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Escolarização, adolescência e a ubiquidade do entretenimento: práticas curriculares para o Ensino Médio no Brasil

RESUMO

O presente estudo busca descrever os deslocamentos nas práticas curriculares direcionadas escolarização de adolescentes no sul do Brasil. Ao interrogar pela infraestrutura dessas práticas, foram descritos os propósitos formativos, as racionalidades orientadoras e as disposições formativas que reelaboram o conceito de aula. O corpus empírico que referenciou este estudo é constituído por um conjunto de oito entrevistas episódicas realizadas com professores e coordenadores pedagógicos que atuam no Ensino Médio. Em uma sociedade em permanente transformação, na qual as subjetividades destes estudantes e suas relações com a escola recebem um novo conjunto de investigações, os modelos de inovação educativa que são intensamente difundidos estão alicerçados em processos de estetização pedagógica. Neste contexto, pode-se concluir que as pedagogias emergentes para a escola dos adolescentes, especificamente no Ensino Médio, são regidas por duas racionalidades orientadoras: uma atrelada à gestão das aprendizagens na direção do desempenho em testes padronizados, outra sintonizada com estratégias criativas, interativas e divertidas com foco na ubiquidade do entretenimento.

Palavras-chave:
Escolarização; Ensino Médio; Entretenimento; Adolescência; Brasil

ABSTRACT

The present study seeks to analyze the changes in curricular practices aimed at the schooling of adolescents in southern Brazil. When questioning the infrastructure of these practices, the training purposes, the guiding rationalities and the training provisions that re-elaborate the concept of class were described. The empirical corpus that referenced this study consists of a set of eight episodic interviews carried out with teachers and pedagogical coordinators who work in high school. In a society in permanent transformation, in which the subjectivities of these students and their relations with the school receive a new set of investigations, the models of educational innovation that are intensely disseminated are based on processes of pedagogical aestheticization. In this context, it can be concluded that the emerging pedagogies for teenagers’ schools, specifically in High School, are governed by two guiding rationales: sometimes linked to the management of learning towards performance on standardized tests, sometimes in tune with creative, interactive strategies and fun with a focus on the ubiquity of entertainment.

Keywords:
Schooling; High school; Entertainment; Adolescence; Brazil

Introdução

O entretenimento escapa, afora, àquela limitação temporal e funcional. Ele não é mais “episódico”, mas sim se torna, por assim dizer, crônico ( HAN, 2019 HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento: uma desconstrução da história da paixão ocidental. Petrópolis: Vozes, 2019. , p. 202).

Está em andamento, desde o final do ano de 2016, uma reforma curricular do Ensino Médio no Brasil. Essa reforma, conduzida inicialmente por meio de uma Medida Provisória assinada pela Presidência da República, foi materializada na Lei n. 13.415/2017 e na publicação da versão definitiva de nosso currículo nacional nomeado como Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A referida reformulação, em linhas gerais, poderia ser sistematizada em três grandes direcionamentos, quais sejam: a) a organização de itinerários formativos baseados nas áreas do conhecimento, flexibilizando o currículo a partir das escolhas dos estudantes; b) a ampliação do tempo de permanência dos adolescentes e jovens na escola; c) a ênfase no desenvolvimento de modelos de educação integral, de caráter holístico, baseados em competências cognitivas e socioemocionais. Acompanha esses direcionamentos uma ênfase na promoção de metodologias diferenciadas aos perfis dos estudantes, a busca por arquiteturas curriculares inovadoras e uma centralidade do diálogo permanente com as juventudes.

A despeito do percurso pouco democrático de sua implementação, considerando a baixa participação dos estabelecimentos de ensino, dos estudantes e dos profissionais da educação no processo de tomada de decisão, precisamos reconhecer que a referida reforma curricular avança na composição de modelos de desenvolvimento curricular mais abertos e capazes de sintonizarem-se com as demandas contemporâneas. A partir do texto normativo da BNCC, toma-se como ponto de partida uma noção ampliada e plural de juventude, o que implica em “organizar uma escola que acolha as diversidades e que reconheça os jovens como seus interlocutores legítimos sobre currículo, ensino e aprendizagem” (BRASIL, 2018, p. 463). Noções como protagonismo juvenil, projetos de vida e itinerários formativos, então, passam a integrar uma nova gramática curricular para a escolarização juvenil no Brasil.

Para a implementação destes conceitos, o referido documento normativo aposta nas possibilidades curriculares derivadas da investigação e da intervenção educativas, apresentando aos estudantes o mundo como um “campo aberto” para a compreensão (BRASIL, 2017). Em linhas gerais, é atribuída centralidade para a capacidade de escolha dos adolescentes na definição de seus percursos formativos por meio da oferta de itinerários que atendam aos seus interesses, seja na perspectiva do aprofundamento acadêmico, seja no âmbito da formação técnica e profissional. As Diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio, publicadas em versão atualizada no final do ano de 2018, asseveraram a necessidade de uma renovação dos currículos e do tratamento metodológico desenvolvido nesta etapa formativa.

O currículo deve contemplar tratamento metodológico que evidencie a contextualização, a diversificação e transdisciplinaridade ou outras formas de interação e articulação entre diferentes campos de saberes específicos, contemplando vivências práticas e vinculando a educação escolar ao mundo do trabalho e à prática social e possibilitando o aproveitamento de estudos e o reconhecimento de saberes adquiridos nas experiências pessoais, sociais e do trabalho (BRASIL, 2018, art. 7o).

Assim, o Ensino Médio brasileiro foi direcionado para um amplo processo de diversificação das trajetórias formativas e de expansão de arquiteturas curriculares centradas em metodologias criativas e inovadoras. A escola dos adolescentes e jovens, em linhas gerais, começa a ser mobilizada a partir daquilo que caracterizamos como uma “conexão produtiva entre estetização pedagógica, aprendizagens ativas e soluções didáticas” (SILVA, 2019SILVA, Roberto Rafael Dias da. Customização curricular no ensino médio: elementos para uma crítica pedagógica. São Paulo: Cortez, 2019., p. 108). A organização destas novas arquiteturas, à luz dos arranjos do capitalismo contemporâneo, permite com que o conceito de “aula” seja reposicionado: ora situado em aproximação à gestão das aprendizagens, ora vinculado às estratégias interativas delineadas pelas possibilidades do entretenimento. As novas pedagogias para as escolas dos adolescentes brasileiros, sob esta perspectiva, trazem as marcas do “entretenimento crônico” (HAN, 2019HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento: uma desconstrução da história da paixão ocidental. Petrópolis: Vozes, 2019.).

Cabe reiterar que experimentamos, contemporaneamente, um renovado interesse pelas possibilidades de promover inovações nos processos de escolarização de adolescentes e jovens. Nossas preocupações, no âmbito deste estudo, não estavam em produzir oposição a estes modelos, uma vez que também defendemos a composição de uma agenda curricular mais inovadora e democrática mobilizada por novos modelos de governança escolar. A ênfase deste estudo encontra-se em descrever os deslocamentos nas práticas curriculares na escola dos adolescentes e jovens, bem como explicitar uma preocupação com os excessos oriundos de uma forma escolar ancorada na busca pelo entretenimento. Nossa abordagem teórica inscreve-se no âmbito dos Estudos Curriculares e privilegia um diálogo com os saberes da Didática e com as teorizações sociais contemporâneas. O corpus empírico que referenciou este estudo, importa destacar, foi constituído por um conjunto de oito entrevistas episódicas realizadas com professores e coordenadores pedagógicos que atuam no Ensino Médio no Estado do Rio Grande do Sul.

Assim sendo, sinalizamos que o artigo está organizado em três seções. Na primeira seção realizamos uma revisão dos estudos sobre a escolarização dos adolescentes na literatura internacional, priorizando os estudos de Anne Barrère, Jonathan Haidt e Mariano Narodowski. Compreender os contornos do debate hodierno, suas potencialidades e controvérsias, foi o principal objetivo dessa parte do estudo. Em continuidade, na segunda seção, revisamos teoricamente as relações entre escolarização juvenil e inovação educativa. A intenção encontrava-se em delinear alguns traços conceituais que nos servissem de ponto de partida para a análise das práticas selecionadas para a análise. Por fim, na terceira e última parte deste estudo, além de apresentar brevemente o percurso metodológico deste trabalho, mobilizamos uma analítica curricular centrada nas articulações entre os dispositivos de estetização pedagógica e a ubiquidade do entretenimento nas práticas mobilizadas no Ensino Médio, especialmente a partir da implementação das novas regulamentações desta etapa formativa no Brasil.

A adolescência em questão: uma revisão

As relações entre os adolescentes e as instituições escolares são, ao mesmo tempo, evidentes e ambivalentes, como explica-nos a socióloga francesa Anne Barrére (2013BARRÈRE, Anne. Escola e adolescência: uma abordagem sociológica. Lisboa: Edições Piaget, 2013.). Configuram-se como evidentes à medida em que boa parte deste período da vida é vivenciado na escola, na maioria dos países. Também são relações marcadas pela ambivalência, uma vez que a adolescência é uma construção social permeada por representações variadas. Nesta relação entre escola e adolescência também encontramos processos variados, como a vontade de mudança, a abertura à novidade e a curiosidade existencial, acompanhados, muitas vezes, pelo desinteresse pela escola, pela evasão e reprovação, pelos conflitos variados e pela inserção precoce no mundo profissional.

Acompanhando as elaborações da socióloga francesa, seria conveniente que estivéssemos atentos a três mudanças estruturais que acompanham as percepções dos adolescentes sobre a instituição escolar. A primeira mudança, de caráter histórico, refere-se ao prolongamento e a unificação da escolarização que ocorreu no decorrer da segunda metade do século XX. A segunda mudança, também descrita por Barrére (2013BARRÈRE, Anne. Escola e adolescência: uma abordagem sociológica. Lisboa: Edições Piaget, 2013.), evidencia as transformações nas formas de socialização - reposicionando as relações entre adolescentes, famílias e escolas. A terceira mudança estrutural expõe as condições emergentes do final do século XX, abrangendo questões culturais, econômicas e políticas no âmbito das sociedades ocidentais. O considerado monopólio da escola, enquanto agência formativa, passou a ser interpelado pelas redes de sociabilidade, pela era digital ou mesmo pela emergência das nomeadas “culturas juvenis”.

Em um exercício de síntese, Henri Lehalle (2011LEHALLE, Henry. Adolescência (Psicologia da). In: VAN ZANTEN, Agnes (Coord.). Dicionário de Educação. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 26-30.) retoma que, em um sentido amplo, a adolescência é percebida como um período de transição: as crianças são progressivamente reconhecidas como pessoas adultas. Porém, conforme o autor, esta é uma definição imprecisa, uma vez que “a infância e a vida adulta não correspondem a períodos de estabilidade e que a adolescência deve ser considerada no conjunto da evolução individual, insistindo na continuidade das construções individuais no decorrer da vida” (p. 26). Em outras palavras, a adolescência precisa ser examinada no conjunto complexo das dimensões que caracterizam o desenvolvimento humano.

Lehalle (2011LEHALLE, Henry. Adolescência (Psicologia da). In: VAN ZANTEN, Agnes (Coord.). Dicionário de Educação. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 26-30.) argumenta que, historicamente, buscou-se definir esta etapa da vida por meio de um conjunto de ajustamentos ligados às mudanças no corpo, escolhas profissionais, identidade ou mesmo relação com a escola. Em uma perspectiva mais contemporânea atribui-se centralidade para a noção de autonomização, em suas variadas versões derivadas de contextos culturais variados. O autor ainda evidencia duas observações que podem ser bastante úteis para este diagnóstico inicial, quais sejam: a) as representações sociais da adolescência são determinadas culturalmente; b) as trajetórias dos adolescentes são bastante variáveis1 1 Evidencia-se, dessa forma, a impossibilidade de fixar sentidos universais sobre a adolescência, uma vez que as trajetórias destes indivíduos são muito variáveis (envolvendo aspectos como relações familiares, redes de sociabilidade, inserção no mundo do trabalho, gênero e raça, dentre outros). .

Ainda precisaríamos considerar um amplo conjunto de investigações educativas que dizem respeito às mudanças somáticas da puberdade, as questões cognitivas, as interações com as famílias e aos grupos de colegas. Entretanto, priorizaremos examinar as dimensões formativas atinentes à escolarização, isto é, queremos pensar como estes indivíduos conseguem “progressivamente estabelecer princípios de vida suscetíveis de orientar suas escolhas e seus compromissos por diversas questões” (LEHALLE, 2011LEHALLE, Henry. Adolescência (Psicologia da). In: VAN ZANTEN, Agnes (Coord.). Dicionário de Educação. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 26-30., p. 29). Mais uma vez recorrendo ao estudo de Anne Barrére, a própria democratização ou o alargamento da escolarização para uma geração de adolescentes mereceria um exame mais atento, uma vez que “a homogeneização aparente dos percursos escolares esconde importantes disparidades” (BARRÉRE, 2013BARRÈRE, Anne. Escola e adolescência: uma abordagem sociológica. Lisboa: Edições Piaget, 2013., p. 21). Ou ainda, evidenciam-se novos desafios sociais.

A massificação do ensino secundário coloca igualmente no centro das atenções a articulação entre o sistema educativo e o sistema econômico. Ao prolongarem os estudos, os alunos e as respectivas famílias esperam adquirir melhor estatuto social e, no caso das famílias que se encontram em posições menos elevadas, conhecer uma mobilidade ascendente (BARRÈRE, 2013BARRÈRE, Anne. Escola e adolescência: uma abordagem sociológica. Lisboa: Edições Piaget, 2013., p. 23).

É neste contexto que na literatura internacional proliferam-se leituras variadas acerca das formas possíveis de escolarização das juventudes contemporâneas neste início de século XXI. Para fins desta seção, vamos revisitar as controversas análises sobre esta problemática derivadas dos escritos historiográficos de Yuval Harari (2018HARARI, Yuval. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), dos estudos psicológicos de Jonathan Haidt e da abordagem pedagógica de Mariano Narodowski. Em um exercício de síntese, posteriormente, colocaremos essas considerações em diálogo com os nossos achados de pesquisa. Cada uma destas abordagens críticas, de caráter pluralista, permitem com que possamos mapear os contornos deste debate.

Harari (2018HARARI, Yuval. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), em suas 21 lições para o século 21, traça um diagnóstico das narrativas sociais que vinham predominando no final do último século, explicitando a força da narrativa liberal, aquela que celebra o valor da liberdade e dos direitos humanos. No período posterior à crise de 2008, o historiador diagnostica uma desilusão da narrativa liberal engendrada por meio de uma “sensação de desorientação e catástrofe iminente, [que] é exacerbada pelo ritmo acelerado da disrupção tecnológica” (p.21). Tecnologia artificial, biotecnologia e inteligência artificial, neste cenário, poderiam auxiliar na reestruturação das economias e das sociedades, inclusive abrangendo a própria arquitetura da vida.

Um dos desafios elencados por Harari (2018HARARI, Yuval. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.) é o de como educaremos as crianças e os adolescentes nascidos neste início de século, sujeitos estes que conduzirão as suas vidas com muitas informações e poucas certezas. Além de uma visão abrangente do cosmos, seria necessário conviver com a incerteza como modo de vida e com a presença constante dos algoritmos buscando desvendar as nossas vidas.

Então, o que deveríamos estar necessitando? Muitos especialistas em pedagogia alegam que as escolas deveriam ensinar “os quatro Cs” - pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade. Num contexto amplo, as escolas deveriam minimizar habilidades técnicas e enfatizar habilidades para propósitos genéricos na vida. O mais importante de tudo será a habilidade para lidar com mudanças, aprender coisas novas e preservar seu equilíbrio mental em situações que não lhes são familiares (HARARI, 2018HARARI, Yuval. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 323).

Direcionando essa reflexão para o contexto do século XXI, Harari (2018HARARI, Yuval. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.) defende que os adolescentes precisam relativizar a confiança nos adultos, pois estes “conheciam as coisas bastante bem e o mundo se transformava lentamente” (p. 328). Nesse século, por outro lado, “devido ao ritmo cada vez mais acelerado das mudanças, você nunca terá certeza se aquilo que os adultos estão lhe dizendo é fruto de uma sabedoria atemporal ou de um preconceito ultrapassado” (p. 328). Interpretações pertinentes (e controversas) abordaremos a seguir nos textos recentes de Haidt e Lukianoff (2019HAIDT, Jonathan; LUKIANOFF, Greg. La transformación de la mente moderna. Barcelona: Editorial Planeta, 2019.) e Narodowski (2016NARODOWSKI, Mariano. Un mundo sin adultos: familia, escuela y medios frente a la desaparición de la autoridad de los mayores. Buenos Aires: Debate, 2016.).

Jonathan Haidt e Greg Lukianoff (2019HAIDT, Jonathan; LUKIANOFF, Greg. La transformación de la mente moderna. Barcelona: Editorial Planeta, 2019.), ao examinarem as universidades em várias partes do mundo, interrogam se “estamos preparando adequadamente aos jovens para encarar a vida adulta ou os estamos protegendo demasiadamente” (p. 24). Em obra bastante provocativa, os autores estadunidenses definem que três ideias equivocadas têm sido introduzidas na educação das novas gerações. A primeira ideia é a de que os jovens não estão preparados para serem contrariados ou para lidarem com ideias divergentes, tornando-os frágeis para encarar os desafios advindos de uma sociedade cada vez mais plural. A confiança em seus próprios sentimentos é a outra ideia problematizada pelos autores: conviver com outros sentimentos e percepções seria fundamental para ampliar a nossa visão sobre a vida e sobre as pessoas. A terceira ideia equivocada, discutida por Haidt e Lukianoff (2019) refere-se à visão binária em que a sociedade está dividida entre pessoas boas e pessoas malvadas.

A preocupação dos autores é a de que tais ideias, mesmo que estejam cercadas por boas intenções, podem conduzir a educação dos adolescentes a um cenário em que não consigam escutar pessoas e argumentos que não gostem, o que poderia interferir em seu desenvolvimento social, emocional e intelectual. A palavra recorrentemente utilizada pelos autores é “coddling”, o que nos remete à percepção de que estaríamos “mimando” ou “superprotegendo” os adolescentes e jovens desta geração, educando-os em contato com saberes, pessoas e instituições que pouco contribuem para a sua autonomia e para a construção de um futuro compartilhado.

Outra interpretação encontramos com o pedagogo Mariano Narodowski (2016NARODOWSKI, Mariano. Un mundo sin adultos: familia, escuela y medios frente a la desaparición de la autoridad de los mayores. Buenos Aires: Debate, 2016.), que argumenta sobre uma mutação pedagógica marcada pelo declínio da autoridade adulta ou, como nomeia, a constituição de “um mundo sem adultos”. Suas reflexões tomam como ponto de partida uma significativa mudança acerca das questões educativas ou, mais objetivamente, um pressentimento sobre a possibilidade do fim da infância desde os anos de 1970. Tal como discute o autor, se nos séculos passados os mistérios da vida eram preservados e transmitidos pelos adultos, atualmente estes “creem ver em novas infâncias e adolescências a chave que abrirá as portas para a compreensão das mudanças sociais mais recentes” (NARODOWSKI, 2016NARODOWSKI, Mariano. Un mundo sin adultos: familia, escuela y medios frente a la desaparición de la autoridad de los mayores. Buenos Aires: Debate, 2016., p. 23). Tais mudanças tendem a reposicionar os sentidos de infância, adolescência e vida adulta.

Ao comentar o pensamento social de Margaret Mead, o pedagogo argentino prestigia a noção de “cultura pós-figurativa” e suas implicações possíveis para pensar a infância. O valor do estudo, de acordo com Narodowski, encontra-se em sua profundidade e potencial heurístico para explicar as concepções de infância e de juventude que vão se desenhando no decorrer do século XX. Sob essa perspectiva, podemos afirmar que nossa cultura foi pós-figurativa, nos termos de Mead, uma vez que “baseava-se na constituição de uma criança heterônoma e dependente e de uma condição adulta autônoma e responsável” (p. 33). Todavia, essa evidente legitimidade da autoridade dos adultos entrou em declínio.

Ser jovem (inclusive ser criança ou adolescente) já não supõe uma carência que venha a ser saldada pela correta ação formativa adulta através do passar do tempo. Mas, ao contrário, constitui uma série de atributos positivos não somente para eles, também - e isto muito especialmente - nos adultos que desejam obter uma fisionomia exterior, uma linguagem e uns gostos estéticos semelhantes aos dos mais jovens (NARODOWSKI, 2016NARODOWSKI, Mariano. Un mundo sin adultos: familia, escuela y medios frente a la desaparición de la autoridad de los mayores. Buenos Aires: Debate, 2016., p. 84-85).

Ao longo desta seção, de caráter introdutório, procuramos rastrear os modos pelos quais a escolarização dos adolescentes e jovens vem sendo estudada em tradições de pensamento bastante atuais e derivadas de campos de saber variados. As provocações históricas de Harari, as precauções psicológicas do pensamento de Haidt e as novas condições formativas descritas por Narodowski nos servem de ponto de partida para um exame atento das políticas e práticas de escolarização dirigidas a este público. Estaríamos preparados para delegar as responsabilidades sobre o futuro para as gerações mais jovens? Nossa sociedade “mima” demasiadamente os adolescentes a ponto de impedi-los de conviver com a diferença ou ouvir pensamentos divergentes? Os próprios adultos estão com dificuldades de se reconhecerem nesta condição por meio de processos de prolongamentos indeterminados da adolescência? Nossa intenção não esteve em produzir consensos ou fixar uma interpretação para esta questão; a nosso modo, buscaremos a companhia destas tradições diferentes (e bastante perspicazes) no decorrer das próximas seções.

Escolarização juvenil e modelos de inovação educativa

A escolarização dos adolescentes e jovens constituiu-se como um objeto de estudo privilegiado na história e na sociologia da educação desde as décadas finais do século XX (BARRÉRE, 2013BARRÈRE, Anne. Escola e adolescência: uma abordagem sociológica. Lisboa: Edições Piaget, 2013.). De acordo com Zufiaurre e Hamilton (2015ZUFIAURRE, Benjamin; HAMILTON, David. Cerrando círculos en educación. Madrid: Morata, 2015.), em perspectiva teórica, experimentamos um período propício para a discussão sobre a educação e a escolarização, recolocando-as desde outros ângulos. Refletir sobre as circunstâncias que permitiram o advento e a consolidação da escola moderna permanece como um objeto relevante; embora, neste início de século XXI, precisemos atualizar a proposição de nossos diagnósticos. O desenvolvimento das sociedades industriais, os processos de secularização ou mesmo a centralidade do racionalismo - marcas da escola forjada na Modernidade - ingressaram em um amplo processo de reconfiguração, ora impulsionado pela globalização e pelo neoliberalismo, ora pelo próprio reordenamento da escola e da pedagogia no decorrer do último século. O desafio posto por Zufiaurre e Hamilton toma como ponto de partida a noção de “infraestrutura da escolarização” (2015, p. 13).

A referida noção, de acordo com os autores, permite descrever algumas das ideias fundamentais que marcaram o desenvolvimento das práticas educativas no decorrer dos últimos séculos. Em seu argumento, “as mais frequentes são as de salvação humana, progresso social, diferenças individuais, liderança escolar, desenvolvimento do potencial humano e, também, aspirações em relação à criança” (ZUFIAURRE; HAMILTON, 2015ZUFIAURRE, Benjamin; HAMILTON, David. Cerrando círculos en educación. Madrid: Morata, 2015., p. 13). Aquilo que nomeiam como infraestruturas da escolarização oferece possibilidades de interrogar sobre os propósitos educativos, as racionalidades orientadoras ou mesmo as disposições formativas que historicamente foram contribuindo para o delineamento das formas escolares predominantes. Distanciando-se de uma sucessão consecutiva ou de mera circunstancialidade, tais infraestruturas foram construídas em processos sociais variados marcados por complexas demandas por atualização e mudança a cada tempo.

O conceito de escolarização ocupa um lugar privilegiado no argumento proposto pelos autores sendo considerado como “a concentração institucional de algumas rotinas educativas que se creem como repetíveis e exitosas” (ZUFIAURRE; HAMILTON, 2015ZUFIAURRE, Benjamin; HAMILTON, David. Cerrando círculos en educación. Madrid: Morata, 2015., p. 15). As escolas, sob este prisma, referem-se a um conjunto de processos e recursos institucionais, direcionando-se a um espaço, a um modo específico de educar e a materiais e técnicas específicas. Em sua forma moderna, as práticas de escolarização iniciam-se na Europa entre os séculos XVI e XVII e, por determinados agenciamentos de poder, “atuaram como canalizadores da experiência humana em determinadas direções” (p. 15). Classe, currículo e didática, tal como os conhecemos, auxiliam na reorganização e na redistribuição da experiência educativa em determinadas direções.

A escolarização joga um papel importante na distribuição da experiência e dos recursos humanos. Supõe um elemento central da economia política e moral do modernismo, possibilita e regula um regime de distribuição e destinação, mas também, de retenção de recursos humanos. Nestes termos que os processos e os recursos da escolarização funcionam, ou podem funcionar, como elementos reguladores da distribuição da desigualdade (ZUFIAURRE; HAMILTON, 2015ZUFIAURRE, Benjamin; HAMILTON, David. Cerrando círculos en educación. Madrid: Morata, 2015., p. 15).

Alvarez-Uría (1996), em clássica publicação, colaborava com um diagnóstico bastante pertinente acerca das relações entre a escola e o espírito do capitalismo. Ao ingressar neste clássico debate, o sociólogo espanhol argumentava que, para além das teorias reprodutivistas à época predominantes, a escola e o capitalismo “se forjaram no tempo e no espaço, se viram submetidos a múltiplas transformações, a sucessivos ajustes, reajustes e mudanças, assim como a novas racionalizações que tornaram muito difícil - quando não impedem - descobrir abertamente, à margem da história, sua verdadeira natureza” (1996, p. 133). As relações entre escola e capitalismo, desde este enquadramento, não podiam ser descobertas com facilidade, dadas as suas complexidade e multidimensionalidade. Em outras palavras, seria um diagnóstico a ser permanentemente reescrito.

Tal como Zufiaurre e Hamilton (2015ZUFIAURRE, Benjamin; HAMILTON, David. Cerrando círculos en educación. Madrid: Morata, 2015.), o ponto de partida para as digressões históricas de Alvarez-Uría encontrava-se nas engrenagens escolares que se forjaram a partir do século XVI. Seja por uma abordagem weberiana, seja pela sua atualização foucaultiana, o sociólogo descreve a invenção da escola moderna como uma “maquinaria” que, em homologia às organizações religiosas, atuava na “produção de novas personalidades e subjetividades marcadas por um novo espírito” (ALVAREZ-URIA, 1996ALVAREZ-URIA, Fernando. A escola e o espírito do capitalismo. In: COSTA, Marisa (Org.). Educação básica na virada do século. São Paulo: Cortez, 1996., p. 136). Sua abordagem ainda propõe semelhanças entre a escola e as instituições totais (definidas por Goffman) e com as instituições vorazes (descritas por Coser).

Nas instituições totais, como no convento, existe um regime disciplinar, um controle dos movimentos e deslocamentos, horários marcados por campainhas que substituem os convencionais toques de sinos; enfim, impera para os internos a obrigação de submeter-se a normas preestabelecidas. [...] Mas, por sua vez, a escola compartilha algumas características com as instituições vorazes: exige uma entrega total de alunos e professores, uma imersão da mente e do corpo em atividades que comprometem os sujeitos na sua totalidade não apenas durante as horas de aula, mas também na sua vida cotidiana e em suas horas de descanso (ALVAREZ-URIA, 1996ALVAREZ-URIA, Fernando. A escola e o espírito do capitalismo. In: COSTA, Marisa (Org.). Educação básica na virada do século. São Paulo: Cortez, 1996., p. 136).

A construção da disciplina e da entrega absoluta dos sujeitos escolares serviu como metáfora explicativa da consolidação da escola moderna. O espírito do capitalismo, como descreveu Alvarez-Uría em analogia ao pensamento weberiano, encontrou nesta instituição um local favorável para a construção da sociedade industrial. Todavia, no decorrer do século XX, por itinerários variados encontramos uma reconfiguração do capitalismo - no interior de suas permanentes crises - e, de modo articulado, emergem novas demandas para as escolas associadas aos novos perfis formativos a serem constituídos.

Com o advento do neoliberalismo e as formas de gestão da vida dele derivadas (DARDOT; LAVAL, 2018DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2018.; SAFATLE, 2021SAFATLE, Vladimir. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JR., Nelson; DUNKER, Christian (Orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 17-46.) intensificam-se as preocupações em promover inovações nas culturas escolares, particularmente na escola dos adolescentes. Sua inserção socioprofissional, a preparação para a vida cidadã ou mesmo os preparativos para o ensino superior são colocados em debate, particularmente no que tange a uma possível incapacidade da escola em responder aos desafios contemporâneos. Inovar tornou-se um imperativo fundamental para a escolarização juvenil (SILVA, 2020bSILVA, Roberto Rafael Dias da. Educação, tecnologias 4.0 e a estetização ilimitada da vida: pistas para uma crítica curricular. Cadernos IHU Ideias, v. 18, p. 1-36, 2020b. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/344210399_Educacao_tecnologias_40_e_a_estetizacao_ilimitada_da_vida_pistas_para_uma_critica_curricular. Acesso em: 19 out. 2022.
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), requerendo mudanças permanentes na ação didática e, concomitantemente, impulsionando-as na busca por resultados em testes padronizados.

Quando examinamos atentamente os modelos de inovação educativa que têm sido desenvolvidos e implementados no Brasil em suas variações e especificidades, vislumbramos uma acentuada preocupação com a renovação das metodologias de ensino e com a inserção de artefatos tecnológicos capazes de modernizar o currículo e a ação docente. Especificamente na etapa formativa referente ao Ensino Médio apregoa-se a necessidade de que a escolarização juvenil consiga incorporar aspectos do cotidiano destes estudantes tornando a sua permanência na escola mais atrativa e lúdica. A preocupação em diversificar as experiências escolares de nossos adolescentes, promovendo aprendizagens mais significativas, é um fator determinante na construção de uma escola mais justa e democrática (SILVA, 2019SILVA, Roberto Rafael Dias da. Customização curricular no ensino médio: elementos para uma crítica pedagógica. São Paulo: Cortez, 2019.). Este aspecto, aliás, foi amplamente desenvolvido pela literatura educacional no decorrer da última década.

Ken Robinson e Lou Aronica (2019ROBINSON, Ken; ARONICA, Lou. Escolas criativas: a revolução que está transformando a educação. Porto Alegre: Penso, 2019.), ao argumentarem sobre as escolas criativas, descrevem como a cultura de padronização tem influenciado negativamente na escolarização dos estudantes. Essa cultura de padronização, muitas vezes movida por interesses políticos e econômicos, inviabiliza a produção de uma revolução nas organizações escolares. De acordo com os autores, tal revolução “se baseia na crença do valor do indivíduo, no direito à autodeterminação, no nosso potencial para evoluir e viver uma vida plena e na importância da responsabilidade cívica e do respeito pelos outros” (2019, p. 7). No que se refere ao trabalho dos professores na construção de escolas criativas, Robinson e Aronica defendem que estes profissionais necessitam “de um repertório variado de habilidades e técnicas” (p. 11), considerando altas expectativas educacionais e a necessidade de empoderar os estudantes na construção de seus projetos vitais.

Ampliando este breve diagnóstico, Sahlberg (2018SAHLBERG, Pasi. Lições finlandesas 2.0: o que a mudança educacional na Finlândia pode ensinar ao mundo. São Paulo: Sesi-SP Editora, 2018.), ao comentar as experiências finlandesas, desafia-nos a buscar outras formas de renovação dos sistemas de ensino para além da ideologia reformista e das métricas de desempenho atualmente em evidência. Em sua perspectiva, “a experiência finlandesa mostra que foco consistente na equidade e na cooperação - e não na escolha e na competição - pode levar a um sistema educacional em que todas as crianças aprendam direito” (p. 47). Questões como a aprendizagem e a diferenciação personalizadas colocaram-se como princípios básicos para que pudessem atingir seus objetivos educacionais.

Uma nova flexibilidade no sistema educacional finlandês permitiu que as escolas aprendessem umas com as outras, fazendo com que suas melhores práticas se universalizassem, adotando abordagens inovadoras para organizar o ensino. Ela também incentiva professores e escolas a continuar expandindo seus repertórios de métodos de ensino e a individualizar o ensino a fim de atender às necessidades de todos os estudantes (SAHLBERG, 2018SAHLBERG, Pasi. Lições finlandesas 2.0: o que a mudança educacional na Finlândia pode ensinar ao mundo. São Paulo: Sesi-SP Editora, 2018., p. 90).

Outra dimensão importante refere-se aos desafios educacionais emergentes com a era digital. Pérez-Gómez (2015), em elaboração recente, tem argumentado acerca de uma atualização da literatura pedagógica face à aceleração exponencial da mudança atualmente em curso. Experimentamos mudanças no âmbito da produção, na política e na própria vida cotidiana das pessoas. De acordo com o autor, com o advento da era digital - e com a configuração de uma sociedade em rede, sinalizada por Castells (2000CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000.) - precisamos refletir sobre um amplo conjunto de aspectos, dentre eles: a expansão das ferramentas digitais, as iniciativas de código aberto, o caráter distribuído do conhecimento, a demanda por novas competências cognitivas ou mesmo os novos modelos de trabalho colaborativo.

A inovação educativa que se deriva deste diagnóstico traz consigo o reconhecimento nas mudanças subjetivas dos estudantes (SILVA, 2020bSILVA, Roberto Rafael Dias da. Educação, tecnologias 4.0 e a estetização ilimitada da vida: pistas para uma crítica curricular. Cadernos IHU Ideias, v. 18, p. 1-36, 2020b. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/344210399_Educacao_tecnologias_40_e_a_estetizacao_ilimitada_da_vida_pistas_para_uma_critica_curricular. Acesso em: 19 out. 2022.
https://www.researchgate.net/publication...
) e, ao mesmo tempo, a possibilidade de novas formas de alfabetização cultural para os cidadãos e cidadãs.

O desafio da escola contemporânea reside na dificuldade e na necessidade de transformar a enxurrada desorganizada e fragmentada de informações em conhecimento, ou seja, em corpos organizados de proposições, modelos, esquemas e mapas mentais que ajudem a entender melhor a realidade, bem como na dificuldade para transformar esse conhecimento em pensamento e sabedoria (PÉREZ-GÓMEZ, 2015, p. 28).

Alargando o escopo desta breve revisão envolvendo questões que articulem escolarização juvenil e inovação educativa, na próxima seção promoveremos articulações entre a construção contemporânea da adolescência e a busca por novos desenhos curriculares baseados na inovação educativa. A partir da composição de um corpus empírico derivado de situações didáticas promovidas em escolas situadas no sul do Brasil, bem como da análise de materiais midiáticos dirigidos a estas instituições, descreveremos certos contornos e tendências da condição educativa para a escola dos adolescentes. A hipótese que será explorada é a de que os atuais modelos de inovação educativa ainda se distanciam da possibilidade de promover mudanças na infraestrutura da educação, bem como da intensificação de práticas curriculares democráticas, uma vez que estão se alicerçando em processos de estetização pedagógica orientados pela ubiquidade do entretenimento.

Estetização pedagógica e a ubiquidade do entretenimento: apreciações críticas

Ancorados na possibilidade de produzir perspectivas analíticas ao estudo das práticas curriculares mobilizadas contemporaneamente no Ensino Médio, buscamos construir um diagnóstico vinculado a algumas das principais contribuições dos Estudos Curriculares, dimensionando nosso estudo na interface entre as teorizações do campo da Didática e a teoria social contemporânea. Em termos metodológicos, organizamos o presente estudo em duas fases, quais sejam: a) produção de uma revisão da literatura publicada no Brasil sobre a escolarização dos adolescentes, atribuindo atenção especial para as questões referentes às situações didáticas; e b) realização de entrevistas episódicas com professores e professoras que atuam no Ensino Médio em quatro regiões distintas do Estado do Rio Grande do Sul (Sul do Brasil). Ao mesmo tempo, desencadeamos uma revisão conceitual nas diferentes tradições dos Estudos Curriculares.

Especificamente neste artigo estamos analisando os dados coletados na segunda fase do estudo, isto é, as incursões empíricas realizadas em quatro escolas públicas estaduais situadas nos municípios de Porto Alegre, Caxias do Sul, Pelotas e Passo Fundo, na região Sul de nosso país. A definição das escolas ocorreu a partir de interlocuções sistemáticas com as respectivas coordenadorias regionais de educação, priorizando instituições escolares que recentemente tenham realizado reformulações curriculares direcionadas à inserção de métodos ativos e estratégias de diferenciação pedagógica. Além de sessões de observação das atividades escolares, foram realizadas oito entrevistas episódicas com professores e coordenadores pedagógicos que atuam em escolas que promoveram inovações curriculares. Para a seleção dos entrevistados, foram operados dois critérios: 1) que coordenem o desenvolvimento de práticas curriculares inovadoras; 2) que atuem em escolas da rede pública estadual e que tenham seu trabalho pedagógico considerado como relevante pelas coordenadorias regionais de educação.

Vale destacar que a opção por esta forma de entrevista tem a ver com a importância de compreender a experiência dos professores na questão, sobretudo para diagnosticar e descrever os modos pelos quais mencionam suas possibilidades de intervenção profissional, bem como os conhecimentos selecionados para suas aulas e os métodos privilegiados para a atuação nessa etapa da educação básica. De acordo com Flick (2009FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. 3.ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.), o ponto de partida para a entrevista episódica é a suposição de que as experiências de um sujeito sobre um determinado domínio sejam armazenadas e lembradas nas formas de conhecimento narrativo-episódico e semântico (p. 172). A entrevista episódica favorece a descrição das experiências dos entrevistados.

A questão da ubiquidade do entretenimento nas práticas curriculares

Durante a análise dos dados, que será apresentada posteriormente, constatamos a recorrência argumentativa em torno da composição de aulas mais criativas, mais dinâmicas e marcadas pela atividade dos estudantes. Longe de se constituir em uma nova tendência pedagógica, como adverte-nos Charlot (2020CHARLOT, Bernard. Educação ou Barbárie? - uma escolha para a sociedade contemporânea. São Paulo: Cortez, 2020.), sob tal perspectiva delineia-se a busca por aulas em que o entretenimento adquire centralidade. Em um contexto em que predomina o neotecnicismo neoliberal (PIMENTA, 2019PIMENTA, Selma Garrido. As ondas críticas da didática em movimento: resistência ao tecnicismo/tecnicismo neoliberal. In: SILVA, Marco; ORLANDO, Cláudio; ZEN, Giovana (Orgs.). Didática: abordagens contemporâneas. Salvador: EDUFBA, 2019, p. 19-64.), vislumbra-se uma condição ubíqua para o entretenimento. Em sua origem latina, a ubiquidade refere-se àquilo que é onipresente, que pode ser encontrado em todos os lugares.

Ao analisar atentamente questões da sociedade contemporânea, o filósofo Byung-Chul Han (2019HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento: uma desconstrução da história da paixão ocidental. Petrópolis: Vozes, 2019.) elaborou como hipótese que o entretenimento converteu-se atualmente em um novo paradigma para explicar nossas relações com nós mesmos, com as instituições e com a própria sociedade. Em sua leitura, atualmente, o entretenimento tornou-se ubíquo, isto é, está presente em todos os espaços da ação humana, não mais se circunscrevendo ao tempo livre. O entretenimento torna-se crônico: associando tempo livre e trabalho, aprendizagem e lazer, estudo e divertimento. Nas palavras de Han (2019), “ele formula, muito antes, uma relação inteiramente outra com o saber” (p. 201).

Expandindo esse argumento, podemos pensar que o entretenimento escapa a sua ocasionalidade nas diferentes sociedades ocidentais, direcionando-se para uma totalização intensa nas experiências vivenciadas neste início de século. Mais uma vez recorrendo ao filósofo, “o entretenimento trata, então, para além de episódios, simplesmente de produzir um novo modo de conduzir a vida, uma nova experiência do mundo e do tempo” (HAN, 2019HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento: uma desconstrução da história da paixão ocidental. Petrópolis: Vozes, 2019., p. 202-203). Quando derivamos este diagnóstico para pensar sobre a escolarização juvenil, no contexto acima descrito, rapidamente constatamos duas tendências predominantes, quais sejam: a) o desenvolvimento de aulas criativas e a gestão das aprendizagens; b) a promoção de aulas interativas e a busca pelo entretenimento. Como desenvolveremos a seguir, trata-se de um deslocamento significativo nas práticas curriculares dirigidas à escolarização dos adolescentes e jovens brasileiros.

Aulas criativas e a gestão das aprendizagens

A busca por aulas mais criativas e por procedimentos que favoreçam a gestão das aprendizagens dos estudantes tornou-se recorrente no Brasil. De certo modo, trata-se de uma demanda há bastante tempo requerida pelo campo da Didática, em suas variadas vertentes críticas. Pimenta (2019PIMENTA, Selma Garrido. As ondas críticas da didática em movimento: resistência ao tecnicismo/tecnicismo neoliberal. In: SILVA, Marco; ORLANDO, Cláudio; ZEN, Giovana (Orgs.). Didática: abordagens contemporâneas. Salvador: EDUFBA, 2019, p. 19-64.), em um importante exercício de síntese, destaca que a ressignificação desse campo nos conduziu a pensar sobre o ensino em uma perspectiva multidimensional que, além de se aproximar das demandas dos estudantes, “o compreenda como uma práxis educativa pedagógica, que considere as contradições e dilemas dos contextos nos quais se realiza” (p. 34). A preocupação com as aulas e o alargamento das relações entre ensino e aprendizagem também se manifestam como questões centrais nesta literatura didática no Brasil.

No que tange aos estudos sobre a educação dos adolescentes e jovens, em uma perspectiva didática, destaca-se os estudos de Mesquita (2020MESQUITA, Silvana. Elementos da didática para a juventude: entre a dimensão relacional e a construção de sentidos. Revista Portuguesa de Educação, n. 33, v. 2, p. 200-225, 2020. Disponível em: https://revistas.rcaap.pt/rpe/article/view/15755. Acesso em: 19 out. 2022.
https://revistas.rcaap.pt/rpe/article/vi...
). Particularmente no que se refere ao Ensino Médio, a autora propõe uma “didática para a juventude” que, a partir de uma perspectiva multidimensional, promova “metodologias interativas, ênfase na dimensão relacional favorecendo interações e reconhecimento do papel do professor como construtor de sentidos” (p. 201). A busca pela construção de jovens protagonistas requer a mobilização de instrumentos que favoreçam o diálogo e a interação.

Como destacamos nas seções anteriores, atualmente ainda nos deparamos com uma preocupação em atualizar o repertório didático dos professores que atuarão nas práticas de escolarização dos adolescentes. Todavia, diferentemente do que as pesquisadoras do campo da Didática vinham pontuando, a preocupação com a criatividade e a busca pela interatividade tornaram-se uma obsessão, em muito aproximando-se daquilo que nomeamos como “compulsão modernizadora” (SILVA, 2020bSILVA, Roberto Rafael Dias da. Educação, tecnologias 4.0 e a estetização ilimitada da vida: pistas para uma crítica curricular. Cadernos IHU Ideias, v. 18, p. 1-36, 2020b. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/344210399_Educacao_tecnologias_40_e_a_estetizacao_ilimitada_da_vida_pistas_para_uma_critica_curricular. Acesso em: 19 out. 2022.
https://www.researchgate.net/publication...
). Pimenta (2019PIMENTA, Selma Garrido. As ondas críticas da didática em movimento: resistência ao tecnicismo/tecnicismo neoliberal. In: SILVA, Marco; ORLANDO, Cláudio; ZEN, Giovana (Orgs.). Didática: abordagens contemporâneas. Salvador: EDUFBA, 2019, p. 19-64.), no texto mencionado, já anunciava uma tendência de retomada da didática instrumental, impulsionada pelos variados atores que defendem no país certo “neotecnicismo neoliberal” (p. 19). Charlot (2020CHARLOT, Bernard. Educação ou Barbárie? - uma escolha para a sociedade contemporânea. São Paulo: Cortez, 2020.) avança nesta hipótese ao afirmar que hoje não existe isto que nomeamos como “pedagogia contemporânea”, uma vez que tais movimentos educativos abdicam da tarefa antropológica de refletir sobre os propósitos e as finalidades educativas.

Em nosso acompanhamento das práticas curriculares das escolas situadas no Sul do Brasil tornou-se recorrente a preocupação com a gestão das aprendizagens e a busca por aulas mais criativas. As professoras entrevistadas defendem a importância de reorganização das aulas a partir das demandas dos estudantes e pela construção de sua autonomia. Também sinalizam a pertinência de ampliar nossa linguagem para dialogar com os adolescentes constituídos no século 21. Tais argumentos são importantes, não resta dúvida, mas o que chamou nossa atenção foi a preocupação em tornar as aulas mais criativas - “experiências incríveis” como mencionou uma das entrevistadas - e a possibilidade de promover as aprendizagens por meio de jogos, games e novas disposições organizativas.

Uma das dimensões evidenciadas com recorrência é o modo como as mídias digitais podem enriquecer as aulas, apresentando mais espaço para a criatividade e para a interatividade entre os estudantes e com os professores. Abaixo apresento excertos de entrevistas com duas professoras.

Para mim a aula é um grande hipertexto. Assim como as pessoas navegam na internet por caminhos diversificados, eu acredito que a aula poderia ser pensada assim: bem interativa e cada aluno pode ser seguir um hiperlink diferente.

Fonte: Entrevista PEM/03 (grifos nossos)

Nosso trabalho como professoras hoje é bastante facilitado pelas mídias digitais, enriquece a aula. Vejo na escola que as aulas que os alunos mais gostam são aquelas que não ficam somente na exposição teórica. Tem vídeo, tem jogo, tem pesquisas on-line, às vezes isso tudo ao mesmo tempo. Eles me dizem sempre que nós precisamos ter abertura para dialogar, para conversar sobre as dúvidas, estar do lado deles. Fico pensando: a conexão maior precisa ser entre as pessoas.

Fonte: Entrevista PEM/01 (grifos nossos)

Outra dimensão bastante enfatizada foi a da busca por novos instrumentos, novos modos de organização dos tempos e espaços de aprendizagens e por modos diferenciados de disputar a atenção dos estudantes. Esta questão, aliás, aparece tanto na necessidade de equipar os laboratórios e salas temáticas, quanto na própria intencionalidade em tornar as aulas divertidas. Como sinalizamos acima, estas instituições são escolas-piloto na reforma do Ensino Médio em curso no Brasil, assim sendo, tornaram-se referência para a rede pública de ensino.

Abaixo apresento mais dois excertos de entrevistas episódicas, desta vez com duas coordenadoras pedagógicas. A primeira coordenadora destacou uma experiência realizada com a temática do pensamento visual, em que a produção de gráficos, mapas mentais e anotações criativas foram priorizadas. A escola buscou trabalhar com técnicas de estudo mais interativas. A outra coordenadora, por sua vez, além de destacar a possibilidade de equipar um novo laboratório, enalteceu a necessidade de fazer da escola um espaço mais legal, mais agradável e mais divertido.

No ano passado foi feito um projeto com o ensino médio sobre o pensamento visual. A ideia era pensar como a gente estuda e como tornar este estudo mais dinâmico. Envolveu as turmas por mais de um mês e ainda hoje tem gente que usa sempre. Mapas mentais, gráficos abertos e anotações criativas foram os temas que foram estudados. Lembro que os professores diziam que o mais importante era saber selecionar e preparar as informações, separando as ideias por cores e montando esses mapas.

Fonte: Entrevista CEM/03

Compramos vários equipamentos, equipamos um novo laboratório para receber o Novo Ensino Médio também. Nosso desafio, já há bastante tempo, é construir uma escola mais próxima dos estudantes. Vamos disputar a atenção deles, parece estranho, mas é isso mesmo. Fazer uma escola legal, buscar metodologias novas e tentar tornar a vida deles aqui mais leve, mais divertida. Ser adolescente não é fácil, tu sabes quantos têm problemas de depressão, essas coisas.

Fonte: Entrevista CEM/05

Em linhas gerais, esta última fala da coordenadora pedagógica enuncia o eixo das preocupações desta analítica: tornar as aulas mais criativas é disputar a atenção dos adolescentes favorecendo com que suas experiências escolares sejam mais leves e divertidas. Ainda que não discordemos desta premissa, como afirmamos anteriormente, nosso desafio encontra-se em sinalizar para os seus excessos. Mais uma vez recorrendo ao filósofo Byung Chul-Han, quando o entretenimento se torna crônico parece possível pensar em uma fusão entre trabalho e tempo livre, uma espécie de “cognitenimento”, isto é, “um casamento híbrido de saber e entretenimento” (2019, p. 201). Desenha-se uma infraestrutura da escolarização marcada pela estetização dos fazeres pedagógicos que, ao ser engendrada sob a lógica da leveza e da diversão, ingressa nas lutas simbólicas em torno de uma economia da atenção na escola dos adolescentes. De acordo com Hamilton e Zufiaurre (2015ZUFIAURRE, Benjamin; HAMILTON, David. Cerrando círculos en educación. Madrid: Morata, 2015.), podemos afirmar que estamos diante de uma reorganização interna da educação e da escolarização.

Aulas interativas e a busca pelo entretenimento

Hamilton e Zufiaurre (2015ZUFIAURRE, Benjamin; HAMILTON, David. Cerrando círculos en educación. Madrid: Morata, 2015.) nos lembram que a história da escolarização não se trata de uma sucessão de eventos; porém, seria importante realizarmos um escrutínio das narrativas sobre a escolarização que, reiteradas vezes, referem-se a novos marcos. Descrever a infraestrutura da escolarização, sob este entendimento, oferece-nos a oportunidade de realizar sínteses circunstanciais acerca dos novos direcionamentos em torno das práticas escolares. Alguns apontamentos semelhantes encontramos em Aquino e Boto (2019AQUINO, Júlio; BOTO, Carlota. Inovação pedagógica: um novo-antigo imperativo. Educação, sociedade e culturas, v. 55, p. 13-30, 2019. Disponível em: https://www.fpce.up.pt/ciie/sites/default/files/04.JulioAquino%26CarlotaBoto.pdf. Acesso em: 19 out. 2022.
https://www.fpce.up.pt/ciie/sites/defaul...
), quando revisitam o conceito de inovação pedagógica postulando-o como um ‘novo-antigo’ imperativo, e em Biesta (2021BIESTA, Gert. Reconquistando o coração democrático da educação. Educação Unisinos, v. 25, n. 1, p. 1-7, 2021. Disponível em: https://revistas.unisinos.br/index.php/educacao/article/view/edu.2021.251.01. Acesso em: 19 out. 2022.
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), quando afirma que a atual linguagem da aprendizagem nos direciona a uma ‘dieta educacional restritiva’.

Tal como vimos descrevendo, uma demanda bastante evidenciada na literatura sobre a adolescência, na atualidade, refere-se aos impactos subjetivos no uso das tecnologias digitais. Isso implica, de acordo com este campo argumentativo, redefinir a questão dos tempos, dos espaços e das experiências formativas que estes sujeitos são expostos na escola. No Brasil, encontramos modalidades curriculares variadas que respondem a este desafio: ora reduzindo o tempo das aulas ou dinamizando-o com metodologias híbridas, ora intensificando os modos de participação dos estudantes nas aulas tornando-as mais interativas. Ensaia-se uma busca por experiências interativas que ultrapassem os modelos de aula centrados na exposição dos professores. Quando nos encontramos com os escritos filosóficos de Han (2019HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento: uma desconstrução da história da paixão ocidental. Petrópolis: Vozes, 2019.), imediatamente, despertou-nos a atenção essa percepção de que o entretenimento se torna um novo paradigma, capaz de explicar as novas relações que estamos estabelecendo com nós mesmos e com o mundo.

Assim que o entretenimento adquire este estatuto, também observamos na literatura pedagógica um amplo processo de releitura dos estudos escolanovistas que, já há um século, anunciavam o primado da experiência e da atividade dos estudantes (AQUINO; BOTO, 2019AQUINO, Júlio; BOTO, Carlota. Inovação pedagógica: um novo-antigo imperativo. Educação, sociedade e culturas, v. 55, p. 13-30, 2019. Disponível em: https://www.fpce.up.pt/ciie/sites/default/files/04.JulioAquino%26CarlotaBoto.pdf. Acesso em: 19 out. 2022.
https://www.fpce.up.pt/ciie/sites/defaul...
). Todavia, neste momento em que hodiernamente vivenciamos, um novo conjunto de condições torna-se importante para explicarmos esta questão. Com o advento do neoliberalismo, das mudanças no mundo do trabalho e da massificação do acesso às tecnologias digitais, instaura-se a busca por subjetividades flexíveis, capazes de mobilizar sua preocupação com o curto prazo e agenciar modos de vida abertos à mudança permanente (SENNETT, 2008SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2008.). O ritmo das mudanças torna-se acelerado e os professores são posicionados entre a inovação pedagógica e a pressa pela obtenção de resultados, fazendo com que a qualidade das aulas esteja vinculada à qualidade das mudanças realizadas.

Nossas entrevistas episódicas com professoras e coordenadoras que atuam no Ensino Médio no Sul do Brasil revelam a tensão acima mencionada: há um desejo pela mobilização de aulas interativas acompanhada pelo desempenho nas avaliações de larga escala. Os três excertos abaixo revelam estas tensões.

Aulas mais interativas acontecem, sim! No ano passado as professoras fizeram aulas bem bacanas usando o Socrative. É uma ferramenta para realizar e responder perguntas ao vivo, essas coisas facilitam a participação dos estudantes. Uma coisa eu consigo notar: tem alguns colegas que nunca têm nenhuma novidade e isso atrasa a aprendizagem dos alunos e a qualidade das aulas, sabe.

Fonte: Entrevista PEM/04

Aulas interativas de verdade são muito importantes. Vejo os professores usando muitos vídeos do Youtube, jogos de mesa também usam, e muitas saídas para o bairro. Com os adolescentes precisa dessas coisas, eles são agitados e estão sempre na nossa frente. Tem uns profes que batem papo com eles sobre as séries do Netflix, por exemplo, isso traz temas novos para as aulas. Manter a aula atrativa é muito importante.

Fonte: Entrevista CEM/01

Nem sempre vejo os professores do ensino médio querendo fazer diferente. Ainda é o Enem e os vestibulares a maior preocupação das aulas. No início do ano, acho que no primeiro trimestre, foi organizado [sic] algumas atividades mais focadas nos jogos. Eu acho os games muito fascinantes e prendeu [sic] a atenção deles por muito tempo. Usar os games é divertido e os estudantes aprendem sem perceber. Esse projeto que estou falando era sobre os simuladores na área dos negócios.

Fonte: Entrevista PEM/02

Enfim, poderíamos pensar que mesmo a preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), principal avaliação nacional para esta etapa da educação básica, precisa vir acompanhada de um design pedagógico centrado no entretenimento. Han (2019HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento: uma desconstrução da história da paixão ocidental. Petrópolis: Vozes, 2019.), em tais condições, lembra-nos que “apenas aquilo que entretém é real ou efetivo” (p. 206). Em outras palavras, sob a égide da ubiquidade do entretenimento, a própria realidade parece ter se tornado um efeito do entretenimento. Como argumentamos nas seções anteriores, a escolarização dos adolescentes brasileiros precisa atualizar-se às demandas do novo tempo, ora avançando na reorganização dos conhecimentos e experiências que serão ensinados, ora renovando o seu repertório didático para o diálogo com estes sujeitos. O que procuramos sinalizar no desenvolvimento desta analítica refere-se aos limites formativos advindos da ubiquidade do entretenimento, servindo como referente pedagógico para a reforma das práticas curriculares para a escola dos adolescentes no Brasil.

Considerações finais

No decorrer do presente estudo procuramos descrever os deslocamentos nas práticas curriculares que ocorreram na escolarização juvenil no decorrer das últimas décadas, optando pela realização de entrevistas episódicas com professores que atuam no Sul do Brasil. Ao diagnosticarmos uma ubiquidade do entretenimento, tal como desenvolvida filosoficamente por Han (2019HAN, Byung-Chul. Bom entretenimento: uma desconstrução da história da paixão ocidental. Petrópolis: Vozes, 2019.), conseguimos caracterizar um reposicionamento do conceito de aula, ora atrelado à gestão das aprendizagens, ora articulado a busca por estratégias interativas marcadas pelo entretenimento. Sem desqualificar tais possibilidades de promoção de inovação educativa, nosso interesse esteve em sinalizar que as novas pedagogias para as escolas dos adolescentes trazem as marcas de um entretenimento generalizado.

Junto a Zufiaurre e Hamilton, em termos metodológicos, buscamos descrever e analisar a infraestrutura da escolarização engendrada neste contexto. Este conceito permitiu que pudéssemos interrogar os propósitos educativos, as racionalidades orientadoras e as disposições formativas que são colocadas em evidência na educação brasileira contemporânea. As falas dos professores e professoras, coletadas por meio de entrevistas episódicas, permitiram-nos afirmar que os atuais desenhos curriculares e pedagógicos para a escolarização dos adolescentes, ao estarem ancorados em processos de estetização e gourmetização dos fazeres educativos, distanciam-se da possibilidade de promover mudanças na infraestrutura da educação. A busca por aulas mais criativas e interativas, ainda que seja uma finalidade desejável para as escolas de nosso país, parece insuficiente para a composição de currículos mais democráticos, integrados e inovadores.

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    Evidencia-se, dessa forma, a impossibilidade de fixar sentidos universais sobre a adolescência, uma vez que as trajetórias destes indivíduos são muito variáveis (envolvendo aspectos como relações familiares, redes de sociabilidade, inserção no mundo do trabalho, gênero e raça, dentre outros).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2021
  • Aceito
    11 Out 2022
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