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Os conhecimentos e sujeitos da Educação Ambiental: historicizando experiências formativas no Parque Nacional de Itatiaia (1937-2020)

RESUMO

O trabalho objetiva historicizar o modo como o Parque Nacional do Itatiaia (PNI) vem significando conhecimentos de/sobre Educação Ambiental (EA) e, simultaneamente, constituindo sujeitos que “devem” educar e ser ambientalmente educados. Ele foi produzido no Grupo de Estudos em História do Currículo, coletivo de pesquisa que se desenvolve no Núcleo de Estudos de Currículo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEC/UFRJ), articulando investigações interessadas em operar com a História do Currículo como História do Presente. Nossa opção pelo PNI refere-se ao fato de que este foi o primeiro espaço que se constituiu como Parque Nacional no Brasil criando um ‘modelo’ de visitação que articula, por meio de processos alquímicos, os conhecimentos de EA a serem ensinados e os variados sujeitos a quem se destinam tais conhecimentos. Em diálogo com Michel Foucault e Thomas Popkewitz, focalizamos a constituição histórica dos sujeitos visitantes a quem vieram se destinando as ações formativas do Parque para, em seguida, evidenciar como os conhecimentos de EA produzidos em tais ações vieram sendo alquimicamente transformados em meio a uma lógica que, historicamente, veio constituindo aquilo que nomeamos ‘escolar’ em estreito diálogo com os processos de disciplinarização que vieram organizando o tempo e o espaço dessa instituição. Nesse processo, destacamos o quanto os limites entre as duas instituições vieram sendo ‘borrados’, o que permitiu instaurar um entrelugar de sujeitos/visitantes/estudantes em meio a um conhecimento de EA disciplinarizado.

Palavras-chave:
História do Currículo; Educação Ambiental; História do Presente; Parque Nacional do Itatiaia; abordagem discursiva

ABSTRACT

The aim of this work is to historicize the way in which the Itatiaia National Park (PNI) has signified knowledge of Environmental Education (EE) and, simultaneously, constituted subjects that “must” educate and be environmentally educated. It was produced by the Curriculum History Study Group, a research collective at the Nucleus of Curriculum Studies at the Federal University of Rio de Janeiro (NEC/UFRJ), articulating investigations interested in operating with Curriculum History as History of the Present. The PNI was selected because it was the first space that was designated as a National Park in Brazil, creating a visitation “model” that articulates, through alchemical processes, the EE knowledge that is to be taught and the different subjects for whom this knowledge is intended. In dialogue with Michel Foucault and Thomas Popkewitz, we focus on the historical constitution of the visiting subjects for whom the park’s formative actions were taken. We then show how the EE knowledge produced through these actions came to be alchemically transformed in the midst of a logic that has historically constituted what we call “school”, in close dialogue with the processes of disciplinarization that have organized the time and space of this institution. In this process, we highlight how the boundaries between the two institutions have been “blurred”, allowing us to establish an in-between place of subjects/visitors/students amid disciplined EE knowledge.

Keywords:
Curriculum History; Environmental Education; History of the Present; Itatiaia National Park; discursive approach

Introdução

Este artigo tem como objetivo historicizar o modo como um espaço não formal de educação - o Parque Nacional do Itatiaia (PNI)1 1 O PNI abrange os municípios de Bocaina de Minas e Itamonte, no Estado de Minas Gerais (MG), e os municípios de Itatiaia e Resende, no Estado do Rio de Janeiro (RJ), localizando-se ainda próximo ao limite com o Estado de São Paulo (SP). Ele está inserido no Bioma Mata Atlântica, na Serra da Mantiqueira (BARRETO et al., 2014). - vem significando conhecimentos que ao longo do tempo vieram participando dos jogos de verdade que constituem a Educação Ambiental (EA) no Brasil. Interessa-nos, especificamente, perceber as relações que foram se estabelecendo entre esses conhecimentos historicamente produzidos e a constituição dos sujeitos que “devem” educar e ser ambientalmente educados.

Para realizar essa tarefa, produzimos um arquivo de pesquisa composto pelos seguintes documentos/monumentos: (a) legislações diretamente relacionadas ao Parque Nacional do Itatiaia (Decreto de Criação) ou à questão ambiental (Códigos Florestais de 1934 e 1965; Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza); (b) Planos de Manejo do Parque Nacional do Itatiaia (RAMOS et al., 1982RAMOS, Paulo Cezar Mendes; SOUZA, Olga Camisão de; LIMA, Augusto Avelino de Araújo; SÁ, Luiz Fernando S. Nogueira de. Plano de Manejo: Parque Nacional do Itatiaia. Brasília: Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF)/Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), 1982.; BARRETO et al., 2014BARRETO, Cristiane Gomes; CAMPOS, Juliana Bragança; ROBERTO, Douglas Mendes; ROBERTO, David Mendes; SCHWARZSTEIN, Naíra Teixeira; ALVES, Gustavo Seijo Goto; COELHO, Welington. Plano de Manejo do Parque Nacional do Itatiaia. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: Brasília, 2014, 491 p.); (c) Boletins de Pesquisa do PNI; (d) Livro “Parque Nacional do Itatiaia” (BARROS, 1955BARROS, Wanderbilt Duarte de. Parque Nacional do Itatiáia. Ministério da Agricultura, Serviço de Informação Agrícola, 1955.), escrito pelo então chefe do Parque, Wanderbilt Duarte de Barros; (e) Plano de Educação Ambiental para o Parque Nacional do Itatiaia (APROPANI, 1989); (f) Relatórios internos; (g) Dissertação da criadora e Coordenadora do Núcleo de Educação Ambiental do PNI (BAUMGRATZ, 2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014.); (h) Artigos de jornais e revistas, sobretudo da época da criação do Parque, com vistas a compreender quais enunciados circulavam na sociedades nos determinados momentos sócio-históricos.

Ele foi produzido no âmbito do Grupo de Estudos em História do Currículo, coletivo de pesquisa que se desenvolve no Núcleo de Estudos de Currículo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEC/UFRJ), articulando investigações interessadas em operar com a História do Currículo como História do Presente. Inspiradas nos escritos de Michel Foucault e alguns de seus interlocutores no campo do Currículo (em especial, Thomas Popkewitz), vimos produzindo uma abordagem discursiva para os estudos históricos nesse campo (FERREIRA, 2013FERREIRA, Marcia Serra. História do Currículo e das Disciplinas: apontamentos de pesquisa. In: André Márcio Picanço Favacho; José Augusto Pacheco; Shirlei Rezende Sales. (Orgs.). Currículo, conhecimento e avaliação: divergências e tensões. 1ª ed. Curitiba: CRV, 2013, p. 75-88., 2015 e 2022; FERREIRA & SANTOS, 2017; FERREIRA & MARSICO, 2020) especialmente interessadas nos efeitos de verdade que têm sido produzidos pelos sistemas de pensamento que nos permitem raciocinar sobre as coisas no mundo, ordenando e classificando as nossas práticas e quem nós somos (e podemos ser) nesse mesmo mundo.

Tal abordagem discursiva parte, portanto, de uma noção de poder que não é externa ao saber, não emana de um centro e nem possui uma essência ou natureza própria. No diálogo com Michel Foucault (1995FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P. & DREYFUS, H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249., 1999, 2011), assumimos que o poder não existe fora das relações com os conhecimentos que constituem as verdades sobre o mundo e sobre nós mesmos. Nesse sentido, nossa proposta de fazer História do Currículo como História do Presente é um empreendimento que visa desnaturalizar enunciados paradigmáticos e romper com as narrativas contínuas, entendendo que uma história efetiva é aquela que suspende a própria história para evidenciar as condições que tornam os pensamentos e ações do presente possíveis (POPKEWITZ, 2010POPKEWITZ, Thomas Stanley. Estudios curriculares y la historia del presente. Profesorado: Revista de Currículum y Formación de Profesorado, vol. 14, n. 1, p. 355-370, 2010. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/567/56714113020.pdf. Acesso em: 30 set. 2022.
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). A opção pela História do Presente como categoria epistêmica traduz, portanto, um entendimento de história que traz efetivamente o presente para a forma de agir. Em tal movimento, resgatamos nos acontecimentos históricos problemas que nos trazem insatisfação no tempo presente produzindo uma espécie de história incômoda. Em outras palavras, é um modo de produzir conhecimentos com o passado e não sobre o passado.

No que se refere ao PNI, nossa opção relaciona-se ao fato de que esse foi o primeiro espaço que se constituiu como Parque Nacional no Brasil. Ele emergiu em 1937 (BRASIL, 1937) em meio a justificativas de ordens diversas - conservacionistas, científicas, turísticas e econômicas - e amparado em movimentos mais amplos de constituição de Parques Nacionais no mundo. Além disso, em 2019 o PNI recebeu 127.432 visitantes, sendo a 20ª Unidade de Conservação Federal mais visitada do país dentre as 137 monitoradas. Entre os Parques Nacionais, o PNI foi o 13º mais visitado no mesmo ano (BREVES et al., 2020BREVES, Gabriel Siqueira de Sousa; BARBOSA, Elisa Fazzolino Pinto; GARDA, Angela Barbara; SOUZA, Thiago do Val Simardi Beraldo. Monitoramento da Visitação em Unidades de Conservação Federais: Resultados de 2019 e Breve Panorama Histórico. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio): Brasília, 2020.). Assim, além de participar ativamente da emergência da noção de Parque Nacional no Brasil, produzindo sentidos de conservação e natureza, entre outros, o PNI foi criando um “modelo” de visitação que articula, por meio de processos alquímicos (POPKEWITZ, 2001POPKEWITZ, Thomas Stanley. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: Artmed, 2001.), os conhecimentos de EA a serem ensinados e os variados sujeitos a quem se destinam tais conhecimentos.

Partimos da noção de alquimia das disciplinas2 2 Thomas Popkewitz, assim como outros autores de língua inglesa, preferem o significante matéria para nomear os componentes dos currículos escolares, deixando o significante disciplina para os currículos universitários. Em nossas produções, diferentemente, seguimos uma tradição brasileira de utilizar o termo disciplina para nomear tanto as disciplinas escolares quanto as disciplinas acadêmicas ou universitárias. escolares cunhada por Thomas Popkewitz (2001POPKEWITZ, Thomas Stanley. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: Artmed, 2001.) para problematizar o modo como os conhecimentos biológicos têm sido atravessados por feixes discursivos oriundos de campos do conhecimento distintos - advindos das Ciências Humanas, por exemplo - que os transformam em conhecimentos de EA. Para esse autor, a alquimia diz respeito a um conjunto de práticas educativas focadas tanto nos conteúdos dos currículos quanto nos materiais e recursos didáticos e nas formas de avaliação. Tais práticas são percebidas em meio a “estrutura dos discursos que organizam, diferenciam e normalizam as ações do ensino e das crianças” (POPKEWITZ, 2001POPKEWITZ, Thomas Stanley. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: Artmed, 2001., p. 105), razão pela qual o autor argumenta que a alquimia das disciplinas escolares é também a alquimia dos estudantes.

Assumimos aqui que os processos alquímicos não ocorrem somente nos currículos escolares, ou mesmo dos universitários; ele é também produzido em espaços como o PNI, em práticas discursivas voltadas para a formação dos sujeitos que delas participam. Tal formação, que ao longo do tempo de existência do Parque foi se voltando para o público escolar, tem participado nas disputas em torno do que significa ser ambientalmente educado. Nesse movimento de aproximação com a escola, as práticas discursivas do PNI vieram se “escolarizando”, produzindo conhecimentos que foram sendo alquimicamente atravessados pela lógica disciplinar que historicamente veio organizando o modo de pensar a escola moderna e o ensino que nela acontece.

É por conta disso que, ainda que Thomas Popkewitz (2001POPKEWITZ, Thomas Stanley. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: Artmed, 2001.) tenha cunhado a noção de alquimia para pensar os processos que constituem os conhecimentos corporificados em disciplinas escolares, assumimos a potência desta noção para pensar a alquimia em outros espaços discursivos, tal como fazemos aqui com o PNI. É com ela, portanto, que organizamos as próximas seções deste artigo: na primeira, focalizamos a constituição histórica dos sujeitos visitantes a quem vieram se destinando as ações formativas do Parque; na segunda, evidenciamos como os conhecimentos de EA produzidos em tais ações operam em meio a uma lógica que historicamente veio constituindo aquilo que nomeamos “escolar”, em estreito diálogo com os processos de disciplinarização que vieram organizando o tempo e o espaço dessa instituição social. Nesse processo, destacamos o quanto o significante “educação” presente no termo EA veio se identificando com o significante “escola”, em um movimento que produz, também historicamente, os conhecimentos e o sujeitos-escolarizados do Parque.

Produzindo o sujeito visitante do PNI

O PNI, como já destacado, foi o primeiro espaço que se constituiu como Parque Nacional no Brasil. Nos anos de 1970, no âmbito de uma legislação que organizou os modos de significar a conservação da natureza no país, os Parques Nacionais passaram a ser enunciados como um tipo de Unidade de Conservação da Natureza (UC) de Proteção Integral. Em tal cenário, os objetivos de desenvolver “atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico” (BRASIL, 2000, Art. 11) emergiram de forma explícita em meio às ações de preservação e de produção científica. Tais objetivos já enunciavam, portanto, uma relação dos conhecimentos que os Parques Nacionais - a única categoria de UC cuja visitação e uso público faz parte de seu objetivo central - preservam e produzem com os sujeitos que conhecem e visitam esses espaços. Tal enunciação certamente ocorre no âmbito de debates que cunham o termo EA no cenário acadêmico e educacional, ainda que antes da própria emergência desse significante a noção de “educar para preservar” já circulava em documentos sobre os espaços naturais desde o século XIX.

Neste contexto, evidenciamos o quanto a produção de subjetividades no PNI está intimamente relacionada ao modo como os documentos oficiais significam o visitante. Este termo, na lei supracitada (BRASIL, 2000), foi preenchido, por exemplo, com a noção de que os visitantes vão às UCs para fazer “turismo”. No entanto, a noção de público-alvo como turista já se fazia presente há mais tempo no país; o engenheiro André Rebouças, por exemplo, um grande incentivador da criação de políticas sobre o tema, em monografia datada de 1898 (REBOUÇAS, 1898 apudROQUETTE-PINTO, 1933ROQUETTE-PINTO, Edgard. Parques Nacionais. Revista Nacional de Educação, Rio de Janeiro, ano 1, n. 11 e 12, p. 54-56, ago./set. 1933., p. 54), descreve tais sujeitos como “viajantes ricos” que, ao invés de gastarem dinheiro no Brasil, “passam tres a quatro meses percorrendo a Italia”3 3 Aqui e em outros trechos retirados de documentos antigos, optamos por transcrever literalmente o conteúdo com a mesma grafia e acentuação tal como constam no original. . De acordo com ele:

A despeza diaria de cada um desses viajantes não pôde ser computada em menos de 20 mil reis da nossa moeda (1876), em tres meses despendem nunca menos de 2 contos de reis, o que significa que os 20.000 touristas (sic) deixam pelo menos 40 mil contos todos os anos na Italia (REBOUÇAS, 1898 apudROQUETTE-PINTO, 1933ROQUETTE-PINTO, Edgard. Parques Nacionais. Revista Nacional de Educação, Rio de Janeiro, ano 1, n. 11 e 12, p. 54-56, ago./set. 1933., p. 54, grifo original).

Além de turista, o sujeito desses espaços também é aquele que deve ser educado. Afinal, a ideia de educação se faz presente nos diferentes momentos da história das UCs e, em especial, do PNI. Aqui, interessa-nos relacionar como essa noção veio produzindo, de forma articulada, os conhecimentos e sujeitos dessa educação que, a partir dos anos de 1970, foi nomeada de EA. Na década de 1950, por exemplo, na administração do engenheiro agrônomo Wanderbilt Duarte de Barros, “um dos pioneiros do conservacionismo brasileiro” (BRANDÃO, 2017BRANDÃO, Júlia Lima Gorges. O Conservacionismo em Ação: o Parque Nacional de Itatiaia e a Administração de Wanderbilt Duarte de Barros (1943-1957). Boletim de Pesquisa do Parque Nacional do Itatiaia, n. 28, 63 p., nov. 2017., p. 1, grifo original), foi criado o Museu da Flora e Fauna no interior do PNI, hoje nomeado Centro de Visitantes. Além disso, no seu livro sobre esse Parque, Barros (1955, p. 54) afirma que esse é um “empreendimento de fins poliangulares: conservacionista, científico, educativo e turístico”. A interface entre educação e lazer transborda em diferentes momentos de seu livro:

Outros ângulos de seqüência dos Parques Nacionais são estudo, extensão educativa e recreativismo. Figura, entretanto - repiso o aspecto - o Parque Nacional, caracteristicamente no Brasil, como centro de conservação do recurso natural - centro dinâmico, permanente - e como tal deve ser visto, tido, tomado. Só por intermédio dêle haverá local primitivo assegurado para o estudo de Ciências Naturais; só assim êsses estudos serão acessíveis a todos que saberão dos elementos contidos nas flora, fauna, clima, topografia, solo e minerais preservados. Apenas com êsses sítios, afinal, se sentirão felizes, seguros da natureza, quantos a busquem como viajantes, diletantes, desportistas (BARROS, 1955BARROS, Wanderbilt Duarte de. Parque Nacional do Itatiáia. Ministério da Agricultura, Serviço de Informação Agrícola, 1955., p. 7-8).

Tal entendimento dos visitantes como turistas dialoga com o movimento do próprio Governo Federal quando, em meio à inauguração oficial do Parque, incentivou a criação de hotéis no entorno do Itatiaia para abrigar esse público, relacionando o turismo com a movimentação da economia. Enunciados relativos à renda dos sujeitos turistas também aparecem anos depois, na década de 1980, naquele que provavelmente foi o primeiro documento especificamente voltado para a EA no PNI: o Plano de Educação Ambiental para o Parque Nacional do Itatiaia, publicado pela Associação Pró-Parque Nacional do Itatiaia (APROPANI, 1989). Para além da renda como uma categoria que define e normaliza quem é esse visitante, podemos perceber um juízo de valor quanto à “inteligência” dessas pessoas quando o documento descreve o público do Parque como pertencente à “classe média com nível de intelectualidade melhor desenvolvido. Apesar da estatística incipiente não é difícil de se chegar a esta conclusão porque a locomoção depende de veículo próprio, despesas com alimentação e até mesmo de hospedagem para o visitante...” (APROPANI, 1989, p. 10).

Os processos de significação dos visitantes também se materializam em documentos explicitamente interessados em traçar um “perfil” dos mesmos por meio de entrevistas. O próprio Plano de Educação Ambiental para o Parque Nacional do Itatiaia contém uma pesquisa de opinião junto a 330 visitantes do Parque realizada entre setembro e outubro de 1988. No que diz respeito aos dados de identificação, o documento expõe as categorias que, segundo seus autores, eram as mais significativas para a construção do referido “perfil”. São elas: estado onde mora; nível de instrução; sexo; idade; nacionalidade (APROPANI, 1989). Outro documento que se propõe a traçar o “perfil” do visitante do PNI - por meio de entrevistas realizadas em 2011 - é o Plano de Manejo, veiculado em 2014 (BARRETO et al., 2014BARRETO, Cristiane Gomes; CAMPOS, Juliana Bragança; ROBERTO, Douglas Mendes; ROBERTO, David Mendes; SCHWARZSTEIN, Naíra Teixeira; ALVES, Gustavo Seijo Goto; COELHO, Welington. Plano de Manejo do Parque Nacional do Itatiaia. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: Brasília, 2014, 491 p.). Nele, a quantidade de pessoas entrevistadas não foi divulgada; quanto às categorias utilizadas, temos: origem do visitante; gênero; faixa etária; escolaridade; horário de visitação; quantidade de visitas ao PNI ao longo da vida etc. Nesse documento (BARRETO et al., 2014), tais categorias foram avaliadas diferencialmente nos dois principais setores do Parque: a Parte Baixa (onde é possível, com dificuldades, chegar de ônibus) e a Parte Alta (inacessível via transporte público).

Um exemplo do modo como a construção desse ‘perfil’ tem participado da constituição de quem é o visitante do PNI refere-se à análise da profissão dos entrevistados, assim enunciada no Plano de Manejo: “enquanto na Parte Baixa há uma melhor distribuição entre diferentes profissões que necessitam ou não de graduação. Na Parte Alta ocorre a concentração de algumas profissões como engenharia, medicina e advocacia” (BARRETO et al., 2014BARRETO, Cristiane Gomes; CAMPOS, Juliana Bragança; ROBERTO, Douglas Mendes; ROBERTO, David Mendes; SCHWARZSTEIN, Naíra Teixeira; ALVES, Gustavo Seijo Goto; COELHO, Welington. Plano de Manejo do Parque Nacional do Itatiaia. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: Brasília, 2014, 491 p., encarte 3, p. 97). Afinal, ao analisar, diferencialmente em relação aos setores, quais foram os atrativos visitados pelos entrevistados, o documento também enuncia quem é o público:

Nas entrevistas aplicadas na Parte Baixa do Parque ocorreu uma quantidade relativamente grande de respostas generalistas, como a “visitação à Parte Baixa”, “visita a cachoeiras” e “visitas a trilhas”, sem citar nomes de atrativos específicos (Figura 3-79) 4 4 A Figura em questão é um gráfico de barras que representa a porcentagem de respostas dos visitantes quanto ao local visitado: Parte Baixa geral (21%); Cachoeira - geral (20%); Centro de Visitantes (17%); Véu de Noiva (15%); Lago Azul (10%); Maromba (7%); Trilhas - geral (6%); Mirante Último Adeus (3%); Três Picos (1%). . Isso se deve principalmente pelas características do ambiente e do público (BARRETO et al., 2014BARRETO, Cristiane Gomes; CAMPOS, Juliana Bragança; ROBERTO, Douglas Mendes; ROBERTO, David Mendes; SCHWARZSTEIN, Naíra Teixeira; ALVES, Gustavo Seijo Goto; COELHO, Welington. Plano de Manejo do Parque Nacional do Itatiaia. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: Brasília, 2014, 491 p., encarte 3, p. 100).

Outro aspecto que vale assinalar sobre a constituição dos sujeitos visitantes a partir do “perfil” é o meio de transporte para o acesso ao PNI: “o transporte mais utilizado para visitar o Parque é o carro, representando 88% na Parte Baixa e 93% na Parte Alta” (BARRETO et al., 2014BARRETO, Cristiane Gomes; CAMPOS, Juliana Bragança; ROBERTO, Douglas Mendes; ROBERTO, David Mendes; SCHWARZSTEIN, Naíra Teixeira; ALVES, Gustavo Seijo Goto; COELHO, Welington. Plano de Manejo do Parque Nacional do Itatiaia. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: Brasília, 2014, 491 p., encarte 3, p. 106), seguido de ônibus de excursão (6% na Parte Baixa e 3% na Parte Alta), van (4% e 3%, respectivamente) e motocicleta (ambas com 1%). Essa associação entre as profissões e os meios de transporte produz alquimicamente os visitantes do PNI, criando limites que categorizam e normalizam quem se encaixa e, simultaneamente, quem é excluído das ações do Parque destinadas aos seus visitantes.

No diálogo com Thomas Popkewitz (2020POPKEWITZ, Thomas Stanley. Estudos curriculares, História do Currículo e teoria curricular: a razão da razão. Em Aberto, Brasília, v. 33, n. 107, p. 47-68, jan./abr. 2020. Disponível em: http://emaberto.inep.gov.br/ojs3/index.php/emaberto/article/view/4555. Acesso em: 30 set. 2022.
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), assumimos que a inclusão e a exclusão não são fenômenos opostos, que se constituem de modo independente; diferentemente, a produção da inclusão cria limites que delimitam e definem, ao mesmo tempo, a exclusão. Ou seja, a categorização de populações específicas para a inclusão é um movimento que está igualmente inserido nos sistemas de pensamento que construíram uma lógica racional de fatores que produzem diferença, divisão e abjeção. Nesse processo, ocorre o que o autor nomeia de duplo gesto, onde, de um lado, há o gesto da esperança da inclusão, a partir de políticas, e, “relacionado a esse gesto (seu duplo), são simultaneamente engendrados medos em relação às populações que ameaçam a esperança de formar esses tipos de pessoas” (LIMA & GIL, 2016LIMA, Ana Laura Godinho; GIL, Natália de Lacerda. Sistemas de pensamento na educação e políticas de inclusão (e exclusão) escolar: entrevista com Thomas S. Popkewitz. Educ. Pesqui., vol. 42, n. 4, São Paulo, p. 1127-1151, out./dez. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ep/a/KL8cBfPKQCQ5bVbxDFdTpKj/abstract/?lang=pt. Acesso em: 30 set. 2022.
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, p. 1.142).

No entanto, esse modo de produzir o sujeito visitante para quem se destinam as ações do PNI esteve em movimento constante, aglutinando e colocando em disputa significados diversos. Wanderbilt Duarte de Barros, por exemplo, décadas antes, além de introduzir o conceito de cultura no debate ambiental em torno dos Parques, busca ampliar o acesso ao PNI ao significar o visitante como povo. Segundo Júlia Brandão (2017BRANDÃO, Júlia Lima Gorges. O Conservacionismo em Ação: o Parque Nacional de Itatiaia e a Administração de Wanderbilt Duarte de Barros (1943-1957). Boletim de Pesquisa do Parque Nacional do Itatiaia, n. 28, 63 p., nov. 2017., p. 15, grifos nossos), para esse engenheiro agrônomo, a área de um Parque Nacional “deveria ser estudada, identificada e assim estruturada para que pudesse desempenhar o total alcance do objetivo de um parque nacional, que seria fonte de educação, de cultura popular, de esportismo, de documentário vivo e de pesquisa biológica”. Tal iniciativa de popularizar o PNI e o acesso à natureza ao preencher o significante visitante com o termo povo pode ser observada na apresentação do seu livro:

Esta contribuição se destina a preencher uma lacuna na atividade do Parque Nacional do Itatiaia. Não é um estudo: é, antes, elemento informativo escrito para o povo. Destina-se àqueles que desejem saber o que é o Parque Nacional do Itatiaia, onde está êle, para que serve, o que há na sua natureza. Por outro lado, não é um informe absolutamente completo; entretanto, é claro que nêle coloco tudo quanto de mais atual e de mais certo existe, atinente aos conhecimentos da natureza e da região (BARROS, 1955BARROS, Wanderbilt Duarte de. Parque Nacional do Itatiáia. Ministério da Agricultura, Serviço de Informação Agrícola, 1955., p. 5, grifos nossos).

A defesa de uma educação para o povo extrapola os documentos oficiais do PNI e encontra confluência em artigo de opinião publicado no Jornal do Commercio (RJ) em 1938. Nele, o autor anônimo defendia que a educação das crianças deveria ser realizada em contato íntimo com a natureza, de maneira a estabelecer sentimentos de amor e proteção. Em meio a tal discurso conservacionista, o autor sublinha que a criação de “parques de recreio e preservação” pelos estadunidenses possui como objetivo principal a finalidade educativa. Diz que:

É dispensável encarecer, aqui, o objetivo de um parque nacional. Os americanos, os japonezes, os argentinos se têm encarregado, exuberantemente, de exaltar as suas finalidades: e, agora mesmo, o nosso paiz acaba de mostrar, pelo seu esclarecido governo, comprehender o acerto dessas organizações, criando o Parque Nacional de Itatiaia, recebido com as mais inequívocas provas de contentamento, não só pelos nossos meios scientificos, mas, tambem, pelos sportivos e recreativos, como um incentivo ao estudo, da nossa historia natural e como um pretexto á realização de excursões pelas florestas virgens, em contacto com a Natureza agreste, onde se podem apreciar em franca liberdade os seres que a guarnecem!

Nosso paiz, comquanto ainda pouco povoado e coberto de immensas áreas florestaes, já se resente, nas proximidades das grandes cidades, da falta desses recintos apraziveis de desafogo da população que trabalha. Cabendo aos governos a educação do povo, a elles cabe o dever precipuo de proporcionar os meios de se desenvolver essa educação de maneira sadia, em logar proprio, habituando as crianças, desde a mais tenra idade, ao conhecimento, ao amor, á admiração dos reinos da natureza em toda a sua integridade.

(...)

Nunca são demais, os parques de recreio e preservação. Dão disso exemplo os americanos, seus inventores com o fim educativo (A. V., 1938, p. 4, grifos nossos).

Também nos anos 2000, vimos emergir preocupações com o povo como público visitante do PNI. No Relatório das Realizações do Parque Nacional do Itatiaia no Quatriênio 2000/2001/2002/2003, por exemplo, sob a gestão de Léo Nascimento, então Chefe do PNI, a significação dos visitantes passou a incluir a comunidade, isto é, os moradores do entorno, para quem as ações deveriam articular cultura e arte (NASCIMENTO, 2004NASCIMENTO, Léo. Relatório das Realizações do Parque Nacional do Itatiaia no Quatriênio 2000/2001/2002/2003. Relatório técnico, 2004. 12 p.). Foi nesse contexto que o Centro de Visitantes, enunciado como o “coração sócio-cultural-científico do Parque”, abrigou exposições artísticas de fotógrafos, pintores e artesãos locais, sendo enunciado como o alvo de “adequações no seu espaço físico para melhor acomodar este público” (NASCIMENTO, 2004, p. 6-7). Para essa parcela dos visitantes, portanto, que foi sendo identificada como povo, as iniciativas do PNI deveriam educá-los de forma mais ampla, para além do amor e da preservação da natureza, assumindo uma ausência de cultura artística.

É em direção semelhante - isto é, da ausência, daquilo que falta ao povo - que o Plano de Educação Ambiental para o Parque Nacional do Itatiaia (APROPANI, 1989) enuncia o público como um “verdadeiro transtorno para a administração do Parque”, uma vez que há um “precaríssimo atendimento ao público que ainda carece de uma prática educativa quanto à utilização das áreas naturais, ainda tendo de conciliar o uso de áreas de interesse turístico com as de preservação permanente” (APROPANI, 1989, p. 14). De acordo com tal documento:

A falta de pessoal treinado e capacitado deixa escapar a oportunidade de melhor instruir e esclarecer o visitante a respeito da finalidade do Parque e da necessidade de preservar o meio ambiente (APROPANI, 1989, p. 14).

Assim, nas disputas por significar os sujeitos que se posicionam como visitantes do PNI, aqueles para quem as iniciativas vinham se destinando, emergiu um entendimento de público como agente degradador da natureza, um “problema” que necessita de fiscalização. Nesse contexto, o documento anteriormente mencionado destaca “a criação de grupos de monitoramento aos usuários, objetivando uma educação ambiental adequada” (APROPANI, 1989, p. 49, grifos nossos). Em direção semelhante, o Plano de Manejo do período (RAMOS et al., 1982RAMOS, Paulo Cezar Mendes; SOUZA, Olga Camisão de; LIMA, Augusto Avelino de Araújo; SÁ, Luiz Fernando S. Nogueira de. Plano de Manejo: Parque Nacional do Itatiaia. Brasília: Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF)/Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), 1982.) já indicava a coleta de plantas, o acúmulo de lixo, a destruição da vegetação e os focos de incêndio como acontecimentos que ocorrem em decorrência da “falta de um trabalho educativo e de uma maior fiscalização” (RAMOS et al., 1982, p. 76). Mais de quarenta anos depois, com vistas a gerenciar o uso público do Parque, o PNI criou um setor responsável por esta pasta. O Plano de Manejo de 2014 (BARRETO et al., 2014BARRETO, Cristiane Gomes; CAMPOS, Juliana Bragança; ROBERTO, Douglas Mendes; ROBERTO, David Mendes; SCHWARZSTEIN, Naíra Teixeira; ALVES, Gustavo Seijo Goto; COELHO, Welington. Plano de Manejo do Parque Nacional do Itatiaia. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: Brasília, 2014, 491 p.), ao discorrer sobre as principais atividades desse setor, resgata essa preocupação com a fiscalização dos visitantes:

A visitação no Parque Nacional do Itatiaia é ordenada pela Coordenação do Uso Público que foi criada em 2006 e tem como principais ações a orientação do fluxo da visitação na UC, o monitoramento da conduta de visitantes nas trilhas e nos atrativos naturais como cachoeiras e rios, além de monitorar e controlar o movimento de entrada e saída de veículos, procurando manter um número desejável de turistas no ambiente do PNI (BARRETO et al., 2014BARRETO, Cristiane Gomes; CAMPOS, Juliana Bragança; ROBERTO, Douglas Mendes; ROBERTO, David Mendes; SCHWARZSTEIN, Naíra Teixeira; ALVES, Gustavo Seijo Goto; COELHO, Welington. Plano de Manejo do Parque Nacional do Itatiaia. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: Brasília, 2014, 491 p., encarte 3, p. 90, grifos nossos).

Esse “monitoramento da conduta de visitantes” ressignificou, de certo modo, a preocupação conservacionista de que os sujeitos devem amar para proteger. O Código Florestal de 1934 já enunciava, por exemplo, que ao Conselho Florestal compete a difusão em todo o país de uma “educação florestal e de protecção á natureza em geral” (BRASIL, 1934, Art. 102, alínea f, grifos nossos). Três décadas depois - isto é, nos anos de 1960 -, o novo Código Florestal permaneceu adotando o termo “educação florestal”; tal utilização, no entanto, passou a estar explicitamente associada ao espaço escolar (BRASIL, 1965). Lê-se no Art. 42:

Art. 42. Dois anos depois da promulgação desta Lei, nenhuma autoridade poderá permitir a adoção de livros escolares de leitura que não contenham textos de educação florestal, previamente aprovados pelo Conselho Federal de Educação, ouvido o órgão florestal competente.

§ 1° As estações de rádio e televisão incluirão, obrigatoriamente, em suas programações, textos e dispositivos de interêsse florestal, aprovados pelo órgão competente no limite mínimo de cinco (5) minutos semanais, distribuídos ou não em diferentes dias.

§ 2° Nos mapas e cartas oficiais serão obrigatoriamente assinalados os Parques e Florestas Públicas.

§ 3º A União e os Estados promoverão a criação e o desenvolvimento de escolas para o ensino florestal, em seus diferentes níveis (BRASIL, 1965, grifos nossos).

É em tal cenário que a EA vai ganhando força como prática discursiva, organizando alquimicamente (POPKEWITZ, 2001POPKEWITZ, Thomas Stanley. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: Artmed, 2001.) o modo de pensar os conhecimentos “bons” e “adequados” em articulação com a constituição dos sujeitos visitantes a serem ensinados. Isso veio ocorrendo mesmo antes de o termo ‘Educação Ambiental’ ter sido cunhado; afinal, ele emergiu apenas na década de 1960, se popularizando nas duas décadas subsequentes. Essa ocorrência, no entanto, veio criando as condições para a emergência do termo em práticas discursivas que desde a criação do PNI vieram participando dos jogos de saber e poder que constituem aquilo que hoje nomeamos como EA. A relação com a escola, explícita e obrigatória no Código Florestal dos anos de 1960 (BRASIL, 1965), é um efeito de todo esse processo, borrando os limites da educação em espaços formais e não-formais ao produzir conhecimentos atravessados pela lógica disciplinar que historicamente veio definindo e categorizando aquilo que nomeamos como escolar. Na próxima seção, aprofundamos essa questão, focalizando no modo como o PNI veio produzindo esses conhecimentos na relação com a lógica escolar.

Sujeitando o conhecimento de EA à lógica escolar

Nos anos de 1980, os documentos relativos ao PNI já enunciavam os termos educação e escola para descrever as finalidades do Parque como instituição social. O Plano de Manejo de 1982 foi explícito ao afirmar que um dos resultados esperados da atuação do Subprograma de Educação era a “integração do Parque no contexto educacional brasileiro” (RAMOS et al., 1982RAMOS, Paulo Cezar Mendes; SOUZA, Olga Camisão de; LIMA, Augusto Avelino de Araújo; SÁ, Luiz Fernando S. Nogueira de. Plano de Manejo: Parque Nacional do Itatiaia. Brasília: Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF)/Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), 1982., p. 94). Já o Plano de Educação Ambiental, por exemplo, descreveu dois setores educacionais: um de “educação interna”, para atuação dos recursos humanos do PNI junto aos visitantes nas áreas de uso público; outro de “educação externa”, voltado para as “propriedades particulares que ocupam a sua periferia, às escolas da vizinhança e à comunidade da região” (APROPANI, 1989, p. 30, grifos nossos). Tais finalidades, que se movimentaram na direção da educação e da escola, produziram efeitos no modo como o Parque veio produzindo as suas atividades educativas. Lê-se no relatório do quadriênio 2000/2003 (NASCIMENTO, 2004NASCIMENTO, Léo. Relatório das Realizações do Parque Nacional do Itatiaia no Quatriênio 2000/2001/2002/2003. Relatório técnico, 2004. 12 p.):

O Núcleo de Educação Ambiental do Parque Nacional do Itatiaia vem procurando diversificar suas atividades, com a implantação de dinâmicas de grupo, teatro de fantoches e brincadeiras para um melhor atendimento ao público visitante, mais precisamente às escolas de primeiro e segundo graus, que solicitam freqüentemente visitas monitoradas. (...) No ano de 2000, 28 Municípios do Estado do Rio de Janeiro e Minas Gerais, participaram do Programa de Educação Ambiental do Parque, com a inscrição de 59 escolas e 2.250 estudantes. Em 2001 foram registrados 2.962 alunos inscritos. Em 2002 foram 2.789 alunos atendidos. Em 2003 foram 4.860 alunos atendidos (NASCIMENTO, 2004NASCIMENTO, Léo. Relatório das Realizações do Parque Nacional do Itatiaia no Quatriênio 2000/2001/2002/2003. Relatório técnico, 2004. 12 p., p. 5, grifos nossos).

O Núcleo de Educação Ambiental (NEA) foi criado em 1997 e era inicialmente formado “por duas biólogas, um técnico educador ambiental e contou com a participação temporária de um médico veterinário e de vários voluntários” (BAUMGRATZ, 2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014., p. 144). De acordo com o Plano de Manejo de 2014, esse espaço “tem o objetivo principal de inclusão socioambiental dos professores e alunos da rede escolar dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Seu principal projeto é o Programa de Visitas Orientadas, com média anual de seis mil pessoas atendidas” (BARRETO et al., 2014BARRETO, Cristiane Gomes; CAMPOS, Juliana Bragança; ROBERTO, Douglas Mendes; ROBERTO, David Mendes; SCHWARZSTEIN, Naíra Teixeira; ALVES, Gustavo Seijo Goto; COELHO, Welington. Plano de Manejo do Parque Nacional do Itatiaia. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: Brasília, 2014, 491 p., p. xii, grifos nossos). Ao assumir que o principal objetivo do NEA está diretamente vinculado à escola, esse documento expõe um estreitamento da relação entre as ações de Educação Ambiental produzidas no PNI com a lógica escolar.

Assim, para além da relação com os outros visitantes do Parque, a existência do NEA e de seu Programa de Visitas Orientadas possibilitou que as ações educativas passassem a ser percebidas (e nomeadas) como ações de EA. A estreita relação entre o NEA e as escolas do entorno foi tão forte que, de acordo com Baumgratz (2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014., p. 144), o Colégio Estadual Dr. João Maia, durante uma visita orientada ao Parque em 2006, decidiu organizar uma “Jornada de Educação Ambiental que passou a fazer parte do calendário escolar”. O projeto contou com 10 edições (2006 a 2015) e envolveu cerca de 300 pessoas (FERREIRA & LACERDA, 2018FERREIRA, Genise de Moura Freitas; LACERDA, Fátima Kzam Damaceno de. Jornada de Educação Ambiental do Colégio Estadual Doutor João Maia: uma construção coletiva. Educação Ambiental em Ação, Novo Hamburgo, v. 16, n. 63, mar./jun. 2018. Disponível em: https://www.revistaea.org/pf.php?idartigo=3062. Acesso em: 18 out. 2022.
https://www.revistaea.org/pf.php?idartig...
).

Outra ação que explicita a relação entre escola e PNI foi a criação do Projeto O Parque Nacional vai à Escola: Um olhar sobre a Educação Ambiental na Transversalidade Curricular, em 2012, pela Câmara Técnica de Educação Ambiental (CTEA), órgão do Conselho Consultivo do PNI, em parceria com a Instituição de Ensino Superior parceira Associação Educacional Dom Bosco (AEDB) e as Secretarias de Educação de Itatiaia e Resende (BAUMGRATZ, 2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014.). Nele, a finalidade era “proporcionar mudanças nas relações pedagógicas, de modo a se construir nova mentalidade em relação à qualidade de vida, considerando o tipo de convivência que se mantém com a natureza e que implica atitudes, valores e ações” (BARRETO et al., 2014BARRETO, Cristiane Gomes; CAMPOS, Juliana Bragança; ROBERTO, Douglas Mendes; ROBERTO, David Mendes; SCHWARZSTEIN, Naíra Teixeira; ALVES, Gustavo Seijo Goto; COELHO, Welington. Plano de Manejo do Parque Nacional do Itatiaia. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: Brasília, 2014, 491 p., encarte 3, p. 86).

Em meio às disputas de sentidos em torno dos conhecimentos que poderiam ser nomeados como EA nas ações educativas do Parque, Nair Baumgratz (2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014.) - uma das criadoras do NEA e coordenadora do projeto desde seu início em 1997 até 2010 - questiona o Plano de Ação Emergencial para o Parque Nacional do Itatiaia (IBAMA, 1994) quando este afirma que a EA ainda não havia sido implementada no Parque. Segundo essa autora, registros internos demonstravam que, no início da década de 1990, atividades de EA eram efetivamente produzidas. No entanto, ainda de acordo com a autora, o público-alvo dessas atividades não eram os estudantes ou os próprios visitantes, mas os professores da rede pública municipal:

Os dados apresentados a seguir foram obtidos por meio de revisão documental (relatórios, textos, folders, apostilas e e-mails do NEA/PNI). Segundo esses registros internos, a Educação Ambiental (EA) no Parque Nacional do Itatiaia iniciou-se em 1992 e manteve-se atuante até 1993, com uma proposta de trabalho por meio de cursos de atualização com abordagem da temática ambiental e conhecimentos sobre o Parque, destinados a professores da rede pública municipal, do 1° e 2° graus (BAUMGRATZ, 2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014., p. 136).

Para Baumgratz (2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014.), a EA foi reativada com a fundação do NEA, em 1997, sobretudo em decorrência da criação do Programa de Visitas Orientadas, com a oferta de agendamento das atividades tanto para grupos escolares quanto para grupos de qualquer natureza. No entanto, dados levantados por essa autora indicam “que o público de maior incidência referia-se justamente ao Ensino Fundamental, em especial o terceiro e quarto ciclo, correspondente ao 6º, 7º, 8º e 9º anos” (BAUMGRATZ, 2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014., p. 137). De acordo com os documentos levantados pelo Plano de Manejo de 2014, o Programa de Visitas Orientadas já havia atendido a mais de 60 mil pessoas desde a criação do NEA até a elaboração do Plano. Segundo o documento:

As escolas representam mais de 90% das visitas registradas pelo NEA, de 1997 a 2010. Foram atendidos nesse período grupos de diferentes níveis de escolaridade e estados brasileiros, com a média de atendimento de 51 escolas por ano. O número de grupos atendidos é crescente até 2006, sofre queda em 2007 devido a incêndio e reforma do Centro de Visitantes. Na sequência retoma o crescimento, chegando a 78 grupos em 2010 (BARRETO et al., 2014BARRETO, Cristiane Gomes; CAMPOS, Juliana Bragança; ROBERTO, Douglas Mendes; ROBERTO, David Mendes; SCHWARZSTEIN, Naíra Teixeira; ALVES, Gustavo Seijo Goto; COELHO, Welington. Plano de Manejo do Parque Nacional do Itatiaia. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade: Brasília, 2014, 491 p., encarte 3, p. 86, grifos nossos).

Percebemos que o reconhecimento e nomeação das ações educativas elaboradas no PNI sendo alquimicamente produzidas e significadas como EA ocorreram principalmente no âmbito desse movimento de criação do NEA e de seu Programa de Visitas Orientadas, que foi se voltando para um perfil de visitante associado ao significante escolar. Nesse processo, os conhecimentos a serem transmitidos foram sendo atravessados pela lógica disciplinar com a seleção de temáticas tradicionalmente presentes nos currículos das disciplinas escolares Ciências e Biologia - como “ecologia”, “fauna”, “flora” e “ciclos biogeoquímicos” -, que se associavam àquelas mais centralmente ligadas à existência do Parque, tais como “legislação ambiental” e as próprias noções de “unidades de conservação” e “unidades de produção” (BAUMGRATZ, 2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014., p. 136). Afinal, como já anteriormente destacado, para Thomas Popkewitz (2001POPKEWITZ, Thomas Stanley. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: Artmed, 2001. e 2020), os processos alquímicos envolvem a transformação de conhecimentos em meio a um atravessamento de feixes discursivos que constituem o que devemos saber (e não saber) e quem devemos ser (e não ser) em termos de EA.

Foi também criado, no ano de 2000, um Laboratório Didático nas dependências do PNI especificamente voltado para a recepção desses mesmos visitantes, com vistas a “aguçar o interesse em aprender, podendo gerar, intensificar ou multiplicar as relações entre saberes (SASSERON e CARVALHO, 2011SASSERON, Lúcia Helena; CARVALHO, Anna Maria Pessoa de. Construindo argumentação na sala de aula; a presença do ciclo argumentativo, os indicadores de alfabetização científica e o padrão de Toulmin. Ciência & Educação, Bauru, v. 17, n. 1, p. 97-114, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ciedu/a/CyDQN97T7XBKkMtNfrXMwbC/abstract/?lang=pt. Acesso em: 20 out. 2022.
https://www.scielo.br/j/ciedu/a/CyDQN97T...
) que consequentemente, podem vir a facilitar a construção do conhecimento científico, especialmente em ambientes naturais (SENICIATO e CAVASSAN, 2008)” (BAUMGRATZ, 2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014., p. 142).

A lógica disciplinar que veio organizando o tempo e o espaço escolar emergiu, portanto, como aquela que permitiu e organizou, por meio de processos alquímicos, a existência da própria EA como prática discursiva na instituição. Para Baumgratz (2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014., p. 138), por exemplo, “a educação ambiental deu um salto em qualidade [no PNI] ao assumir ações planejadas e direcionadas ao público alvo”. Essa defesa de um planejamento direcionado aos visitantes do Parque tomou como referência um conjunto de práticas escolarizadas e assumiu uma função explicitamente pedagógica da instituição na relação com os seus visitantes. É nessa mesma direção que, para a autora, “o problema maior [enfrentando pelo Parque] é que grande parte dos visitantes, inclusive os escolares, fazem as caminhadas seguindo unicamente a conotação de recreação e lazer, deixando de lado o caráter pedagógico (...)” (BAUMGRATZ, 2014BAUMGRATZ, Nair Dias Paim. Educação ambiental além dos muros da escola: uma experiência no Parque Nacional do Itatiaia. 2014. 299 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente) - Centro Universitário de Volta Redonda, Fundação Oswaldo Aranha, Volta Redonda, 2014., p. 129-130) desse tipo de atividade e, portanto, o quanto ela pode nos ensinar. Para enfrentar essa questão, o PNI deveria cada vez mais investir em ações formativas que escolarizassem os conhecimentos de EA a serem transmitidos na relação com os sujeitos visitantes das escolas.

Considerações finais

Como já explicitado, ao historicizar o modo como o PNI produziu conhecimentos que, ao longo do tempo, vieram participando dos jogos de verdade que constituem a EA no Brasil, buscamos evidenciar as relações desses conhecimentos com a constituição dos sujeitos visitantes do Parque. Tal análise nos permitiu problematizar, portanto, noções de sujeito e de conhecimento que vieram sendo produzidas e circularam em diferentes tempos históricos na instituição, em um movimento que, alquimicamente, veio criando as condições de emergência daquilo que hoje nomeamos como EA. Afinal, ao enunciar, nos diversos documentos/monumentos do arquivo, quem é o seu público, o Parque veio nos informando, também, quem não é ou não pode ser parte desse “perfil”; de modo semelhante, ao definir quando inicia (ou reativa) ações de EA, a instituição explicita as disputas que puderam constituir historicamente esses conhecimentos no país, impondo limites para o que é e o que não é ou não pode ser considerado EA.

Em um primeiro movimento de análise, evidenciamos os diversos sentidos que o significante visitante assumiu nos diferentes tempos históricos. Comprometidas com uma postura epistêmica da História do Currículo como História do Presente, percebemos o visitante do PNI sendo significado como “turista” em diversos momentos históricos, ainda que tal significado tenha se transformado ao longo do tempo. Assim, ora tidos como ‘viajantes ricos’, ora como “povo”, tais sujeitos foram sendo alquimicamente fabricados à medida que encarnaram tanto o medo da degradação ambiental - como podermos notar nos movimentos de “monitoramento” e “fiscalização” - quanto a esperança da conservação - ao evocar a sensibilização para com a natureza com a finalidade de “protegê-la”.

Em meio a tais processos de significação, notamos que os visitantes são frequentemente enunciados, direta ou indiretamente, como aqueles que devem ser educados. Assim, em um segundo movimento de análise, discutimos sobre o conhecimento em disputa nas práticas de EA enunciadas como aquelas responsáveis por formar os sujeitos visitantes em um espaço não formal de ensino como o PNI. Em trabalho anterior (TOLEDO-QUIROGA; OLIVEIRA; FERREIRA, 2021TOLEDO-QUIROGA, Kemily; OLIVEIRA, Cecília Santos de; FERREIRA, Marcia Serra. Interdisciplinaridade e disciplinarização da Educação Ambiental nos currículos formais: uma análise de produções acadêmicas. In: Jaqueline Rabelo de Lima; Mario Cezar Amorim de Oliveira; Nilson de Souza Cardoso (Org.). Itinerários de resistência: pluralidade e laicidade no ensino de Ciências e Biologia. Campina Grande: Realize Editora, 2021. p. 3678-3688.), ao investigarmos a produção acadêmica dos sentidos de interdisciplinaridade e disciplinarização da EA, identificamos a fixação do primeiro termo (a interdisciplinaridade) como uma característica intrínseca à área, o que produz efeitos em enunciados sobre a dificuldade/impossibilidade de executá-la de maneira “verdadeira” e “correta” na escola, ambiente marcado pela disciplinarização e pela fragmentação dos conhecimentos. Partindo desta defesa da interdisciplinaridade - supostamente alcançável em espaços não formais de ensino por sua característica extramuros escolares -, que parece hegemônica no campo da EA, lançamos um olhar atento sobre as práticas de EA no PNI.

No presente trabalho, demonstramos que ao longo dos anos os processos de disputa pela significação da EA no PNI - mesmo antes de ser assim nomeada - vieram se aproximando, de maneiras distintas, da escola e do escolar. Em nosso arquivo, sobretudo naqueles documentos/monumentos focados na EA, vimos menções ao universo escolar, seja a partir de atividades realizadas para professores da rede pública municipal, seja com a criação do projeto O Parque Nacional vai à Escola. No que diz respeito ao NEA, também demonstramos que seu Programa de Visitas Orientadas atendia, majoritariamente, o público escolar, representando mais de 90% deste atendimento. Além disso, pudemos notar também a criação de um Laboratório Didático, bem como o entendimento que tais atividades escolarizadas representavam um “salto de qualidade” da EA que emergiu e foi nomeada no Parque.

Por fim, ao assumirmos aqui as lentes teóricas da abordagem discursiva, oportunizamos formas outras de significar a EA como uma área do conhecimento que vem alquimicamente constituindo os seus conhecimentos e sujeitos. Nesse processo, percebemos o quanto a EA pôde emergir como uma finalidade explícita do PNI ao ser significada na relação com o público escolar. Em tal movimento, os conhecimentos a serem transmitidos foram sendo alquimicamente transformados na relação com a lógica disciplinar de organização do tempo e do espaço da escola. Afinal, essa aproximação da escola e de seus sujeitos contribuiu para movimentar os sentidos de conhecimento produzidos no espaço do Parque e, simultaneamente, os de público visitante, com um “borramento” de limites entre as duas instituições que permitiu instaurar um entrelugar de sujeitos/visitantes/estudantes em meio a um conhecimento de EA disciplinarizado. Assim, ainda que a EA venha sendo amplamente enunciada como um campo interdisciplinar, a investigação aqui realizada evidencia a relação íntima de constituição dessa área do conhecimento com a escola e sua lógica disciplinar, em um movimento que veio (e permanece) ocorrendo tanto nos espaços formais de ensino e pesquisa quanto naqueles como o PNI.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    O PNI abrange os municípios de Bocaina de Minas e Itamonte, no Estado de Minas Gerais (MG), e os municípios de Itatiaia e Resende, no Estado do Rio de Janeiro (RJ), localizando-se ainda próximo ao limite com o Estado de São Paulo (SP). Ele está inserido no Bioma Mata Atlântica, na Serra da Mantiqueira (BARRETO et al., 2014).
  • 2
    Thomas Popkewitz, assim como outros autores de língua inglesa, preferem o significante matéria para nomear os componentes dos currículos escolares, deixando o significante disciplina para os currículos universitários. Em nossas produções, diferentemente, seguimos uma tradição brasileira de utilizar o termo disciplina para nomear tanto as disciplinas escolares quanto as disciplinas acadêmicas ou universitárias.
  • 3
    Aqui e em outros trechos retirados de documentos antigos, optamos por transcrever literalmente o conteúdo com a mesma grafia e acentuação tal como constam no original.
  • 4
    A Figura em questão é um gráfico de barras que representa a porcentagem de respostas dos visitantes quanto ao local visitado: Parte Baixa geral (21%); Cachoeira - geral (20%); Centro de Visitantes (17%); Véu de Noiva (15%); Lago Azul (10%); Maromba (7%); Trilhas - geral (6%); Mirante Último Adeus (3%); Três Picos (1%).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2022
  • Aceito
    15 Set 2022
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