da escola

Se partirmos da ideia de que toda perseguição exige a oportunidade de fala, a escola não “existe fora da vida e [...], por isto, guarda sempre algo terrivelmente pessoal” (DUQUE-ESTRADA, 2009DUQUE-ESTRADA, Elizabeth M. Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si. Rio de Janeiro: NAU/PUC-Rio, 2009., p. 45). Por não estar fora da vida e do lugar da invenção, a pandemia é parte dela, constituindo-a não apenas em seu formato presencial, mas também como ensino remoto ou híbrido. Assim, a escola aparece sem o limite da presença física que preencheu nosso imaginário: um portão a ser atravessado. Quando os portões, remoto e híbrido, se abriram, criaram-se outras possibilidades de vida gestadas pelo movimento da imprevisibilidade. Tal experiência, de certa forma compulsória em razão da pandemia, é um convite para ir além, atravessando o portão que supostamente a separa do mundo no sentido oposto. Talvez valesse perguntar quanto da experiência escolar que aconteceu em ambientes virtuais já estava desde sempre em salas das plataformas Zoom, Meet, Google Class, WhatsApp, Facebook, YouTube, Instagram e outros. Não nos propomos esse caminho, pelo menos não diretamente, mas pensar como as novas formas contingentes de escola seguem permitindo acessar, como sempre ocorreu, “versões de nós mesmos que resistem à prescrição e que podem responder - ao invés de rejeitar - ao divergente, paradoxal, inesperado e desconhecido da vida em sala de aula” (MILLER, 2014MILLER, Janet L. Teorização do currículo como antidoto contra/na cultura da testagem. E-curriculum, v. 12, n. 3, p. 2043-2063, 2014. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/21679. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 2060).

Por mais que a imprevisibilidade tenha se ampliado neste momento em que seguimos ao sabor da pandemia, alguns antigos questionamentos emergiram - em outras iterações - em especial aqueles sobre as experiências da socialização e do apreender como experiências de abertura ao outro. Ao mesmo tempo, seguimos sendo assombrados pelo desfinanciamento da educação. Tornou-se óbvia a ausência de condições mínimas de infraestrutura para o ensino remoto, seja por parte de alunos e professores, seja no que tange à própria escola, à maioria delas - públicas e privadas é bom que se diga. Após dois anos praticamente sem políticas para minorar o distanciamento que fechou a escola como lugar físico, tornou-se pública a redução dos gastos do Ministério da Educação, muito inferiores aos previstos nas leis orçamentárias. Os exemplos de desmonte e destruição são muitos - assim como as resistências de professores, de escolas e mesmo de alguns municípios -, mas eles não são o foco deste texto. Queremos apenas alegar que esse contexto conectou ainda mais o acontecimento do vírus com a relação do nós e do nós dos outros com a escola antes de retomar a interpelação para que serve a escola?, que norteou nossas conversas com colegas do município de Niterói.

Acompanham-nos, ao longo do texto e de forma desordenada, algumas lembranças das falas surgidas nesses encontros em resposta à interpelação-provocação, certas de as estarmos traindo. Possivelmente aqui fosse proveitoso informar que as conversas foram gravadas e que, se nos referimos a lembranças e traições, não o fazemos por não termos acesso ao conteúdo daquele momento na escrita deste texto. Isso apenas procura dar conta da impossibilidade de qualquer representação do acontecimento como ele se deu [ou se dá]. Por consequência, trazemos um conjunto de verbos, substantivos e adjetivos que não constroem consensos sobre o servir da escola, em que a recusa ao fechamento de possibilidades é expressão - nossa neste texto e do coletivo na pesquisa - do respeito à alteridade que constitui a experiência da escola.

Assim, em resposta à provocação, surgiram servires2 2 Usamos servires como substantivo e como forma de evitar o termo serviço, cujo sentido tradicional na língua portuguesa guardamos para quando se pode precisar mais claramente uma espécie de tarefa. como: para pensar direito; para tornar o sujeito autor da sua narrativa; para ser lugar de acesso afetivo; para se relacionar; para incluir e excluir; para circulação de informações; para lidar com as frustações e sucesso; para traduzir e produzir conhecimento; para aprender e reaprender a pensar; para oferecer conhecimento; para a formação humana; para ser lugar de oportunidade, de socialização, de resgate; para acesso ao conteúdo3 3 Optamos por usar o itálico para destacar as falas, ao invés de aspeá-las. A recusa ao recurso das aspas busca evitar a sensação de que a fala pertence a determinado sujeito, tentando jogar a autoria no terreno da relacionalidade. Gostaríamos, por suposto, de fazer isso também com as falas com que dialogamos neste texto, mas isso ainda depende de uma alteração na epistemologia do sujeito individual que marca a produção acadêmica. . Não tomamos esses servires como escolhas do falante dentro de um repertório previamente estabelecido pela norma, mas respostas a uma provocação, “àquilo que lá está posto”. Ainda mais porque servires resiste a uma definição e age apenas como possibilidade - o que seria dizer que servires é o lugar onde o servir não cabe (LEMOS; MACEDO, 2020LEMOS, Guilherme Augusto Rezende; MACEDO, Elizabeth Fernandes de. Escola, Pedagogia e desassossego. Debates em Educação, Maceió, v. 12, p. 371-386, set. 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/349111875_Escola_Pedagogia_e_Desassossego. Acesso em: 28 out. 2022.
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), ao mesmo tempo que não o nega (BIESTA, 2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.). Contudo, esse conjunto de servires nos diz que “não [há] escolha, mas circunstância, o que reforça os paradoxos acerca da subjetividade e encaminha para um aprofundamento acerca da dúvida [do servir da escola]” (LEMOS; MACEDO, 2020, p. 380).

Muitas respostas ressoam nossas heranças, como esperado, e são provocadas pela forma pragmática da pergunta que hospeda uma declaração que pode confundi-la com um serviço: servir para algo. Talvez por isso, os servires nos tenham feito, em alguns momentos, retornar a temas centrais à escola e ao currículo. Apontam, por exemplo, a relação entre escola e conhecimento, ainda que não seja sempre possível dizer que a experiência da escola, do ato de educar, “se reduz a informar, a ensinar, a anunciar” (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995., p. 13). A inadequação dessa redução se faz presente nos muitos outros servires abrindo outras possibilidades: ela é lugar de formação, o que, possivelmente, confessa que ela serve para tudo que foi enunciado.

Dadas as respostas - os servires -, parece haver muitas escolas em uma mesma escola e que dá ares de ser comum em um lugar onde o que há é só diferenças (BIESTA, 2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.), fluxos de relações cotidianas e acordos pedagógicos (LEMOS; MACEDO, 2020LEMOS, Guilherme Augusto Rezende; MACEDO, Elizabeth Fernandes de. Escola, Pedagogia e desassossego. Debates em Educação, Maceió, v. 12, p. 371-386, set. 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/349111875_Escola_Pedagogia_e_Desassossego. Acesso em: 28 out. 2022.
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). Possivelmente, há nessa multiplicidade de servires uma pista de que se trata de um lugar impensável para a descrição, ainda que, como parte da experiência humana, possa ser vista, dita, conhecida, pensada, feita e mesmo inventada. Como esse lugar contingente, quem sabe a escola não tenha serviço e, assim, sirva, haja vista que o desejo por metas e serviços é apenas um modo de se relacionar com as demandas sociais e econômicas do mundo, expressa nas linguagens economizadas ou emancipatórias de escola e até mesmo de educação (BIESTA, 2013; BROWN, 2017BROWN, Wendy. El pueblo sin atributos - la secreta revolución del neoliberalismo. Barcelona: Malpaso, 2017.; FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.).

Como temos uma longa tradição que focaliza a escola como trajetória para a autonomia futura de crianças, jovens e adultos, talvez o discurso de que escola serve para algo trará sempre o testemunho declarado desse desejo por alguma coisa, “segundo a história e o acontecimento de sua manifestação ou o segredo de sua não manifestação” (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995., p. 10). E ainda porque, ante a provocação - para que serve a escola? -, vemo-nos diante de “um credo em um valor positivo ou necessidade, construído moral e metafisicamente. Valor e credo que se dizem unidade, sendo puro dissenso” (LEMOS; MACEDO, 2020LEMOS, Guilherme Augusto Rezende; MACEDO, Elizabeth Fernandes de. Escola, Pedagogia e desassossego. Debates em Educação, Maceió, v. 12, p. 371-386, set. 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/349111875_Escola_Pedagogia_e_Desassossego. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 379). Assim, o que se enuncia é um rastro de desejo habitado na memória do magistério, que, no entanto, traz a possibilidade daquilo que ainda é desconhecido - o lugar da dúvida, mesmo quando não se parece duvidar, incita a suspeita por ela e dela mesma (LEMOS; MACEDO, 2020). Ainda que as falas dos servires anunciem o desejo para a decisão, elas “respondem a provocações de uma alteridade antecedente que incita a fala seguinte deixando a anterior sob o prisma da suspeita” (LEMOS; MACEDO, 2020, p. 380), o que, para nós, surge como condição de aparecimento, mas jamais suficiente.

Nesse sentido, a escola se faz possível em processo autobiográfico em que a linguagem do servir se torna linguagem da experiência de subjetividades várias: professores, alunos, porteiros, merendeiras, bibliotecários, auxiliares de serviços gerais e muitos outros. Ao responder - mesmo que não houvesse pergunta, haveria uma demanda normativa por respostas - sobre o servir da escola, fomos e vamos produzindo nossos próprios reconhecimentos. Ou seja, a escola só serve num espaço de dependência com o outro (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.), na medida em que é “impossível nos livrarmos da nossa sociabilidade fundamental” (BUTLER, 2017, p. 48). O reconhecimento dessa dependência impede qualquer tentativa de definir um sentido correto, com as exclusões que ele implicaria, pois naquilo que é anunciado não é possível carregar o “si-mesmo vivente” (BUTLER, 2017, p. 50) em sua totalidade. Por isso, o lugar da dúvida cumpre por si só uma demanda de resposta, na medida em que aquilo que arguem os que respondem, quando cada um na sua subjetividade decide para que serve a escola, deixa sempre algo sob suspeita sobre ela mesma (LEMOS; MACEDO, 2020LEMOS, Guilherme Augusto Rezende; MACEDO, Elizabeth Fernandes de. Escola, Pedagogia e desassossego. Debates em Educação, Maceió, v. 12, p. 371-386, set. 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/349111875_Escola_Pedagogia_e_Desassossego. Acesso em: 28 out. 2022.
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).

Dessa maneira, não é possível esperar uma única resposta satisfatória. Se por vezes isso parece existir, é porque há uma norma em atuação que “condiciona o que será e o que não será um relato reconhecível” (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 51). Condiciona o que seria revelado, cedido, o que pode ter potencial de reconhecimento e o que pode ser desintegrado do reconhecimento (BUTLER, 2017; 2018). Ainda que ela exceda a troca diática entre os sujeitos, a pergunta - para que serve a escola? - não pode ser compreendida como uma estrutura para qualquer reconhecimento, pois o próprio horizonte normativo do reconhecimento só acontece porque há uma dependência de si-mesma e do outro. Pode ser que, aos olhos desatentos para a diferença em si, as falas dos professores pareçam familiares, mas a responsabilidade para com as demandas do outro exige, no entanto, o esforço para mantê-las estrangeiras. Exige a reinauguração da ação do outro sobre mim e de mim sobre o outro, que só pode ser compreendida como lugar do estrangeiro, “como lugar já ocupado pelo outro” (BUTLER, 2017, p. 118) - que, em outro momento, invade o lugar, sempre estrangeiro, que cada sujeito ocupa.

Então, as enunciações que vimos surgir falam da escola como um lugar em que professores e alunos conversam sobre si mesmos, sobre o outro, sobre o mundo e suas experiências; um lugar onde os encontros de afetos acontecem e as coisas que não são presenciadas ecoam, aparecem e se fazem possíveis pela confiança (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.). Ela surge também como um lugar assombrado por aquilo que nunca pode ser acessado por inteiro, o esforço para a revisão a que é sempre submetida (BUTLER, 2017). Assim, afirmar que a escola serve para pensar direito; para tornar o sujeito autor da sua narrativa; para ser lugar de acesso afetivo; para se relacionar; para incluir e excluir; para circulação de informações; para lidar com as frustações e sucesso; para traduzir e produzir conhecimento; para ser lugar de oportunidade, de socialização, de resgate traz o reconhecimento como discurso aberto, sem que possa haver nele algo a ser resolvido. Trata-se do desejo que nunca será detido - o desejo do desejo, o desejo de ser reconhecido, assim como a demanda de que haja condições de infraestrutura que tornem esse reconhecimento possível (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995.).

Como vimos argumentando, se esses muitos servires não produzem um sentido a priori para toda e qualquer escola ou experiência escolar, de certa forma eles escondem o estranhamento em servires que parecem se integrar. Outros servires provocaram risos - expressão de que talvez estivessem no lugar errado, que logo foi sendo superada. Serviu para montar uma banda, disse alguém, ampliando o quadro de possibilidades para a escola. Em outro tempo verbal, a fala mobilizou memórias não apenas do músico que constituiu a sua banda; ela permitiu a entrada na discussão de brincadeiras entre os amigos, das saídas no meio do turno das aulas, do encontro como o colega no corredor entre muitas outras ditas formas de subversão. Eram todos aspectos que habitam o nós de nossos eus na escola e que também depositamos no outro (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.). Isso deixou emergir a recriação da vida no seu próprio lugar de escola. Nas palavras de Miller (2014MILLER, Janet L. Teorização do currículo como antidoto contra/na cultura da testagem. E-curriculum, v. 12, n. 3, p. 2043-2063, 2014. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/21679. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 2055), trouxe aqueles aspectos que “normalmente não podem ser ditos ou vistos” e que estão na dimensão do reconhecimento da afetação, que inclui o desejo, a ansiedade, o encontro, a exposição e o limite estendido dos corpos (MILLER, 2014MILLER, Janet L. Teorização do currículo como antidoto contra/na cultura da testagem. E-curriculum, v. 12, n. 3, p. 2043-2063, 2014. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/21679. Acesso em: 28 out. 2022.
https://revistas.pucsp.br/index.php/curr...
; BUTLER, 2018). Então, de repente, parece que os silêncios e as contradições que permeiam os sentidos do servir da escola se tornaram mais visíveis: a escola era também um lugar para isso.

O que estamos buscando argumentar é que as normas que produzem a escola e produzem seu reconhecimento e representação (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.; 2018) são mutáveis. Elas exigem “encenar o inconsciente tal como é revivido na própria cena da interpelação” (BUTLER, 2017, p. 75), complicando a comunicação personificada do campo disciplinar. Ainda assim, a inauguração do que seja a escola, repetida, pode “permanecer radicalmente estranha a qualquer desejo, em todo caso, a qualquer forma antropo-teomórfica do desejo” (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995., p. 10). Só assim se reconhece algo que já se deseja confessar ou dar como testemunho do servir da escola (DERRIDA, 1995). Esse movimento da confissão ou do testemunho “amplia indefinidamente os jogos de significação da subjetividade” (PIMENTEL JÚNIOR; CARVALHO; SÁ, 2017PIMENTEL JÚNIOR, Clívio; CARVALHO, Maria Inez da Silva de Souza; SÁ, Maria Roseli Gomes Brito. Pesquisa (auto)biográfica em chave pós-estrutural: conversas com Judith Butler. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 12, n. 1, p. 203-222, 2017. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/9364. Acesso em: 28 out. 2022.
https://revistas.uepg.br/index.php/praxi...
, p. 212), trazendo para si o “estar sendo, primando pelo continuum em seu estar no mundo” (PIMENTEL JÚNIOR; CARVALHO; SÁ, 2017, p. 212, grifo dos autores). Portanto, o “ter uma banda” não foi apenas a expressão falada de mais um servir; foi uma ação enunciativa da vida.

Se podemos dizer de outra forma, tratou-se de uma ação da bio[s], em que “a enunciação de si na linguagem é infielmente fiel a toda ordem do vivido” (PIMENTEL JÚNIOR; CARVALHO; SÁ, 2017PIMENTEL JÚNIOR, Clívio; CARVALHO, Maria Inez da Silva de Souza; SÁ, Maria Roseli Gomes Brito. Pesquisa (auto)biográfica em chave pós-estrutural: conversas com Judith Butler. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 12, n. 1, p. 203-222, 2017. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/9364. Acesso em: 28 out. 2022.
https://revistas.uepg.br/index.php/praxi...
, p. 212). Assim, a opacidade dessa ação bio[s] foi assujeitada pelo que o Eu convocou - serviu para ter uma banda - que aborda o [re]memorar: não o passado em si, mas a possibilidade de falar aquilo que nunca havia sido falado (BULTER, 2017). A narrativa de si mesmo foi exposta sem que o servir da escola tenha desaparecido, pois o que se capta do músico, ao oferecer sua voz e sua narrativa, é que “o eu não pode fazer um relato definitivo ou adequado de si mesmo, porque não pode retornar à cena de interpelação que o instaurou” (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 90, grifo da autora). Dessa maneira, a recepção possível de serviu para ter uma banda assumiu outras formas de linguagem para a escola: o efeito de que nenhum sentido está dado ou poderá ser dado, mas ocupa um lugar que não deixa de ser assumido por uma recepção possível com o outro.

Muitas outras falas surgiram a partir desse serviu para ter uma banda, na medida em que os quadros do serve para foram interrompidos. De alguma forma, a interrupção levou à construção de histórias de vida na escola, explicitando a articulação entre a docência e a própria vida. Miller (2021MILLER, Janet L. Autobiografia e a necessária incompletude das histórias de professores. Roteiro, Joaçaba, v. 46, p. 23-40, 2021. Disponível em: https://periodicos.unoesc.edu.br/roteiro/article/view/27182. Acesso em: 28 out. 2022.
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) refere-se à difícil tarefa de convocar o eu a si mesmo, argumentando que não é possível “compreender totalmente nossas paisagens originais ou relacionar diferentes perspectivas em um todo” (MILLER, 2021MILLER, Janet L. Autobiografia e a necessária incompletude das histórias de professores. Roteiro, Joaçaba, v. 46, p. 23-40, 2021. Disponível em: https://periodicos.unoesc.edu.br/roteiro/article/view/27182. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 30, grifos da autora). Ser professor, pesquisador, estudante, mãe, pai, sindicalista, amigo, na escola, é lidar com a incompletude: o “passado está ali e agora, estruturando e dando vida aos contornos de uma relacionalidade preestabelecida, dando vida à transparência, ao recrutamento e ao uso do analista, orquestrando a cena de interpelação” (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 91). E isso é o que permite ao fio da subjetividade do Eu assumir a impossibilidade de narrar apenas um Eu do si mesmo. A incompletude é o que autoriza a possibilidade de colocar os muitos Eus em movimento e, assim, não paralisar as outras incompletudes (MILLER, 2021).

Assim, a memória narrativa de professores, muitas vezes apagada por uma ideia de profissionalização que privilegia a técnica, foi surgindo em muitas histórias que pareciam fora de lugar e, por isso, talvez tenham demorado a emergir. Experiências contingentes que faziam lembrar que cada escola é uma escola e cada direção é uma direção, como lembrou alguém em determinado momento - como seria possível esquecer disso? Muitas histórias traziam o jogo do voltar-se em direção ao outro, permitindo perceber que “cada outro é cada outro” (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995., p. 65). Ou, ainda, que “cada coisa, cada ente, você, eu, o outro, cada X, cada nome e cada nome de Deus pode tornar-se o exemplo de outros X substituíveis” (DERRIDA, 1995, p. 65). Com isso a possibilidade de ser professor/professora apenas no momento do magistério foi se esvaindo, assim como foi se consolidando a recusa de uma única resposta para o servir da escola. Na medida em que o envolvimento com a vida e o vivido da experiência foi acontecendo, foi também irrompendo o significante vida da escola que desenhou histórias de forma mais contraditória, como “lugares de abertura permanente e re-significabilidade” (MILLER, 2021MILLER, Janet L. Autobiografia e a necessária incompletude das histórias de professores. Roteiro, Joaçaba, v. 46, p. 23-40, 2021. Disponível em: https://periodicos.unoesc.edu.br/roteiro/article/view/27182. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 33, grifo da autora).

As narrativas que dizem do diferir se seguiram, muitas delas marcadas por um outro servir apresentado como para experimentar corpos. Ainda que talvez esse servir gere algum espanto, é uma resposta que não diz aquilo do improvável do espaço da escola que, como lugar de relacionamento, inclui os desejos do próprio corpo. A simples presença dos corpos nesse espaço postula que estar no mundo e relacionar-se com ele “é estar conectado com o que é vivo, [...] e nenhum ser e nenhum humano pode viver sem essa conexão com uma rede biológica de vida” (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 51). Ao viver essa relação com o mundo, como corpos orgânicos, eles agem movidos pela necessidade do desejo, mesmo na escola onde as normas por vezes postulem a ausência de desejo nesse espaço. Assim, não se trata apenas do desejo para o qual a escola serviu, mas também do controle que as normas buscam produzir (BUTLER, 2018). Esse servir, assim como as normas que buscam controlá-lo e que não são externas a ele, inaugura uma reflexividade, razão pela qual é importante considerá-los. Em conjunto, produzem efeitos de respostas sobre a escola.

Desse modo, as falas como experimentar corpos e ter uma banda destacam a oposição a interpretações universais, sem deixar de dizer do servir da escola. Elas apostam - como as demais falas - que o problema não está na “universalidade como tal, mas em como uma operação da universalidade deixa de responder à particularidade cultural e não reformula a si mesma em resposta às condições sociais e culturais que incluem seu escopo de aplicação” (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 17). Funcionam como um desafio para as suposições habituais da experiência, “bem como [...] para tudo que cerca as recentes construções e expectativas sobre o ensino [...] e o entendimento do currículo” (MILLER, 2014MILLER, Janet L. Teorização do currículo como antidoto contra/na cultura da testagem. E-curriculum, v. 12, n. 3, p. 2043-2063, 2014. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/21679. Acesso em: 28 out. 2022.
https://revistas.pucsp.br/index.php/curr...
, p. 2060, grifo da autora). Ao questionar o reconhecimento “dado” da escola, torna mais explícito que não é possível anunciar uma sentença, um veredito ou uma decisão sobre o servir da escola, não é possível assumir um fim para ela, a não ser um “fim completamente inicial” (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995., p. 8), indeterminável e suspeito.

Finalizamos este primeiro movimento de pensar os servires da escola com uma fala que pretendeu deslocar a interpelação, questioná-la expondo o seu pragmatismo: a escola tem que servir para alguma coisa? Estranhamente, ela pareceu colocar a interpelação nos trilhos de onde tinha sido derivada. Pretendendo problematizar a necessidade de nomeação do lugar da escola, reintroduziu o complemento que havia sido deslocado por muitas das respostas que circularam na conversa. E reinstaurou - ao pretender radicalizar a escola como lugar para reconhecimento - um sentido de servir como servir para algo ou como serviço. Ao fazê-lo, deu destaque para um fato curioso: como muitas respostas nos convidaram, em sua multiplicidade, para pensar processos contínuos (MILLER, 2014MILLER, Janet L. Teorização do currículo como antidoto contra/na cultura da testagem. E-curriculum, v. 12, n. 3, p. 2043-2063, 2014. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/21679. Acesso em: 28 out. 2022.
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), em detrimento de resultados, mesmo quando elas reforçaram o sistema de crenças sobre o que são ou deveriam ser as escolas.

De igual maneira, responder ao servir da escola com afirmativas como para ser lugar de acesso afetivo; para se relacionar; para a formação humana ou defini-la como lugar de oportunidade, de socialização, de resgate desenha processos contínuos da escola como lugar de vida. Tais processos trazem a marca de um servir diferente, assumindo esse diferente como “algo que é apropriado, que pertence à educação” (BIESTA, 2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 103). Elas não dizem da diferença de si, mas tentam pensar diferentemente as mesmas nomeações e, nelas, propor que o que torna a escola possível é o que “torna a educação possível em primeiro lugar” (BIESTA, 2013, p. 104). Assim, esse conjunto de falas provoca deslocamentos sobre o que a habita, tornando mais complexa sua identificação. Não se trata, no entanto, de uma afirmação que privaria a escola de reconhecimento - o que ameaçaria a sua “própria possibilidade de existir e persistir” (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 47) - nem de um deslocamento revolucionário em relação às falas circulantes.

Em conjunto, essas falas explicitam que a escola aparece e se apresenta reconhecível, ainda que esse reconhecimento não possa ser capturado. Vimos defendendo que é exatamente o que está ausente nas falas como resposta à interpelação sobre o servir da escola que permite a abertura que diz de seu serviço. Isso porque as respostas, em si, são “efeitos do poder sobre os fluxos de significação, não são, portanto, nunca, apenas posições que, se somadas, garantem uma proposta melhor porque mais inclusiva” (MACEDO, 2017MACEDO, Elizabeth. Mas a escola não tem que ensinar?: conhecimento, reconhecimento e alteridade na teoria do currículo. Currículo sem Fronteiras, v. 17, n. 3, p. 539-554, set./dez. 2017. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/324951140_Mas_a_escola_nao_tem_que_ensinar_Conhecimento_reconhecimento_e_alteridade_na_teoria_do_curriculoxs. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 541). É na negociação das normas e regras que emergem outros modos de pensar a escola, esse espaço que se quer preparação para uma vida outra produzida pelo controle de mentes e corpos [assim mesmo, como se fossem dois].

Portanto, tal negociação destaca a responsabilidade de cada um na construção do servir da escola como um lugar em que todos nós “nos tornamos alguém pela maneira como nos envolvemos com aquilo que aprendemos” (BIESTA, 2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 127) e vivemos., certos de que, “há mais lugar, a partir daí, há mais lugar além” (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995., p. 17), há mais escolas, a partir daí, há mais servires - ali, aqui, do outro lado, além.

Responsabilidade responsiva à escola: o servir

Com o intuito de ampliar nossos sentidos de escola e seus servires, queremos perseguir a questão sobre “como podemos reagir responsavelmente ao que e a quem é outro, e como podemos viver pacificamente com o quê e com quem é outro” (BIESTA, 2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 31). Isso implica seguir nossa proposta de texto narrável - de sujeitos autonarrativos - e insistir na ideia de responsabilidade ou de resposta responsiva ao outro. Advertimos que o estatuto da responsabilidade aparece como dever de oferecer respostas a fim de fundamentar o direito - “o direito à palavra” (SISCAR, 2018SISCAR, Marcos. Pensar como responder: o problema da responsabilidade política em Jacques Derrida. In: LOPES, Alice Casimiro; SISCAR, Marcos (orgs.). Pensando a política com Derrida: responsabilidade, tradução e porvir. São Paulo: Cortez, 2018, p. 153-178., p. 70, grifo do autor) -, que traz consigo “a tentativa de resguardar estruturas fixas do dever” (SISCAR, 2018, p. 70, grifos do autor). Assim, o oculto direito à palavra não deixa de aparecer como inscrição de algo já conhecido, pois “ele se constitui como experiência e, como tal, tem um sentido político que não pode ser negligenciado” (SISCAR, 2018, p. 73, grifo do autor). Tal sentido é a possibilidade mesma de resposta, ainda que os seus sentidos sejam borrados em relação a categorias previamente definidas. A interpelação que propusemos - para que serve a escola? - já decide um certo lugar de resposta, pois “a questão contém a resposta que aparentemente procura no texto do outro” (SISCAR, 2018, p. 73). Seria uma experiência do “pensamento como resposta” (SISCAR, 2018, p. 74, grifo do autor), mostrando que a escola é mais do que os servires narrados, posto que, naquilo que a articula, sua prática de fazer nunca está ausente.

As experiências do que foi estar nesses múltiplos lugares em diferentes momentos nomeados genericamente de escola e suas narrativas não são a “essência última” (BIESTA, 2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 98). Os servires da escola foram aos poucos deixando de lado o essencialmente racional, tornaram-se respostas subjetivas àquilo que chega, uma possibilidade sem garantias de-para a resposta. Ao invés de qualquer resposta que lhe confira um sentido metafísico por intermédio de seus servires, a escola foi sendo pensada como um lugar que envolve sujeitos em relações. Assim, o movimento da escola singular responde de forma responsável ou responsiva àquilo que os sujeitos vão produzindo ou àquilo que ainda está para chegar. Ser responsivo refere-se a algo que não pode ser calculado, “poderia significar estar, viver com outros” (BIESTA, 2013, p. 94).

As respostas não valem por seu “conteúdo”, não são certas ou erradas; algumas são, possivelmente, difíceis de serem evitadas - não que o devessem - em razão de nossas heranças de formação. Interessa-nos dizer do que elas podem realizar ou de como é possível responder ao realizável delas (BIESTA, 2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.). Elas são “um dever para a criação [...] e para seu constante desfazer” (BIESTA, 2013, p. 133), uma demanda por responder ao outro e, nesse sentido, uma demanda ética. Defendemos a impossibilidade e a indesejabilidade de conferir significados à escola, optando por, como propõe Miller (2005MILLER, Janet L. Sounds of silence breaking: Women, autobiography, curriculum. New York: Peter Lang, 2005.; 2014; 2021) em suas leituras do autobiográfico, “interrogar nossas próprias suposições automáticas” (MILLER, 2014MILLER, Janet L. Teorização do currículo como antidoto contra/na cultura da testagem. E-curriculum, v. 12, n. 3, p. 2043-2063, 2014. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/21679. Acesso em: 28 out. 2022.
https://revistas.pucsp.br/index.php/curr...
, p. 2049). Nossa tentativa aqui é exercitar uma teorização educacional comprometida com tal interrogação, uma teorização que se recusa à resposta sobre uma escola definida por seus servires ou serviços. Assumimos que tal exercício é uma resposta possível à interpelação economizada e metafísica que a pandemia atualizou ao questionar os servires da escola.

Não vamos retomar as muitas críticas que a escola veio sofrendo por ocasião da crise sanitária da Covid-19 nem relembrar que tais críticas, ainda que tenham se intensificado, não são recentes. Talvez valesse declarar que elas são mesmo esperadas, tendo em vista as formas como seus autores concebem a educação. Não nos é estranha nem mesmo a necessidade de achar culpados quando os serviços quantificados da educação supostamente falham, mesmo que em razão de uma crise sanitária de severos efeitos nas mais diversas áreas. O mundo econômico virou de ponta-cabeça, as cadeias produtivas foram interrompidas, a inflação sobe em boa parte do mundo, os produtos internos brutos e os índices de crescimento dos países vêm caindo fortemente, mas, ainda assim, as falas hegemônicas vigentes cobram que a escola tivesse funcionado como se não houvesse pandemia. Bem antes da crise sanitária, Biesta (2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.) lembrava o que seguimos ouvindo, que o fracasso é, em geral, atribuído “aos estudantes que não têm motivação, aos pais que não dão apoio suficiente ou aos professores que não possuem habilidades eficientes para ensinar” (p. 131).

Nossa preocupação com uma teoria responsável e responsiva envolve desconstruir as críticas a leituras redutivas da educação, mas não se resume a isso. Afirmativas mais complexas sobre os servires da escola também são, por vezes, tornadas reconhecíveis como desejos de sucesso e cidadania ou de garantia do direito à educação em um país com uma incrível desigualdade socioeconômica e cultural. Como as demandas dos críticos, elas também criam expectativas irrealistas sobre as escolas, posto que alicerçadas na redução reificada de suas possibilidades. Parece-nos pouco produtivo um servir da escola que remeta ao reconhecimento, necessário e desejado por todos nós, se ele for entendido como reconhecimento no mesmo ou no já dado. Uma teoria responsável se alicerça na recusa a qualquer determinismo, já que, como lembra Miller (2014MILLER, Janet L. Teorização do currículo como antidoto contra/na cultura da testagem. E-curriculum, v. 12, n. 3, p. 2043-2063, 2014. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/21679. Acesso em: 28 out. 2022.
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; 2021), lidamos com versões espectrais de nós e do que dizemos conhecer. Nossa aposta está no que Biesta (2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.) chama de “combinação paradoxal - ou desconstrutiva - da educação e seu desfazer” (p. 152, grifo do autor), um exercício que não tem e não busca um fim.

Nesse sentido, seria honesto declarar que a rememoração das conversas que assombram este texto é, ela mesma, marcada por nossa crença de que os sentidos de educação e escola se desfaçam no mesmo movimento em que são enunciados. Uma teoria responsável e responsiva se erige, para nós, sobre a ideia de que não é possível controlar o servir da escola como lugar criativo e dinâmico, de que é impossível prescrever seu uso e, ainda mais, seu desuso. A escola é devir e porvir, ela é, como defendem Lemos e Macedo (2020LEMOS, Guilherme Augusto Rezende; MACEDO, Elizabeth Fernandes de. Escola, Pedagogia e desassossego. Debates em Educação, Maceió, v. 12, p. 371-386, set. 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/349111875_Escola_Pedagogia_e_Desassossego. Acesso em: 28 out. 2022.
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, p. 384), “essa evocação metafísica que todos os dias abre suas portas e acolhe o heterogêneo, persuade-nos de sua necessidade por promessas que não pode cumprir”. É claro que só é possível assumir algo sobre a escola se ela já se assumir sendo, mesmo diante de um vir a ser (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995.). Entretanto, não é desejável - ou, talvez melhor, responsável - defini-la por suas promessas, mas “criar e manter a existência de um espaço mundano por meio do qual novos inícios podem se tornar presença” (BIESTA, 2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., 142, grifo do autor). Pensá-la talvez como um lugar tradutório, um terceiro espaço em que não há sentidos originais, mas que emerge como lugar de reconhecimento, de negociação e até de negação: um reconhecimento que depende de “ação, isto é, [de] [...] ser com os outros.” (BIESTA, 2013, p. 181, grifo do autor). Isso não implica que a escola não serve mais - o que parece implícito nas críticas que ecoaram na pandemia. Defendemos, como esperamos ter deixado claro, que há uma multiplicidade de servires para a escola, impossíveis de nomear e listar, que surgem nas relações que a constituem. Ela é [quer-ser-sendo] lugar de/para a subjetividade.

Portanto, qualquer teorização que se proponha a produzir um ideal de resposta sobre o que é a escola - e sobre outros assuntos - já falhou em sua pretensão mesma de ser teoria. Com isso, não implicamos uma avaliação moral do ideal de resposta, em geral algo desejável: “um modo de corporificar um sentido de retidão que requer, e merece, reconhecimento” (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 47). Apenas argumentamos que esse ideal precisa ser assumido como “uma relação ética” (BUTLER, 2017, p. 33) ou vir acompanhado de sua desconstrução.

REFERÊNCIAS

  • BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
  • BROWN, Wendy. El pueblo sin atributos - la secreta revolución del neoliberalismo. Barcelona: Malpaso, 2017.
  • BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
  • BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
  • DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995.
  • DUQUE-ESTRADA, Elizabeth M. Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si. Rio de Janeiro: NAU/PUC-Rio, 2009.
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  • 1
    Pesquisas realizadas com financiamento do CNPq e da FAPERJ.
  • 2
    Usamos servires como substantivo e como forma de evitar o termo serviço, cujo sentido tradicional na língua portuguesa guardamos para quando se pode precisar mais claramente uma espécie de tarefa.
  • 3
    Optamos por usar o itálico para destacar as falas, ao invés de aspeá-las. A recusa ao recurso das aspas busca evitar a sensação de que a fala pertence a determinado sujeito, tentando jogar a autoria no terreno da relacionalidade. Gostaríamos, por suposto, de fazer isso também com as falas com que dialogamos neste texto, mas isso ainda depende de uma alteração na epistemologia do sujeito individual que marca a produção acadêmica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2022
  • Aceito
    09 Nov 2022
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