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Bordejar sentidos e sensações: uma educação em deslocamentos

RESUMO

O campo da Educação, quando atravessado pela filosofia, arte e ciência, pode conectar-se ao universo das imagens diferindo intensivamente das suas usuais capacidades de pensar, imaginar, criar e inventar o novo, particularmente nas relações entre sujeitos e conhecimentos. Este texto pensa a urgência de apontar fissuras de uma constituição moderna fechada em uma estrutura de formação de um sujeito vinculado a conhecimentos autorizados a dizê-lo como verdade. Margeia as potências das imagens e seus possíveis efeitos em corpos e matérias de expressão, fora de uma percepção que não aja de modo conciliatório ou habitual com o que é sentido. Dialogando com referencial teórico das filosofias da diferença, sobretudo a de Gilles Deleuze, são escolhidos dois filmes como intercessores para o trabalho analítico e criativo que inspira deslocamentos das relações entre sujeitos e conhecimentos na educação. Para tanto, percorre linhas de fuga para pensar no intervalo, a partir da ideia de contraste e sua importante intensificação do “entre polos”: gênero, classificação, juízo. Pensa-se também pela imagem-infantil, conceito que nasce entre as margens do cinema, da educação e da filosofia com um estreito vínculo com os contrastes que dimensionam a infância e os seus sentidos lacunares.

Palavras-chave:
imagem; filosofia da diferença; cinema; sujeito

ABSTRACT

The field of Education, when traversed by philosophy, art and science, can be connected to the universe of images, differing intensively from its usual capacities of thinking, imagining, creating and inventing the new, especially focusing on relationships between subjects and knowledges. Thinking the urgency of pointing fissures of a modern constitution closed in a structure of subject education linked to knowledges authorized to say it as a truth. It borders the potencies of images and their possible effects on bodies and matters of expression, external to a perception that do not work in a conciliatory or habitual way in which they are usually felt. Dialoguing with the theoretical framework of the philosophies of difference, especially the works of Gilles Deleuze, two movies were chosen as an intercessor for analytical and creative operations that inspire displacements of usual relations between subjects and knowledges into education field. Thus, it traces lines of flight to think in the interval, from the idea of contrast and its important intensification ‘between poles’: genre, classification, judgment. It is also thought through the infantile-image, a concept that arises within the margins of cinema, education, and philosophy, and which has a close bond with the contrasts that dimension childhood and its lacunar senses.

Key-words:
image; philosophy of difference; cinema; subject

Primeiras palavras

Com nossas pesquisas atuais, buscamos associações heterogêneas entre imagem e educação. E fazemos esse movimento especialmente interessados em imagens de alguns tipos de cinema, que dão voltas e retornos diferenciais ao mundo deslocando-nos como espectadores de cenas cotidianas. Nesse contexto, as imagens não são um enunciado, solicitam uma lógica da sensação não discursiva, e não reificam a lógica da significação. Entendemos sensação como o que passa de uma ordem a outra, de um nível a outro, de um domínio a outro como agente de deformações do corpo - diferentemente da atuação das artes figurativa e abstrata, que ocorre diretamente no cérebro, sem acesso à sensação.

Aceitamos a provocação de Lapworth (2021LAPWORTH, Andrew. Responsibility before the World: Cinema, Perspectivism and a Nonhuman Ethics of Individuation. Deleuze and Guattari Studies, v. 15, n. 3 p. 386-410, 2021. Disponível em: https://www.euppublishing.com/doi/abs/10.3366/dlgs.2021.0447. Acesso em: 20 out. 2022.
https://www.euppublishing.com/doi/abs/10...
, p. 398), ao afirmar que os mundos expressos pelas imagens cinematográficas podem ser entendidos como sendo mais ou menos éticos, dependendo de permitirem que uma “multiplicidade de pontos de vista (humanos e não humanos) coexista intensamente” ou fazendo com que a heterogeneidade se torne “aprisionada numa perspectiva míope de significado e sentido”.

E é com a multiplicidade que estenderemos as próximas conversações em três estratos interconectados que reivindicam, contra qualquer dogmatismo, a afinidade entre a velocidade e o pensamento. Em atravessamentos de um texto literário e dois filmes, as imagens serão dimensionadas como o vento forte do fora que rasga os “guarda-sóis” a que Deleuze e Guattari indicam ser o abrigo da recognição. E, nesse movimento, criarão um possível para se pensar sujeito e conhecimento na educação, em “um céu desnudado, semeando a tempestade e fazendo fulgurar a diferença” (SIMONT, 2021SIMONT, Juliette. Gilles Deleuze, ao encontro da intensidade (Tradução de Carlos Tiago da Silva & Eladio Constantino Pablo Craia). Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 185-218, 2021. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tragica/article/view/36980. Acesso em: 20 out. 2022.
https://revistas.ufrj.br/index.php/tragi...
, p. 188), ou seja, uma educação que é simultaneamente liberdade e vontade de a-significar vida em cada palavra, imagem, um texto que trans-corre, híbrido.

Serão tangenciadas outras miradas para a formação docente, ao longo do artigo.

Vida: a grande sopa

No livro de Ítalo Calvino, “O Cavaleiro Inexistente” (1993CALVINO, Ítalo. Il cavaliere inesistente. Milano (Italia): Oscar Mondadori Editore,1993.), o personagem Gurdulú, descrito como “aquele que existe, mas não sabe quem é” e que contrapõe essencialmente o personagem do cavaleiro narrado como “aquele que sabe quem é, mas não existe”, recebe nomes diferentes de pessoas de lugares diversos na medida que relações que elas estabelecem e valoram frente a ele apresentam-se diferentemente.

Gurdulú vive, mas vive sem julgar, ou melhor, julga em uma lógica sua, de experimentação, atiçando e potencializando devires: devir-fruta, devir-pato, devir-sexo... Faz-se personagem que é pura pulsão e desejo de vida, que interage com o meio, escapando às relações formais estabelecidas por enquadramentos culturais de uma imagem de sujeito presa a valores e códigos morais. Não consegue exprimir sequer um “preferiria não”, ele é pura potência de vida/corpo em um mundo que o julga diferentemente por aquilo que não pode compreender, já que as associações de reconhecimento ordinárias estão deveras apegadas a figuras e modelos de vida e não comportam uma aproximação ao corpo esquizo que se expressa apenas pelo desejo que o toma e as efetuações nada previsíveis que realiza. Experimenta um pensamento ético, que não se trata simplesmente da aplicação de julgamentos pré-existentes e valores transcendentes a situações reconhecidas (um procedimento que Gilles Deleuze (1997DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica Trad. Peter Pal Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.) define como uma imagem distintamente “moral” do pensamento), mas sim de uma prática devidamente inventiva que facilita a produção de novos e imprevistos modos de existência.

Esse personagem, ao se fartar em comer e se lambuzar tomando sopa, parecendo a ela se misturar, afirma em determinado momento que “- Tudo é sopa!” e gera um pensamento a outro personagem: de fato, não seria o mundo uma gigantesca minestra?

Gurdulú não está tomado por uma linguagem que possa exprimir qualquer refinamento, todas as conexões estão liberadas de códigos ideais que, em contrapartida, mantêm o cavaleiro demasiadamente aprisionado e, assim, esse outro personagem não consegue “iluminar”, “esclarecer” ou transmitir a outros guerreiros a ideia verdadeira de “cavaleiro”. Essa ideia e os conhecimentos e saberes que a construíram estão distantes do campo de batalha, da rotina e da razão do porquê da guerra. Sai-se de uma lógica da inclusão, em que os conhecimentos crescem em extensão, somando-se uns aos outros e, no máximo, entrando em uma batalha em movimentos dialéticos, para uma lógica perspectivista da indiscernibilidade (LAPWORTH, 2021LAPWORTH, Andrew. Responsibility before the World: Cinema, Perspectivism and a Nonhuman Ethics of Individuation. Deleuze and Guattari Studies, v. 15, n. 3 p. 386-410, 2021. Disponível em: https://www.euppublishing.com/doi/abs/10.3366/dlgs.2021.0447. Acesso em: 20 out. 2022.
https://www.euppublishing.com/doi/abs/10...
). Não se trata da dissolução de tudo num fluxo cósmico que anula a diferença (um “tornar-se nada”); o que é contrastante se mantém, uma vez que uma zona de indiscernibilidade é antes onde as diferenças se unem ativamente, de modo que se intensificam e transformam-se, em um processo de variação constante.

Ora, a sutileza do livro de Calvino passa não só por afirmar a coexistência e o convívio dos dois personagens marcados como figuras correspondentes a polos diferentes e extremos que coexistem, mas também por mostrar que a essência não está nem no cavaleiro nem em Gurdulú, que o mundo seria uma mistura, uma complexidade que está no entre e não nos polos ou nas identidades. Uma característica do drama, nessa coexistência e coextensão dos dois personagens do livro de Calvino, refere-se às relações diferenciais entre eles, que, ao invés de gerarem operações de demarcar as diferenças, correspondem a “distribuições de singularidades, repartições de pontos notáveis e ordinários, de modo que um ponto notável engendra uma série prolongável sobre todos os pontos ordinários até a vizinhança de outra singularidade” (DAMASCENO, 2011DAMASCENO, Veronica. Sobre a ideia de dramatização em Gilles Deleuze. doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 8, n. 2, p.157-174, 2011. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/21519. Acesso em: 20 out. 2022.
https://revistas.ufpr.br/doispontos/arti...
, p. 164). Ou seja, os contrários análogos se afirmam assim como os contrastes, mas não pela exclusão de um pelo outro, e sim pela diferença das forças assimétricas de composição, que podem ser intensificadas por contrastes extremos, apresentando um drama tomado por diferentes encontros que sempre variarão.

Em Novaes (2014NOVAES, Marcus Pereira. A potência do contraste na cena dramática. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de Campinas, Campinas, 2014.) e Novaes & Amorim (2021), o contraste foi uma categoria pensada em conexão ao pensamento da diferença afirmando-o como coexistência em um espaço/meio, tela/vídeo e não encaminhando à marcação ou instauração de uma identidade. Destaca-se o uso do contraste em dissonância ao simples reconhecimento, à pura identificação ou à recognição. O movimento-pensamento instaurado por esse termo permite possibilidades de criação de novas sensações que ponham em dúvida o mecanismo sensório-motor habitualmente estruturado pelos sentidos conhecidos e já receptivos à determinada apreensão. Busca-se uma intensificação dos afectos, não uma “fisiognomonia” dos sentidos, outras linhas de emergência dos sujeitos e dos conhecimentos, uma vez que, segundo Lins (2009LINS, Daniel. Heráclito ou a invenção do devir. In: LINS, D. (Org) O devir-criança do pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., p. 06), “o pensamento é movido ao ritmo que vincula os próprios pensamentos entre eles religando-os às coisas; nunca é demais lembrar que as coisas e pensamentos não estão separados. (...) busca-se a harmonia dos contrários e não a identidade dos contrários que lhe são desconhecidos”.

Pensar o contraste como instaurador da cena dramática põe o foco muito mais nas possíveis rupturas recognitivas do que na dialética entre as forças que comporiam as imagens, resultando em sínteses unitárias ou comuns tão presentes nos modos de os conhecimentos serem mobilizados no campo da educação e que vêm sendo passíveis de várias críticas (ver, por exemplo, MACEDO, 2012; GABRIEL, 2019GABRIEL, Carmen Teresa. Currículo e Construção de um Comum: articulações insurgentes em uma política institucional de formação docente. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 17, n. 4, p. 1545-1565, out./dez 2019. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/44944. Acesso em: 20 out. 2022.
https://revistas.pucsp.br/index.php/curr...
).

Os conhecimentos constituem-se como um verdadeiro drama para o pensamento, já que se encontram sob o sistema da representação, numa instância pré ou anterrepresentativa. Nesse sentido, similarmente ao que discute Gabriel sobre formação docente, a dramatização também investe na “desestabilização de um sentido particular de um comum fixado hegemonicamente em torno da ideia de ‘propriedade como direito’” (GABRIEL, 2019GABRIEL, Carmen Teresa. Currículo e Construção de um Comum: articulações insurgentes em uma política institucional de formação docente. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 17, n. 4, p. 1545-1565, out./dez 2019. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/44944. Acesso em: 20 out. 2022.
https://revistas.pucsp.br/index.php/curr...
, p. 1554). A autora destaca que o comum passaria a ser percebido como princípio político, ao invés de apenas ser um modo de produzir pertencimento social e subjetivo nos entrelaçamentos entre sujeito e conhecimento.

Abrir outros possíveis nesses conhecimentos pode ser papel do método de dramatização. Ele é contextuado e libera, segundo Damasceno (2011DAMASCENO, Veronica. Sobre a ideia de dramatização em Gilles Deleuze. doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 8, n. 2, p.157-174, 2011. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/21519. Acesso em: 20 out. 2022.
https://revistas.ufpr.br/doispontos/arti...
), um cortejo de questões orientadoras para acompanharmos a dramaticidade do pensamento: em que caso?, quem?, como? quanto? e onde? E as respostas mais potentes vêm da afirmação da incompossibilidade, uma alternativa política frente à predominância de uma série que seria o melhor dos mundos possíveis, a partir de se escolher um, o melhor, diante do impossível que seria aceitar a realidade em multiplicidades. É uma vertida do comum à variação contínua das possibilidades, ideia inspiradora para processos outros de formação docente. Nesse contexto, do método dramático emerge “a incompossibilidade [como] uma correlação original que se distingue da contradição e da impossibilidade” (DAMASCENO, 2011DAMASCENO, Veronica. Sobre a ideia de dramatização em Gilles Deleuze. doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 8, n. 2, p.157-174, 2011. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/21519. Acesso em: 20 out. 2022.
https://revistas.ufpr.br/doispontos/arti...
, p. 172).

Afirmar as relações entre sujeitos e conhecimentos como incompossível é o que faremos em seguida. Para tanto, traçaremos conversações com um curta metragem de cinema experimental norteamericano. E, em seguida, com um longa metragem mexicano. Ambos tratam de imagens da infância, do infantil. Tal associação desses dois filmes também expressam uma ideia, conhecida em DO VALLE (2018DO VALLE, Livia Fortuna. A infância do mundo: escritos para Gilles Deleuze. Tese (Doutorado em Psicologia). Universidade Federal Fluminense: 2018.), de que, como professor, Deleuze era praticamente uma “máquina” de fabular, uma criança velha, alguém que não se esquecia do humor, tratando sempre de liberar a vida lá onde ela se sente prisioneira. Não se cansava de repetir: os perceptos desta vida, deste momento, precisam exceder o vivido, ultrapassar o vivido, aquilo que está em nós confinado. Um docente-infantil, cujos conhecimentos inspiradores vêm sendo nossa companhia intelectual.

Argumentaremos que o cinema tem um papel importante junto às potências, de provocar rupturas, mesmo que micro, e de propiciar novos meios de estar no mundo, em uma expansão da estética de vida. Os signos das artes, em geral e no exemplo da literatura de Ítalo Calvino, têm esse papel. São condições para o nascimento do pensamento: “não na ortodoxia de sua direção previamente decidida, mas quando ele é confrontado com a garra daquilo que ainda não foi pensado, daquilo que surge com a intempestiva inanidade de um encontro” (SIMONT, 2021SIMONT, Juliette. Gilles Deleuze, ao encontro da intensidade (Tradução de Carlos Tiago da Silva & Eladio Constantino Pablo Craia). Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 185-218, 2021. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tragica/article/view/36980. Acesso em: 20 out. 2022.
https://revistas.ufrj.br/index.php/tragi...
. p. 188). Seus elementos e o que o constitui em forma e conteúdo sugerem a emergência de serem questionados, estudados, deslocados e experimentados. A educação tem esse desejo?

Da tela do cinema, alianças para diferir a docência

David Lynch, diretor americano, coloca que o cinema combina muitas formas diferentes de arte1 1 Confira a entrevista em: http://www.interviewmagazine.com/film/david-lynch/#_. Acesso em: 11 maio. 2022. . O diretor começou como pintor e a pintura o levou ao cinema. Diz-nos que no cinema temos que construir muitas coisas, ou ajudá-lo a construir. O cinema lida com muitas outras áreas - música, fotografia, por exemplo. É o que Amanda Núñez García (2020GARCÍA, Amanda Núñez. Hybridising Knowledge: Some Considerations on the Epistemology of Contamination in the Works of Deleuze and Serres and Its Reception in Bio Art. Deleuze and Guattari Studies, v. 14, n. 2, p. 299-318, 2020. Disponível em: https://www.euppublishing.com/doi/abs/10.3366/dlgs.2020.0403. Acesso em: 20 out. 2022.
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) discute em seu artigo sobre conhecimento híbrido entre arte, ciência e filosofia, afirmando que o conceito de aliança para Deleuze e Guattari, na obra Mil Platôs, diz respeito ao tornar-se, em devir, uma ordem diferente da filiação. No curta-metragem The Alphabet (1968), Lynch quis fazer um filme pintando e não nega que Bacon é uma de suas grandes alianças. A obra de arte de Bacon foi estudada por Gilles Deleuze para pensar a Lógica da Sensação.

Os efeitos modulatórios no encontro com as imagens de Lynch, conectando a força do conceito de aliança, poderiam desorganizar articulações demasiadamente semelhantes ao aceitarmos abrir mão de nosso reconhecimento estético padrão e acolhermos o convite para sonharmos e rompermos com o insuportável da moldura rítmica e padronizada ao sentir as intensificações que vêm dos gritos inarticulados da imagem. Uma chance de pensarmos outros modos de relacionamentos entre conhecimentos, “[q]ue não estejam entre os clichês recorrentes da nossa cultura: ou a sua excisão de fato, ou a sua fusão mítico-humanista em um projeto de salvação do sujeito e da realidade” (GARCIA, 2020GARCÍA, Amanda Núñez. Hybridising Knowledge: Some Considerations on the Epistemology of Contamination in the Works of Deleuze and Serres and Its Reception in Bio Art. Deleuze and Guattari Studies, v. 14, n. 2, p. 299-318, 2020. Disponível em: https://www.euppublishing.com/doi/abs/10.3366/dlgs.2020.0403. Acesso em: 20 out. 2022.
https://www.euppublishing.com/doi/abs/10...
, p. 301).

Lynch possibilita-nos pensar o encontro com forças pré-linguísticas, pré-alfabéticas e pré-moldadas de nossa educação ao permitir que rompamos os códigos que nos forçam um determinado assujeitamento. Uma intensificação tão grande que nos pode dar uma nova qualidade, despertar outras percepções. José Gil (2008) nos ajuda a entender esse descompasso entre ler com letras e ler com traços. Segundo o autor, “o alfabeto compõe-se de ‘letras’. Aprendemos a ‘ler’ e a ‘escrever’ (isto é, a pensar), combinando-as para formar palavras, depois frases (ou seja, para articular uma questão e construir um problema). As mesmas letras não se encontram, pois, em toda parte, em todas as palavras” (GIL, 2008, p. 40). Ou seja, o pesadelo de ser alfabetizado, no filme de Lynch, traz para o corpo de sua filha, que é a personagem humana, a condição larval, pelo desaparecimento do avesso das letras, dos tantos devires e virtualidades que contêm. Para Deleuze (2006DELEUZE, Gilles. O método de dramatização. Trad. Luiz B. L. Orlandi. In: DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. 1. ed. São Paulo: Iluminuras, 2006.), há movimentos que somente o embrião pode suportar, e aí está a verdade da embriologia: aqui o sujeito só pode ser larvar. O próprio pesadelo talvez seja um desses movimentos que nem o homem acordado e nem mesmo o sonhador podem suportar, mas somente o adormecido sem sonho, o adormecido em sono profundo.

Há uma pressuposição mútua entre sujeitos e conhecimentos nesse filme que passa pela relação complexa do real e do virtual, em que ambos são reciprocamente determinados. Ora, como destaca Leon (2021), para entender as relações entre real e virtual é necessário recorrer ao termo individuação que, segundo Gilles Deleuze, incluirá intensidades virtuais de maneira construtiva em situações reais cuja multiplicidade é extensiva. Em situações reais, nas quais os indivíduos e seus conhecimentos estão em jogo, tais como as educativas, tal movimento de o sujeito se individuar provém da individualização das diferenças virtuais, que atuam entre o real e o virtual. O virtual é um tipo de efeito de superfície produzido por interações causais reais no nível material. Por sua natureza gerativa, esse virtual é um tipo de potencialidade que se concretiza no real. Ainda não é material, mas é real.

A realidade inclui, portanto, as duas dimensões, real e virtual, ao mesmo tempo que garante os processos de individuação que as expressam: a individuação de um tipo diferente de imagem em que uma multiplicidade de pontos de vista interage sem que haja um centro privilegiado que os unificaria e ordenaria.

Retomando o filme The Alphabet, o pesadelo de um sujeito aprendiz individua-se entre pinturas e sons apresentados nas imagens. O encontro das artes constituídas pela modulação não necessariamente modela a mente para um processo de reconhecimento; libera-se o Figural2 2 O Figural, para Rodowick (2001), tem a possibilidade de lidar com o gérmen do caos, da desordem na ordem. O que incita, o que gera disrupção da ideia da ordem. Não se trata apenas do traço, da relação entre presença e ausência, do discurso indiferente ou da imagem. É, sim, a força da diferença e o poder da virtualidade. Precisamos do Figural para ler o cotidiano e suas culturas. Diferentemente da figura e do figurativo, o Figural não é governado por uma oposição entre palavra e imagem; espacialmente e temporalmente, ele não é ligado à lógica das oposições binárias. no encontro entre essas imagens provocando a possível ação modulatória do pensamento de quem as percebe e convida a outra educação com as imagens. Essa oportunidade devolveria a aprendizagem ao que lhe é anterior a uma articulação necessária e faz vibrar paixões não determinadas pela linguagem ao dar a chance de intensificar sentimentos não psicologizados nos encontros com afetos sensíveis, que nos convidam a sentir diferentemente por conexões desejantes.

A problemática proposta por The Alphabet é que o sujeito não mais se constitui de molde a molde, se isso realmente alguma vez tivesse sido possível, e passa a sofrer um processo modulatório sem fim. Parece faltar ao currículo uma aposta maior na experiência de uma aprendizagem que se faça na imanência de um sujeito em devir, constituído no entre, e não nos polos. Ainda se pensa, com frequência, de forma a garantir um sujeito transcendente, com vista para o futuro, ao considerá-lo invariante ou que se possa prever sua variação. Mesmo quando se pensa a inclusão de diferença, esta é vista pela lógica da identidade, pela partícula ‘ou’: ou negro ou branco, ou normal ou anormal (em suas infinitas categorias).

Esse sujeito insinua-se, fractalmente, no filme experimental de David Lynch. Nele, o código alfabético não parece ser um problema para a aprendizagem ser retirada de uma articulação apenas útil, que visa produzir padrões de semelhança. Ao sermos afetados, e aqui apostamos nas forças das imagens artísticas para potencializar aprendizagens, poderíamos perceber e sentir diferentemente a força diagramática no currículo (AMORIM, 2020AMORIM, Antonio Carlos Rodrigues. Diagramas para um currículo-vida. Humanidades & Inovação, v. 7, p. 406-420, 2020. Disponível em: https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/2603. Acesso em: 20 out. 2022.
https://revista.unitins.br/index.php/hum...
) de outras apresentações estéticas no encontro com acontecimentos3 3 “ele [o acontecimento] é o que deve ser compreendido, o que deve ser querido, o que deve ser representado no que acontece” (DELEUZE, 2015, p. 152). Querer “alguma coisa no que acontece, alguma coisa a vir de conformidade ao que acontece” (Ibid., p. 152), esse é justamente o processo de síntese disjuntiva. Em todos os lances das singularidades abrem-se possibilidades diversas de efetuação: “o acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera” (Ibid., p. 152). , além da percepção ordinária dada por um estado de coisas. The Alphabet parece arrombar os códigos estabelecidos, mergulhar em meio à repetição para extrair o pathos sonoro, o som de uma harmonia monstruosa. Imagens e sons não se explicam, a personagem não retorna para a acomodação do molde, a sensação confunde a percepção ordinária podendo despertar afectos. São fugas da percepção ordinária por força dos encontros nos estados de coisas, em meio ao hábito de rotina recognitiva. Ao ser acometida por encontros notáveis, a personagem é tomada por uma percepção extraordinária derivada de um encontro afetivo que rompe com harmonia lírica e apresenta contrastes leves ou acentuados que se fazem em meio a uma zona de indiscernibilidade. e ajudam-nos a compor o pensamento que se constrói em meio a variáveis traços, cores, texturas, sons.

Em educação, há certo privilégio ao primeiro encontro [a rotina da recognição], principalmente pelo fato de ela estar habitualmente relacionada à tarefa das instituições e atravessada por um currículo tomado pelos jogos de identidade e reconhecimentos/analogias/comparação, e por causalidades históricas que busquem um sujeito consciente e que venha a compreender quem ele seja.

Porém, tendo Gilles Deleuze como intercessor, vislumbramos que não há certezas de como a aprendizagem se constrói em cada um. Há sempre o risco de uma aprendizagem rizomática (AMORIM e SCOTT, 2018aAMORIM, Antonio Carlos Rodrigues. SCOTT, David. Learning and the Rhizome: Reconceptualisation in the Qualitative Research Process. Magis (en línea), v. 11, p. 125-136. 2018a. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6718323. Acesso em: 20 out. 2022.
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), aberta ao acaso e às imprevisibilidades temporais; seus movimentos espraiam-se pelo mundo, sempre em devires, cujas respostas sempre poderão variar, não sendo possível antecipar-lhe os resultados e respostas.

As artes podem ter um papel importantíssimo nessa estética de vida complexa com que cada vivente compõe o drama de sua vida. Quando afetado por um encontro notável, sente-se forçado a pensar, pois a experiência artística pode vir a apresentar outros modos de sentir e perceber, em que a diferença apareça por intensificações das variáveis formas de percepções que podem ou não ser sentidas e que tomam a cada um singularmente.

Pelo método da dramatização (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. O método de dramatização. Trad. Luiz B. L. Orlandi. In: DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. 1. ed. São Paulo: Iluminuras, 2006.), o pensamento é pensado e vertido em conhecimento sempre em movimento e em devir, e a possibilidade do encontro com uma arte, que tem a modulação em sua composição, seria intensificada e poderia despertar outras potências de aprendizagem. De modo algum o sujeito está ausente desses dinamismos. “Mas os sujeitos que [os dinamismos] têm só podem ser esboços não ainda qualificados nem compostos, são mais pacientes do que agentes, únicos capazes de suportar a pressão de uma ressonância interna ou a amplitude de um movimento forçado” (Ibid., p. 116).

Uma aprendizagem que tenha a cognição constantemente atiçada pela invenção e que produza novas ideias e novas imagens. Não seria já esta uma ideia da arte como resistência aos modelos de vida comuns ao propor atiçar experiências? A vida como experiência estética complexa conecta-se muito bem ao pensamento que a toma como drama em meio ao turbilhão de encontros que possam construí-la em uma invenção constante, em um aprendizado permanente em/com afetos sentidos. A educação que tenha por base potencializar a vida passa sem dúvida pela experiência, e diferenças contrastantes são sentidas por complexas percepções sensíveis, potencializando a vida no encontro entre sujeitos e conhecimentos.

Conforme discutido em outro texto (Amorim, 2018bAMORIM, Antonio Carlos Rodrigues. Displacements between curriculum and experimental cinema studies. Práxis Educativa (UEPG, online), v. 13:3, p. 1025-1043, 2018b. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/327228649_Displacements_between_curriculum_and_experimental_cinema_studies. Acesso em: 20 out. 2022.
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), o movimento da educação, então, à semelhança do cinema experimental, poderia fazer dos acontecimentos um problema, tratar os encontros entre signos e corpos como oportunidades de criação/invenção e pulsão de novos problemas ao pensamento. Distante da acomodação, da equivalência e do etapismo que marca a aprendizagem escolar, os problemas extraem do tempo as verdades dos signos e suas forças vitais do sensível.

Na seção seguinte, focaremos no contraste como condição para que percepções subjetivas cresçam e se vertam entre experimentações de imagens e sons de um filme longa-metragem. Uma educação deixando-se nascer em uma corporeidade táctil, de percepção dispersiva e membranosa do ambiente, de um estar vivo com tais intensidades.

Sujeitos e(m) imagens, ou sobre a experiência do fora

“o sujeito persiste, mas já não se sabe onde”

Zourabichvili (2012ZOURABICHVILI, François. Deleuze: A Philosophy of the Event together with The Vocabulary of Deleuze, trans. Kieran Aarons, Edinburgh: Edinburgh University Press. 2012., p. 122)

O cinema não só nos apresenta a sensação como possibilidade de um pensamento artístico se expressar, que se faz como a própria obra, uma sensação que está além do organismo, fazendo a própria obra valer por si mesma; como também, ao se encontrar com a ciência, o cinema acaba criando suas próprias imagens sensoriais, imagens que artisticamente apresentam possíveis efeitos e intensificações entre sentidos. O nômade, com suas experiências do fora, como indica Gilles Deleuze, é um dos estratos do verbete P, de professor.

As primeiras cenas de Abel (2010), filme mexicano dirigido por Diego Luna, apresentam imagens nômades que enquadram um olho de um garoto alternadas com enquadres que mostram um caminhar de uma lesma; ou, de outro modo, poderíamos dizer que são imagens de enquadramentos que buscam compor uma sensação tátil. Além disso, tais cenas abrem brechas para que a imagem busque se conectar a uma outra temporalidade4 4 Temporalidade aqui como entrada na imagem-tempo, conceito deleuziano, habitando uma dobra em que as velocidades do caos estão momentaneamente pausadas. , uma imagem que devenha caracol, em sua lentidão e rastro tracejante. Há, seguramente, uma intenção de se criar e experimentar um tipo de relação entre os sentidos que de imediato coloca-nos a possibilidade de entrar em contato com outra percepção do sensível; busca-se tanto atingir a possível criação de uma percepção singular, através de relações contrastantes entre as imagens visuais e sonoras, como criar uma sensação tátil, aproximando-se de possíveis conexões entre sentidos sensoriais.

Esses enquadramentos iniciais de Abel (2010) apresentam uma imagem-infantil5 5 Conceituação originária da tese de doutorado de Marcus Novaes (2021): imagens individuadas por experimentações sonoras e visuais fazem derivar Figuras infantis em seus espaços fílmicos, potencializando-as continuamente entre as dobras que se constituem ao longo de várias obras fílmicas estudadas, dentre elas Abel (2010). Dobras que afetam as imagens-infantis com outras virtualidades, intensificando-as com sons e cores. voltada à criação artística e que deriva dos encontros entre afectos e perceptos que compõem a obra como bloco de sensações; afinal, o filme pensa por si mesmo, mas também volta a outra face para a ciência e um modo de criar imageticamente sentidos sensoriais intensificados fazendo a ciência devir arte.

Abel (2010) nos convida a aprender modos de nos encontrarmos com imagens que mostram toda a potência de uma criança com espectro autista de se conectar ao mundo sensorialmente, ou através de micro-percepções que podem devir um estímulo sensorial, ensinando-nos outras velocidades e apresentando uma imagem-infantil que também devirá, diferentemente, uma imagem-tátil, pelas conexões entre imagem-visual e imagem-sonora. Criam-se imageticamente, no filme de Luna (2010), encontros sensoriais intensivos, apresentando uma imagem-tátil diretamente ligada à intenção de se mostrar os efeitos de uma sensação mais fenomenológica, pois há a clara conexão com as respostas perceptivas em um indivíduo, no caso, uma percepção especial que uma criança com espectro autista poderia ter, quando afetada por esses encontros.

Então, se por um lado o filme se conecta à ciência e afirma conexões intensivas com os sentidos sensoriais, os quais cria imageticamente, também parece interessante apontar como comporá, pelas relações entre imagens, possibilidades de aprendermos como uma criança com espectro de autismo poderia perceber o mundo, mantendo entrelaçadas essas linhas que tramam relações entre a ciência e a criação artística através da modulação de imagens audiovisuais. Qual a potência de se criarem tais tipos de imagens? E por que o filme Abel (2010) necessita criá-las, para além da história que busca contar? Para tanto, faz-se importante saber um pouco mais sobre as possíveis relações do autismo e sua relação sensorial.

Segundo Katrien Van Heurck6 6 Entrevistamos a especialista em autismo em janeiro de 2021. Heurck também, generosamente, aceitou assistir a Abel e comentou conosco alguns aspectos para que pudéssemos realizar uma maior aproximação com o tema do autismo pelas imagens. , ortopedagoga belga e especialista em pessoas com espectro autista, há, em geral, uma característica nesse grupo de pessoas que passa pela dificuldade de concentração relacionada às percepções muito generalizadas, compõe-se com elas uma percepção mais aguçada, uma outra forma de perceber o mundo, mais sensível aos detalhes, às intensidades que compõem e modulam as relações. Por outro lado, as mudanças repentinas ou as interpretações de mundo que fogem à rotina ou ao hábito, o imprevisível que aparece e atravessa a rotina de uma vida, acabam lhes aborrecendo e dificultando uma resposta, já que se conectam à percepção por outro filtro, um tipo de filtro que funciona como um modulador diferencial pela intensidade sensorial recebida, pois, em geral, as pessoas com espectro autista necessitam lidar/lutar/romper com figuras de representação mais repetitivas para compor suas zonas calmas em meio às forças sem se sentirem pressionadas e, assim, poderem estar atentas às diferentes durações e intensidades sem se ferir.

Em Abel (2010), há a criação de uma imagem-infantil que é pura experimentação e criação de sensações, mas que também mostrará através da figura do menino, protagonista do filme, as dificuldades que as pessoas com espectro autista têm quando atravessadas por muitos estímulos, como a ampliação sonora dos ruídos, justamente por apresentarem essa percepção especial que as afeta por sentir e perceber minuciosamente os detalhes, como também as atrapalha ao receber muitas informações juntas, pois, claro, é difícil ficar concentrado por muito tempo quando se é atravessado e afetado intensamente por forças de todos os graus.

O filme de Luna, Abel (2010), apresentará o dobrar e desdobrar de uma imagem-infantil que devém autista, mostrando que tanto para sua face conectada a uma subjetividade exprimida pelo personagem Abel, como para sua face conectada à experimentação, em suas individuações intensivas, criar-se-ão momentos de aceleração e lentidão, compondo um modo singular de atravessar o caos, um caminhar bordejante sobre uma linha que separa o dentro e o fora, como bem apontou Deligny (2015DELIGNY, Fernand. O aracniano e outros textos. Trad. Lara de Malimpensa. 1. ed. São Paulo - SP: n-1 Edições, 2015.). Assim, a imagem-infantil, em Abel (2010), bordeja uma zona efêmera entre acelerações e repousos, criando um acorde7 7 Fernand Deligny (2015), ao falar sobre a criações artísticas de crianças autistas, experimenta pensar variações etimológicas para verbo accorder (finar, acordar): palavra que deriva, talvez, não se sabe muito bem, de couer (coração) ou de corde (corda). Mas então acordar teria de significar criar um acorde, não um consentimento, uma conformidade, mas antes uma discordância da qual vibrarão as relações de frequência. de uma infância que se entrelaça entre um pensar pelas sensações e a exigência de uma afinação contínua de uma linha metamórfica que se fia e desfia ao longo da trama, na qual esse Outro se equilibra, transmutando-se em uma imagem-autista que bordejará o entre da possibilidade de respirar e a sempre possível queda em um desespero asfixiante, um acorde que não exprime um consentimento, mas que se afina em uma discordância da qual vibrarão as relações de frequência com as quais um menino afirma-se e se afina no mundo. Em Abel (2010), seria difícil afirmarmos um pensamento da infância que se fizesse pelo jogo ou brincadeira; passa-se mais pela habilidade e inteligência de um menino de potencializar a vida tramando e habitando outros lugares, dentro de espaços que ele percebe à sua maneira, fazendo ruir a representação por uma falsificação dela mesma, ensinando-nos tanto a sentir as diferentes intensidades do mundo, contrastando humor e drama, como a perceber as diferentes velocidades entre aceleração e lentidão.

Abel (2010) fará perceptível que, em relação às pessoas com espectro autista, não se trata exatamente de dizer que tendem a ter dificuldades de concentração para determinadas tarefas, até porque o grau de autismo pode variar bastante, passando mais por fazer sensível a conexão diferencial que uma criança estabelece com o mundo, sendo atravessada constantemente pelas intensidades que afetam os sentidos sensoriais e que lhe dificultam compor filtros que diagramem essas forças de acordo com uma percepção comum. Ademais, se é verdade que uma criança com espectro de autismo tende a gostar da repetição, isso acontece devido a um grande interesse pelos detalhes: essa criança sabe que se pode levar uma vida para conhecer o caminhar de um caracol ou que é necessário compor uma outra modulação do olhar para que se consiga criar as conexões cerebrais necessárias que captem o ritmo das pequenas durações que habitam, por exemplo, um formigueiro. Ora pendendo para o lado da dobra, ora para o lado do caos, o menino Abel sente e percebe, a seu modo, forças invisíveis e inaudíveis, não perceptíveis a uma percepção comum. Daí a dificuldade de se passar a uma percepção generalizada, pois esta árdua tarefa de ser tomado por sensações que lhe intensificam continuamente um sentir por múltiplos formigamentos faz essa criança habitar o mundo com um olhar de pintor, que nunca esgota a infinita variação que se apresenta à percepção, conectando-se inventivamente aos detalhes, descobrindo a impossibilidade de capturar todas as diferenciações, corpóreas e incorpóreas, um problema gerado pela relação intensiva com o sensível e que também se impõe a grande parte dos artistas.

Essa infinita variação que se apresenta a uma percepção especial constitui o problema que se impõe a Luna (2010) para criar imageticamente as intensidades que afetam sensorialmente ao menino Abel, fazendo o diretor mexicano ter que compor relações entre imagens que oscilam acelerações e repousos conforme a exigência de diferentes percursos do personagem no filme. Se a primeira cena é a que cria a percepção aos detalhes de uma lentidão produtiva desse caminhar de caracol, produzindo intensivamente uma imagem-infantil que devém, sensorialmente, uma imagem-tátil, composta de forma lenta, rastejante e pegajosa, e que exprimirá um modo do menino se conectar ao mundo - quando ainda está internado em uma instituição psiquiátrica -, sua percepção fora desse local encontrará outras velocidades, como o caso que abordamos rapidamente no parágrafo acima e que diz respeito ao seu encontro com um formigueiro.

Essa segunda cena mostrará como a mudança de ambiente lhe afeta a percepção, uma imagem-percepção que é construída no filme após Luna (2010) mostrar Abel passando por outros locais com os quais teve um estranhamento, como a casa da família, com suas variáveis relações entre os membros que a habitam, e a escola, local em que será mostrada essa percepção acelerada das composições intensivas que as formigas estabelecem com a terra. Então, em um certo local da escola, em meio às relações desconhecidas e com as quais não sabe lidar, Abel se aproxima do irmãozinho, que está junto a outras duas pessoas, um pai e um filho, passando a observar, junto a eles, a composição rizomática e caótica, constituída pelas pequenas durações que compõem um formigueiro. Luna (2010) criará, nesse momento, uma outra percepção visual subjetiva de Abel, que será composta de forma bastante acelerada pelas imagens-movimento, mas com o uso da mesma música calma e cadenciada que foi apresentada na cena inicial do filme. A imagem-sonora, então, será contrastada ao caos visual, estabelecendo um certo equilíbrio; ou seja, mesmo em meio à percepção de intensas velocidades das relações não habituais, Abel ainda se mantém controlado, observando a composição do mundo com um certo estranhamento, mas sem cair em desespero.

Esse é o modo como o diretor realiza oscilações entre as criações imagéticas sensoriais, conectadas, principalmente, à percepção subjetiva de Abel, e que ajudam a modular a variação da figura do garoto no filme, fazendo sensível como as mudanças de ambiente podem afetá-lo, sobretudo, quando ele passa a ter que habitar um espaço com muitas informações novas. Entre contrastes das percepções subjetivas do menino, Abel (2010) apresenta-se como um pensamento fílmico que se compõe intensivamente afetado pelas mudanças de meio, fazendo contrastar percepções lentas referentes a quando o garoto estava internado na instituição psiquiátrica, com percepções aceleradas, buscando fazer sensível a excitação de estar em um ambiente desconhecido, um modo do pensamento sensorial fílmico de relacionar as afecções do menino às mudanças que a vida lhe impõe.

Abel (2010) nos ensinará que o pensamento necessita tempo para pensar, como afirmará a necessidade de se compor uma relação com o sensível para poder perceber a apresentação das forças sem deixar de mostrar a dificuldade de se entrar em meio ao caos para compor uma zona de afecção, em que, minimamente, seja possível controlar os efeitos das forças que podem afetar um corpo. Assim, o filme de Luna (2010) cria uma imagem-infantil que devém imagem-autista, criando percepções singulares e mostrando como as forças dissolvem relações baseadas em representações. É um cinema que busca localizar acontecimentos em corpos que estão sujeitos a uma ferida que duplica as cadeias causais que os submetem a um presente irreversível.

Para tanto, as imagens do filme coagulam um sujeito infantil que está ativo para afirmar o acontecimento que ocorreu em sua vida. “Minha ferida existia antes que eu; nasci para a encarnar” (DELEUZE, 2003, p. 151), são palavras de Gilles Deleuze para um sujeito a-singular que se converte em quase causa do que se produz em nós. Como as imagens e sons do cinema contribuem para essa atividade de um “sujeito que enfrenta os desafios e obstáculos de uma situação particular que se opõe à verdade potencial de um acontecimento no qual estão comprometidos?” (LEON, 2021, p. 75). É necessário retomar tanto as efetuações das virtualidades quanto a ideia do singular para deslocar o autismo como um hábito e transladá-lo para o devir.

Como apontamos, a infância singular de Abel, na narrativa fílmica, rompe naturalizações de modelos sociais, como o da configuração da família nuclear tradicional, mas também acabará por desnaturalizar o brincar como essência infantil. Sobre jogar, Abel não deixa de fazê-lo, mas será difícil dizer que seja algo que realmente diverte o garoto. Mais que uma forma de entendimento, ele o faz para manter uma relação de equilíbrio entre as conexões de forças que são diagramadas para dentro de seu ambiente. Em uma cena em que seu médico vem visitá-lo em casa, quando o menino já adotou a identidade paterna, os dois jogam um jogo de dados enquanto conversam. Nessa cena, seria possível percebermos mais os lances de dados do acaso do que uma possível afecção do menino pelo prazer de jogar. Como médico que não acreditava que o menino pudesse se sair “bem”, fora do hospital, ficará bastante surpreendido pela mudança do garoto. E se o jogo fosse visto como uma tentativa de se fazer uma análise comportamental do menino, Abel é que desmontará as relações estereotipadas que o especialista já tinha fixado sobre ele: o menino comporá uma relação com o jogo como se fosse um momento para se tratar de questões práticas, até superficiais, de uma conversa entre adultos em que será ele que arguirá o médico sobre como está sendo cuidado o espaço do hospital, deixando claro que já não é o mesmo menino que saiu de lá.

Abel acabará mostrando que os tidos como diferentes não deixam de seguir diferindo, desconstruindo uma imagem fixa do pensamento que representam os autistas dentro de moldes. É uma concepção subtrativa da subjetividade por intervalos que se produzem quando podemos ter um novo enquadramento, uma nova linha de perspectiva. A imagem-infantil em Abel (2010) é uma diferenciação complexa e intervalar entre sensações e percepções singulares, afirma ao mundo a efemeridade de sua representação.

Conexões díspares e modulações criativas: propriedades para (dis)formar

Em Abel (2010), o pensamento fílmico constitui-se sensorialmente, cria-se um personagem pedagogo que busca nos fazer ver detalhes e ouvir a composição das forças que os envolvem. Como Abel sente as forças que compõem as relações, a personagem busca também mostrar-nos as inconsistências das relações fixas, bem como suas possibilidades de mudança, sobretudo quando um termo é deslocado ou outro é inserido no lugar, pois as relações sempre estão em devir e podem variar.

O filme de Luna (2010) cria imagens-sensoriais que escapam ao hábito de nos relacionarmos com a apresentação dos efeitos de sentidos no cinema; bem como há a criação de imagens táteis, desde um ponto de vista de uma criança com espectro autista, mas também, nessa obra, criam-se imagens relacionadas tanto a uma percepção de um surto, como uma imagem sensorial que mostra a mudança dessa percepção ao se ingerir um comprimido, criando imageticamente a percepção dos efeitos químicos de uma droga.

Abel (2010), como muitos outros filmes relacionados às crianças, cria intensivamente imagens individuadas por experimentações sonoras e visuais e faz derivar figuras infantis em seu espaço fílmico, potencializando-as continuamente entre as dobras que se constituem ao longo da obra. Dobras que afetam o que aparece - as imagens-infantis - com outras virtualidades, intensificando-as com sons e também com cores. Dessa deriva de imagens e seus agenciamentos produzem-se continuamente as personagens, que ganham qualidades e se diferenciam extensivamente, o que chamamos de subjetividades, mas apenas como condição de saber que são atualizações desses processos de afecção, de individuação das imagens quando prolongadas extensivamente, atualizando-se na narrativa e ganhando qualidades por relações entre imagens-movimento.

É bom lembrar que a imagem não é um sujeito, nem representa nada, ela é o que aparece. Nesse sentido, a imagem não precisa ser percebida visualmente, ela aparece por inúmeras conexões: sonoras, táteis, olfativas e gustativas. Por isso apresentamos a imagem-infantil pelas relações entre imagens-visuais e imagens-sonoras, pois ela também está imbricada pelas modulações dos sons, sejam os ruídos, as músicas ou os silêncios, que tanto as intensificam como lhe conferem qualidades. Desse modo, a imagem-infantil será tanto fruto de modulações intensivas das imagens, de suas cores e seus sons, que resulta de processos de criação e experimentação entre as próprias qualidades das imagens com a intenção de potencializar as sensações, como poderá atualizar-se e compor figuras infantis que serão moduladas, extensivamente, ao longo dos filmes, criando-se personagens que se diferenciam em qualidades, que aprendem e nos ensinam a ver e ouvir signos díspares que aparecem entre atritos, choques e contrastes das relações compostas por dois diferentes circuitos de imagens, um circuito das relações lógicas e outro das conexões aberrantes (LAPOUJADE, 2015LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 Edições, 2015.).

A imagem-infantil distancia-se da relação com um sujeito. Ela constitui-se como um agenciamento entre vibrações e forças, ao menos na conexão filosófica que atravessa este texto. Como discute Sauvagnargues (2013SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze and Art. Translated by Samantha Bankston. 1. ed. London/New York: Bloomsbury Publishing PLC, 2013.), a imagem não é uma representação da consciência (um dado psicológico), nem uma representação da coisa (a intenção de um objeto). A filósofa francesa conta-nos que, com Deleuze, a imagem será tomada em referência a Bergson, apresentando-se como tudo que se define como um agenciamento de movimentos e vibrações afetivas. Para pensar a relação da imagem com o cinema, Deleuze escolhe Bergson como intercessor, sem deixar de estar conectado a Simondon e Espinosa, como aponta Sauvagnargues (2013, p. 171): “um agenciamento de movimentos e vibrações afetivas, que Deleuze chama de ‘imagem’, em referência a Bergson. Definida como tal, a imagem lembra a hecceidade8 8 A hecceidade traz consigo uma nova teoria do sujeito que exige que ela seja localizada no plano das forças e não das formas. Assim, nessa perspectiva é absolutamente inútil opor a hecceidade ao sujeito, porque mesmo que a maioria das concepções do sujeito realmente adote um modo transcendente, na realidade o sujeito é formado por relações de força e pela imagem que temos dele, é uma força subjetivada. Em fato, sujeitos, objetos, coisas e substâncias são hecceidades. (SAUVAGNARGUES, 2013, p, 163). de Simondon e a etologia de Spinoza: uma relação de forças sensíveis emitidas por um afeto, cuja individuação é perfeitamente realizada sem estar ligada à substância”.

Definida assim a imagem, faz-se possível entendermos que a imagem-infantil, quando voltada a uma subjetividade que se atualiza na tela, existe por si mesma, em sua efemeridade e conexão sonora e visual; trata-se de uma hecceidade que diagrama em si mesma diferentes conexões de forças. Fica também difícil atribuir um princípio ou um fim às imagens-infantis, já que são germinações de conexões diferenciais em um meio fílmico nesse processo complexo e metaestável que produz imagens, imagens que aparecem sem dar vida a um sujeito, mas que modulam uma figura infantil que se constitui como transversal e se compõe diferencialmente na narrativa fílmica.

Além disso, a imagem-infantil vem sempre recoberta pelas dobras sonoras que envolvem a personagem mostrada pelas qualidades e afecções visuais, constituindo um duplo dessa personagem, ou seja, cria-se, simultânea e diferentemente, essa personagem pelo ritmo, pela música e pelo silêncio, conferindo-lhe outras afecções e qualidades, como nas cenas em que Abel percebe o caracol e o formigueiro, em que uma mesma música acaba por criar uma relação contrastante e que intensifica e diferencia tanto as percepções visuais do personagem, como ajuda a modular estados psicológicos distintos, quando o menino é exposto a diferentes ambientes.

Em Abel (2010), a personagem infantil devém uma espécie de pedagogo para nos ensinar a ver e ouvir as imagens apontando diferentes processos pelos quais o pensamento poderia passar, apresentando também a impossibilidade de se atribuir uma essência ou qualidades inerentes às infâncias, sobretudo fora dos meios que as afetam e modulam. Mas, seguramente, há um comum, tanto às imagens como às infâncias: justamente a possibilidade de criação e invenção para fora dos padrões das relações lógicas, seja pelos jogos sem regras, pelas brincadeiras ou por fazer ver detalhes das forças que recobrem o mundo.

As subjetividades infantis criadas imageticamente, essas crianças pedagogas moduladas visual e sonoramente, acabam fazendo ver e ouvir, através das percepções e sensações, que há um conectivo (de) formação muito forte entre o plano das imagens e o campo da educação. Pois formar-se e educar-se abre possibilidade de produzir uma afecção ao outro: uma educação imagética que apresenta a aprendizagem como algo que é criado para alimentar sensivelmente o outro e com ele, fazendo ver as dores, as injustiças, as alegrias, as resistências, os detalhamentos do mundo; enfim, que a aprendizagem passa pela sensibilidade, por deixar-se afetar pelas forças e, assim, poder criar, resistir e afirmar a vida.

Imagens do cinema: experimentações como ações para pedagogias outras

As forças ativa e a reativa, na educação, não se encontrariam em lugares definidos. Neste sistema de ações e reações da própria matéria imagética, sujeitos e conhecimentos nas e pelas imagens ganham um sentido bergsoniano de aparição, de forma que não precisam ser vistos/percebidos para que metamorfoseiem o real, mas “existem em si mesmos como um tremor vibração ou movimento” (SAUVAGNARGUES, 2013SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze and Art. Translated by Samantha Bankston. 1. ed. London/New York: Bloomsbury Publishing PLC, 2013., p. 171).

Isso quer dizer que, em vez de pensar em um sujeito centrado e consciente, apostaríamos em pensar em um agente ou fruto dos agenciamentos heterogêneos e em multiplicidade. Tanto as forças que emanam desse sujeito quanto as do conhecimento são tanto ativas quanto reativas. Segundo Lapworth (2021LAPWORTH, Andrew. Responsibility before the World: Cinema, Perspectivism and a Nonhuman Ethics of Individuation. Deleuze and Guattari Studies, v. 15, n. 3 p. 386-410, 2021. Disponível em: https://www.euppublishing.com/doi/abs/10.3366/dlgs.2021.0447. Acesso em: 20 out. 2022.
https://www.euppublishing.com/doi/abs/10...
), a imagem cinematográfica descobre a sua função ética na multiplicação de “pontos de vista” que já não são fundamentados pelo sujeito fenomenológico, mas que, em vez disso, presidem à individuação de modos de pensar, sentir e relacionar-se mais intensos.

Foi isso que consideramos ao apresentar e discutir o plano de imanência das imagens, em suas possíveis conexões e afecções entre essas aparições sonoras e visuais. Isso se conecta intensamente ao campo da educação. Sobretudo, no que diz respeito à aprendizagem. No caso das imagens-infantis, elas podem nos fazer ver outras percepções e sentir outras sensibilidades a partir de personagens-crianças que fazem proliferar imagens que se chocam com experimentações e acasos, devindo pedagogas, mesclando-se em uma pedagogia imagética e imanente, uma pedagogia cristal que apresenta um povoamento de virtualidades na tela, por onde as imagens afetam-se entre si. Tais dimensões aproximam-se da discussão de Soares-Ribeiro (2020), ao analisar ações docentes a partir da letra P, de professor, no abecedário proposto por Gilles Deleuze: o devir, a experiência do fora (como fazem os nômades), as conexões rizomáticas, os agenciamentos de práticas complexas, a docência nômade, a performatividade docente expressiva e artística, bem como a “desterritorialização no ofício docente, permitindo a renovação dos acontecimentos no espaço da sala de aula” (SOARES-RIBEIRO, 2020, p. 102).

Poderíamos também dizer que as imagens aprendem umas com as outras nessas conexões afetivas, criando novas relações entre signos ao se entrelaçarem a dois diferentes regimes de imagens, imagens-movimento e imagens-tempo, um entrelaçamento que cria um terceiro e o faz atualizar-se como um regime das imagens aberrantes. Esse sentido virtual de coexistência expresso pela pedagogia cristal (ou das imagens-cristal9 9 Como o virtual se faz perceber em signos sonoros e ópticos; não são o tempo, mas, por meio delas, pode-se ver o tempo não cronológico que encerra a poderosa vida não orgânica do mundo, em que os signos se tornam independentes dos objetos que os emanam (DELEUZE, 2018). ) é

diferente dos entendimentos mais convencionais de coexistência que encontramos no discurso ético, onde muitas vezes é enquadrado em termos da aproximação de corpos que, no entanto, permanecem separados e identificáveis, mantendo as suas identidades molares estabelecidas. Em contraste, a imagem cristalina segue uma lógica de indiscernibilidade e não de reconhecimento” (LAPTWORTH, 2021, p. 398).

O indiscernível é uma questão ética importante para a formação docente para uma educação dos deslocamentos que vimos propondo neste artigo.

As personagens infantis que saltam desse regime aberrante de imagens, quando conectadas à proposição deleuziana sobre o papel das personagens fílmicas - apresentadas em A Imagem-Tempo (DELEUZE, 2018DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo - Cinema 2. Trad. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2018.), provavelmente tendo Rimbaud como intercessor -, devêm visionárias e, assim, buscam nos fazer ver algo que percebem de aterrador em suas vidas, uma percepção que as retira das relações cotidianas e habituais, buscam ionizar as acelerações moleculares, para que nossos olhos possam ver-sentir junto a elas, olhos que precisam devir táteis para perceber as imagens, pois são percepções que estão no tempo. Dito de outro modo, com essas personagens e suas buscas no tempo, podemos sentir perceptos e afectos que atritam entre si, experimentando-se criativamente em conexões livres, abertas ao acaso, fazendo as relações entre imagens devirem conexões aberrantes, que se compõem de forma dissimétrica, estabelecendo um vínculo necessário com acidentes, acasos e improbabilidades, podendo, assim, dar vida ao ato de criação. O cinema sabe que a educação se potencializa com essas associações entre disparidades livres, pois o pensamento precisa do acaso e dos afectos para sentir, aprender e poder criar. As imagens-infantis - quando conectadas às sensações que ajudam a modular no meio fílmico, ao buscarem nos fazer leves para entrar em uma outra percepção, por onde sairia o impensável do pensamento, o impossível do possível - sentem que seu devir pedagogo acaba por desmentir a pretensão moral do dizer “você tem que saber isso ou aquilo” ou, ainda, mostram a aberrância do sempre duvidoso critério avaliativo, que acaba por selecionar as “melhores” respostas, ou as soluções já dadas e que reificam sabedorias duvidosas.

Os cineastas que criam essas imagens nos ajudam a apostar na educação que busca criações com e entre conhecimentos, e não apenas ao jogar nos métodos das mesmas verdades que fariam as imagens se tornar clichês e perderem suas potências de diferenciação. Enfim, o cinema pode fazer vento às práticas docentes e soprar suas qualidades de criação, fazendo surgir outros possíveis às aprendizagens. Desse modo, fazem com que sujeitos e conhecimentos busquem no tempo, em um ainda-aqui-e-já-passado, ainda-por-vir-e-já-presente (ZOURABICHIVILLI, 2004, p. 19), uma virtualização de um sentido que potencialize as ações docentes e não as reduza, por exemplo, às formatações pré-estabelecidas, dando-lhes vida informe em uma luta permanente na qual artes, ciências e filosofias sejam forças para a Educação sentir-existir reexistindo.

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  • GARCÍA, Amanda Núñez. Hybridising Knowledge: Some Considerations on the Epistemology of Contamination in the Works of Deleuze and Serres and Its Reception in Bio Art. Deleuze and Guattari Studies, v. 14, n. 2, p. 299-318, 2020. Disponível em: https://www.euppublishing.com/doi/abs/10.3366/dlgs.2020.0403 Acesso em: 20 out. 2022.
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  • GIL, José. A imagem-nua. In: GIL, José. A imagem-nua e as pequenas percepções. Estética e Metafenomenologia. 2. ed. Lisboa: Relógio D´Água, 2005. p. 87-118.
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  • NOVAES, Marcus Pereira. A potência do contraste na cena dramática. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de Campinas, Campinas, 2014.
  • NOVAES, Marcus Pereira. Ionizações de Sentidos e infâncias em Cinematografias Latinoamericanas. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de Campinas, Campinas, 2021.
  • NOVAES, Marcus Pereira; Amorim, Antonio Carlos Rodrigues de. (2021). Uma Imagem-Contraste: a ironia entre disjunções sonoras e visuais. APRENDER - Caderno De Filosofia E Psicologia Da Educação, n. 25, 196-211, 2021. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/aprender/article/view/8945 Acesso em: 20 out. 2022.
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  • RODRIGUES, Ana Lúcia Aquilas. Impacto de um programa de exercícios no local de trabalho sobre o nível de atividade física e o estágio de prontidão para a mudança de comportamento. 2009. Dissertação (Mestrado em Fisiopatologia Experimental) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
  • RODOWICK, David N. Reading the figural, or, philosophy after the new media. Duke: Duke University Press, 2001.
  • SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze and Art. Translated by Samantha Bankston. 1. ed. London/New York: Bloomsbury Publishing PLC, 2013.
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  • ZOURABICHVILI, François. Deleuze: A Philosophy of the Event together with The Vocabulary of Deleuze, trans. Kieran Aarons, Edinburgh: Edinburgh University Press. 2012.

Filmografia

  • ABEL. Direção: Diego Luna. México: Canana Films, Mr. Mudd, Fondo de Inversión y Estímulos al Cine (FIDECINE), Televisa S.A. de C.V. 2010. 1 DVD (82 min).
  • THE ALPHABET. Direção: David Lynch. Estados Unidos: Pensylvania Academy of Fine Arts. 1968. 4min. https://vimeo.com/6217493
    » https://vimeo.com/6217493
  • 1
    Confira a entrevista em: http://www.interviewmagazine.com/film/david-lynch/#_. Acesso em: 11 maio. 2022.
  • 2
    O Figural, para Rodowick (2001), tem a possibilidade de lidar com o gérmen do caos, da desordem na ordem. O que incita, o que gera disrupção da ideia da ordem. Não se trata apenas do traço, da relação entre presença e ausência, do discurso indiferente ou da imagem. É, sim, a força da diferença e o poder da virtualidade. Precisamos do Figural para ler o cotidiano e suas culturas. Diferentemente da figura e do figurativo, o Figural não é governado por uma oposição entre palavra e imagem; espacialmente e temporalmente, ele não é ligado à lógica das oposições binárias.
  • 3
    “ele [o acontecimento] é o que deve ser compreendido, o que deve ser querido, o que deve ser representado no que acontece” (DELEUZE, 2015, p. 152). Querer “alguma coisa no que acontece, alguma coisa a vir de conformidade ao que acontece” (Ibid., p. 152), esse é justamente o processo de síntese disjuntiva. Em todos os lances das singularidades abrem-se possibilidades diversas de efetuação: “o acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera” (Ibid., p. 152).
  • 4
    Temporalidade aqui como entrada na imagem-tempo, conceito deleuziano, habitando uma dobra em que as velocidades do caos estão momentaneamente pausadas.
  • 5
    Conceituação originária da tese de doutorado de Marcus Novaes (2021): imagens individuadas por experimentações sonoras e visuais fazem derivar Figuras infantis em seus espaços fílmicos, potencializando-as continuamente entre as dobras que se constituem ao longo de várias obras fílmicas estudadas, dentre elas Abel (2010). Dobras que afetam as imagens-infantis com outras virtualidades, intensificando-as com sons e cores.
  • 6
    Entrevistamos a especialista em autismo em janeiro de 2021. Heurck também, generosamente, aceitou assistir a Abel e comentou conosco alguns aspectos para que pudéssemos realizar uma maior aproximação com o tema do autismo pelas imagens.
  • 7
    Fernand Deligny (2015), ao falar sobre a criações artísticas de crianças autistas, experimenta pensar variações etimológicas para verbo accorder (finar, acordar): palavra que deriva, talvez, não se sabe muito bem, de couer (coração) ou de corde (corda). Mas então acordar teria de significar criar um acorde, não um consentimento, uma conformidade, mas antes uma discordância da qual vibrarão as relações de frequência.
  • 8
    A hecceidade traz consigo uma nova teoria do sujeito que exige que ela seja localizada no plano das forças e não das formas. Assim, nessa perspectiva é absolutamente inútil opor a hecceidade ao sujeito, porque mesmo que a maioria das concepções do sujeito realmente adote um modo transcendente, na realidade o sujeito é formado por relações de força e pela imagem que temos dele, é uma força subjetivada. Em fato, sujeitos, objetos, coisas e substâncias são hecceidades. (SAUVAGNARGUES, 2013, p, 163).
  • 9
    Como o virtual se faz perceber em signos sonoros e ópticos; não são o tempo, mas, por meio delas, pode-se ver o tempo não cronológico que encerra a poderosa vida não orgânica do mundo, em que os signos se tornam independentes dos objetos que os emanam (DELEUZE, 2018).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2022
  • Aceito
    14 Out 2022
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