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Docências em narrações cristalinas transversalizando como sujeitos do conhecimento: o homem, a natureza e a tecnologia

RESUMO

Objetiva destacar a docência em narrações cristalinas e fabulatórias que interligam como sujeitos do conhecimento o homem, a natureza e a tecnologia e, para tanto, aborda o movimento do pensamento na rede de conversação produzidas em processos de formação continuada com professoras do Ensino Fundamental de um sistema público municipal. Apresenta um campo problemático que se dedica a compreender que movimentos do pensamento são produzidos a partir das narrativas estabelecidas em rede de conversação. Utiliza, para a produção de dados, a observação participante e os registros em diário de campo das narrativas cristalinas e fabulatórias que emergiram na rede de conversação com as personagens-escolas (docentes), que se configuram como imagens-narrativas de pesquisa como imagem-cristal e imagem-fábula. No decorrer da pesquisa, a questão central assume duas dimensões interligadas: por um lado a relação entre imagem-cristal e imagem-fábula potencializando o movimento do pensamento dos docentes; por outro, a relação homem, natureza e tecnologia entendidos como sujeitos do conhecimento. As personagens-escolas, em suas narrativas, visualizam os possíveis na docência para contribuir com uma vida e/ou a constituição de mundos não “antropocenos”, onde os sujeitos do conhecimento são o homem, a natureza e a tecnologia.

Palavras-chave:
Docências; Sujeitos do conhecimento; Narrações cristalinas; Redes de conversação

ABSTRACT

This text aims to highlight teaching in crystalline and fable narratives connecting men, nature, and technology as subjects of knowledge. Thus, it addresses the movement of thought in conversation networks produced in in-service education processes with Elementary and Middle School teachers of a municipal public system. It presents a problematic field dedicated to understanding which thought movements are made from the narratives established in conversation networks. To produce data, we used participant observation and field diary records of the crystalline and fable narratives that emerged in the networks of conversations with the characters-schools (teachers), which are configured as images-narratives of research as crystal-image and fable-image. During the study, the central question assumes two interconnected dimensions. On the one hand, the relationship between the crystal-image and fable-image enhances the movement of teachers’ thinking. On the other hand, the relationships between man, nature, and technology are understood as subjects of knowledge. In their narratives, the school characters visualize the possibilities of teaching to contribute to life and/or the constitution of non-Anthropocene worlds, where the subjects of knowledge are man, nature and technology.

Keywords:
Teaching; Knowledge subjects; Crystalline narratives; Conversation networks

Introdução

Este artigo objetiva destacar a docência em narrações cristalinas e fabulatórias interligando como sujeitos do conhecimento o homem, a natureza e a tecnologia e, para tanto, aborda o movimento do pensamento na rede de conversação produzidas em processos de formação continuada com professoras do Ensino Fundamental de um sistema público municipal. Apresenta um campo problemático que se dedica a compreender que movimentos do pensamento são produzidos a partir das narrativas estabelecidas em redes de conversação. Utiliza, para a produção de dados, a observação participante e os registros em diário de campo das narrativas cristalinas e fabulatórias que emergiram na rede de conversação com as personagens-escolas (docentes), que se configuram como imagens-narrativas de pesquisa como imagem-cristal e imagem-fábula.

No decorrer da pesquisa, a questão central assume duas dimensões interligadas: por um lado a relação entre imagem-cristal e imagem-fábula potencializando o movimento do pensamento dos docentes; por outro, a relação homem, natureza e tecnologia entendidos como sujeitos do conhecimento.

Iniciemos pela segunda dimensão...

Para Agamben (2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008.), estamos diante do “paradigma biopolítico do moderno”. Entretanto, trata-se de uma biopolítica que não se ocupa somente do controle, da normalização, do ajustamento e da gestão da natalidade, sexualidade, saúde, higiene, alimentação (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.); mas também, segundo Buzato (2019BUZATO, Marcelo E. K. O pós-humano é agora: uma apresentação. Trabalhos de Linguística Aplicada, Campinas, SP, v. 58, n. 2, p. 478-495, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/kwmZpNY4WPfqYvbYrKMhPyJ/?lang=pt. Acesso em 27 out. 2022.
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, p. 1), “[...] dos potenciais biológicos, afetivos e comportamentais humanos registrados em textos que não conseguimos ler a olho nu, tais como sequências genômicas extraídas por amadores que se pretendem coautores de sua própria biologia”, ou na aplicação de árvores probabilísticas que permitem às máquinas aprender a fazer, tão bem como nós, coisas que nós mesmos não conseguimos descrever com palavras e, por isso, não nos podem ser ensinadas de volta pela máquina, pelos sistemas neurofisiológicos humanos por algoritmos que nos operam como parte de sistemas cibernéticos que nós julgamos estar operando (BUZATO, 2019BUZATO, Marcelo E. K. O pós-humano é agora: uma apresentação. Trabalhos de Linguística Aplicada, Campinas, SP, v. 58, n. 2, p. 478-495, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/kwmZpNY4WPfqYvbYrKMhPyJ/?lang=pt. Acesso em 27 out. 2022.
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).

Para Pelbart (2016PELBART, Peter P. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições, 2016.), vivemos em “estados de esgotamento”, e, segundo Agamben (2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008.), o contexto do biopoder contemporâneo já não se incumbe de fazer viver nem de fazer morrer, mas de fazer sobreviver.

Trata-se, no homem, de separar cada vez a vida orgânica da vida animal, o não humano do humano [...], a vida vegetativa, prolongada pelas técnicas de reanimação, da vida consciente, até um ponto limite que, como as fronteiras geopolíticas, permanece essencialmente móvel, recua segundo a progresso das tecnologias científicas ou políticas. A ambição suprema do biopoder é realizar no corpo humano a separação absoluta do vivente e do falante, de zoé e bios, do não homem e do homem: a sobrevida (PELBART, 2016PELBART, Peter P. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições, 2016., p. 26).

Para Latour (2000LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora UNESP, 2000.), não existe ciência, tecnologia, natureza e sociedade de forma separada umas das outras, mas sim como uma aliança em redes sociotécnicas nas quais os agentes interagem e se articulam de forma a produzir o conhecimento dentro de um determinado contexto.

Na atualidade, vivemos o esgotamento de todos os fundamentos pelos quais justificamos a arrogância que nos tornou reféns de nossas pretensas certezas, cientificamente comprovadas, assim como pela posição do homem, decretada como centro do mundo - Antropoceno. Essa perspectiva dominante na modernidade nega constantemente a natureza (da qual é somente parte e não senhor) num total descompromisso ético, que não somos capazes de estabelecer e talvez já não adiante intentar (LATOUR, 2000LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora UNESP, 2000.).

Interessa-nos, assim, interrogar os sinais, cada dia mais visíveis, de esgotamento de todas as dicotomias sobre as quais fundamentamos e justificamos a arrogância que nos tornou reféns de nossa própria insensatez. Tudo isso envolve o conceito de “pós-humano”, “[...] sem que saibamos, assim como no caso dos outros ‘pós’ (moderno, social, colonial etc.), o que está por vir exatamente, se é que o que há agora já é, de fato, o PÓS do que aí estava e ainda não havíamos admitido” (BUZATO, 2019BUZATO, Marcelo E. K. O pós-humano é agora: uma apresentação. Trabalhos de Linguística Aplicada, Campinas, SP, v. 58, n. 2, p. 478-495, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/kwmZpNY4WPfqYvbYrKMhPyJ/?lang=pt. Acesso em 27 out. 2022.
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, p. 1).

O pós-humanismo já existia como campo filosófico antes da relação entre humano e tecnologia se tornar uma questão de grande envergadura nas ciências humanas e sociais. E esse movimento, entendido em sentido amplo, possui várias frentes de manifestação; há outras correntes também, classificáveis como anti-humanistas, nas quais questiona-se o universalismo, o racionalismo, a soberania do sujeito humano sobre seus outros não-humanos, por exemplo.

Lazzarato (2014LAZZARATO, Maurizio. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: Edições Sesc São Paulo; n-1 edições, 2014., p. 18) apresenta que Foucault e Guattari, nos anos 1980, cada um a seu modo, chegam à conclusão “[...] de que a produção de subjetividade e a constituição da ‘relação consigo mesmo’ eram as únicas questões políticas contemporâneas capazes de nos guiar para fora do impasse no qual havíamos afundado”. Assim, para tal, Guattari fala de “territórios sensíveis” e da singularização da subjetividade; e Foucault, da criação da alteridade de uma “vida outra” e de um “mundo outro”. Assim, há a necessidade de recorrermos a “[...] abordagens e paradigmas ético-estéticos - o ‘paradigma estético’ de Guattari e a ‘estética da existência’ de Foucault (LAZZARATO, 2014LAZZARATO, Maurizio. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: Edições Sesc São Paulo; n-1 edições, 2014., p. 21). Há ainda, nessa mesma corrente, Gilles Deleuze e Jaques Derrida, mas para Buzato (2019BUZATO, Marcelo E. K. O pós-humano é agora: uma apresentação. Trabalhos de Linguística Aplicada, Campinas, SP, v. 58, n. 2, p. 478-495, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/kwmZpNY4WPfqYvbYrKMhPyJ/?lang=pt. Acesso em 27 out. 2022.
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, p. 3), no caso de uma relação da educação com o pós-humanismo, “[...] o pensamento pós-colonial e decolonial é tão ou mais influente do que o são os estudos sobre ecologia humana, a filosofia da tecnologia e a sociologia da tecnociência”.

[...] O pós-humanismo não funciona como área ou disciplina, mas apresenta-se numa frente heterogênea e, até mesmo contraditória: de debate filosófico, prática cultural, inovação tecnocientífica, militância ecológica e/ou militância política. Nele se enredam argumentos, objetos, teorias, métodos e, principalmente, indagações e provocações que emergem da ruptura de binários constitutivos do humanismo, como: sujeito vs. objeto, cultura vs. natureza, humano vs. não-humano (máquina, animal, objeto) ou mente vs. corpo etc. Entre esses, destaca-se a separação ontológica radical matéria vs. discurso/linguagem, já teorizada por Latour (1999) (BUZATO, 2019BUZATO, Marcelo E. K. O pós-humano é agora: uma apresentação. Trabalhos de Linguística Aplicada, Campinas, SP, v. 58, n. 2, p. 478-495, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/kwmZpNY4WPfqYvbYrKMhPyJ/?lang=pt. Acesso em 27 out. 2022.
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, p. 3).

Para Buzato (2019BUZATO, Marcelo E. K. O pós-humano é agora: uma apresentação. Trabalhos de Linguística Aplicada, Campinas, SP, v. 58, n. 2, p. 478-495, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/kwmZpNY4WPfqYvbYrKMhPyJ/?lang=pt. Acesso em 27 out. 2022.
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), precisamos construir um pós-humanismo que nos permita visualizar possibilidades utópicas num horizonte distópico. Os autores, os temas e o caráter interdisciplinar dedicados ao pós-humanismo parecem convergir para vertentes que se ocupam mais atentamente de particularidades do movimento, “[...] tais como as hibridações humano-máquina, a decolonialidade, a educação, as subjetividades pós-humanas, a ética do Antropoceno, as implicações do neoliberalismo hipertecnologizado, o resgate dos conhecimentos de povos tradicionais e assim por diante” (2019, p. 15). Trata-se daquilo que Latour (2000LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora UNESP, 2000.) chama de um ator-rede, que vai se definindo conforme atrai novos vínculos (ou é afetado por algo novo) e que, com isso, tem aquilo que inicialmente vislumbrava deslocado para outro futuro.

O pensamento de coexistência entre máquina e humano, o ciborgue, por exemplo, significa a hibridização entre homem e máquina (HARAWAY, 2009HARAWAY, Danna. Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e Feminismo Socialista no Final do Século XX. In: HARAWAY, Danna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz. (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 35-118.). Para a autora, todos nós, de alguma forma, nos tornamos ciborgues: “[...] um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e uma criatura de ficção” (2009, p. 36). A realidade social significa aquelas relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo.

Somos multiespécies emaranhadas com outras espécies/materialidades (HARAWAY, 2021HARAWAY, Danna. O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.). O “pensar como espécie” inaugura outro tipo de racionalidade. Ao contrário da racionalidade ocidental tradicional e dos paradigmas representacionais (nos quais há uma separação entre nossa experiência do mundo, o mundo em si e o conhecimento do mundo), trata-se de um refletir sobre nossas conexões parciais com materialidades humanas e não humanas: “É um pensar corporificado e relacional, já que os conceitos e as abstrações resultantes do processo de conhecimento não constituem um mundo separado da matéria e das coisas” (COSTA; FUNCK, 2017COSTA, Claudia de L.; FUNCK, Susana B. O Antropoceno, o pós-humano e o novo materialismo: intervenções feministas. Estudos Feministas, Florianópolis, SC, 25(2), p. 903-908, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/RXt3KHKzWfYWQ3wW4GyTLFm/?lang=pt. Acesso em: 27 out. 2022.
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, p. 904). Assim, o ato de conhecer convoca-nos à inserção na matéria e no mundo em um contínuo compromisso e engajamento.

Essas abordagens teóricas inovadoras também convocam uma mudança ontológica, isto é, um deslocamento do ponto de vista de que há diferentes perspectivas sobre uma realidade objetiva e universal para um reconhecimento de múltiplos mundos/realidades. A virada ontológica efetua um movimento em direção às coisas, aos corpos, aos organismos, a qual não reduz o processo cognitivo apenas aos seres humanos. Enfim, estamos diante de uma ecologia de saberes e de cosmopolíticas que prometem revolucionar os campos disciplinares e, principalmente, os limites da perversa dicotomia do humano e não humano, instituidora da modernidade ocidental e constitutiva da colonialidade do poder (COSTA; FUNCK, 2017COSTA, Claudia de L.; FUNCK, Susana B. O Antropoceno, o pós-humano e o novo materialismo: intervenções feministas. Estudos Feministas, Florianópolis, SC, 25(2), p. 903-908, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/RXt3KHKzWfYWQ3wW4GyTLFm/?lang=pt. Acesso em: 27 out. 2022.
https://www.scielo.br/j/ref/a/RXt3KHKzWf...
, p. 904).

Esse envolvimento, da perspectiva do século XXI, inclui, ainda, a impossibilidade de separar seres humanos de seu entorno não humano. Assim sendo, o reconhecimento de uma dependência constitutiva com outros humanos e mais-que-humanos nos obriga a reconceitualizar o que entendemos por agência e a questionar radicalmente quem somos e o que podemos ser como sujeitos humanos, ou seja, a própria política como a entendemos (BUZATO, 2019BUZATO, Marcelo E. K. O pós-humano é agora: uma apresentação. Trabalhos de Linguística Aplicada, Campinas, SP, v. 58, n. 2, p. 478-495, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/kwmZpNY4WPfqYvbYrKMhPyJ/?lang=pt. Acesso em 27 out. 2022.
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).

Ampliando o debate para as questões da espécie humana em sua relação com o mundo material, torna-se necessário debater o conceito de Antropoceno (GAUTHIER, 2014bGAUTHIER, Jacques. A “fabulação realizante” como caminho soberano para entrar na dimensão interna do conhecimento. Revista Paralelo 31, Salvador, BA, n.3, p. 8-21, dezembro de 2014b.), era geológica na qual as mudanças causadas por ações humanas são tão intensas e generalizadas, que o ser humano passa a constituir uma força geológica, com consequências extremas para o planeta. Desse modo, devemos entender a necessidade de uma virada “não humana” como forma de descentralizar o humano em favor do não humano, entendido em termos de “animais, afetividade, corpos, sistemas orgânicos e geofísicos, materialidade ou tecnologia” (GRUSIN, 2015 apud COSTA; FUNCK, 2017COSTA, Claudia de L.; FUNCK, Susana B. O Antropoceno, o pós-humano e o novo materialismo: intervenções feministas. Estudos Feministas, Florianópolis, SC, 25(2), p. 903-908, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/RXt3KHKzWfYWQ3wW4GyTLFm/?lang=pt. Acesso em: 27 out. 2022.
https://www.scielo.br/j/ref/a/RXt3KHKzWf...
, p. 906). Este debate é o centro das narrativas que envolvem esta pesquisa com as professoras. Ou seja, acompanhar como, em suas narrativas, elas visualizam os possíveis na docência para contribuir com uma vida e/ou a constituição de mundos não antropocenos.

As narrativas cristalinas e a fabulação criadora para novos mundos multiespécies: homem, natureza, tecnologia

Cantar, dançar, e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar elas no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência (KRENAK, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 32-33).

Deleuze pontua que uma questão central é a das fábulas, pois estamos invadidos por fábulas com “efeito de verdade” (FOUCAULT, 1975FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1975.), as do consumismo, dos jogos eletrônicos, da mídia e do cinema comercial etc. Estamos com a mente feita pela mídia como consumidores de sonhos, de democracia representativa, de objetos e símbolos. “O cinema é uma forma intensa de resistência ao que podemos chamar de fabulações irrealizantes, pois nos colocam em estado de torpor mental e servidão voluntária” (GAUTHIER, 2014aGAUTHIER, Jacques. Tudo que não inventamos é falso: dispositivos artísticos para pesquisar, ensinar e aprender com a sociopoética. Fortaleza: EDUECE, 2014a., p. 10).

Assim sendo, torna-se necessário lutar contra esse tipo de fabulações e criar fabulações realizantes; Do lado do vivo, da memória, do movente, da duração e da intuição. É interessante ver o que podemos aprender com o autor para ampliar nosso pensamento, e também ver em que direção se faz essa ampliação, tanto nas áreas da ciência, do humano, quanto da natureza e da tecnologia.

Para Zourabichivili (2004), no presente, a temporalidade orgânica, o cogito se formula por um Eu sou um hábito, e neste modo temporal precário e ameaçador o Eu só pode ser formulado como um outro: o cogito do futuro é a fórmula, o Eu é um outro. Afirmar o futuro é pôr-se em risco, pois esse outro que surge toma o meu lugar. Sendo assim, se o passado é a conservação virtual das heterogêneas dimensões temporais que irão a cada vez constituir o presente, o futuro é seu afundamento. Há, portanto, uma complementaridade entre o passado e o futuro, pois o presente não passaria se ele não fosse forçado a passar, mas ele não se formularia como outro se não houvesse a conservação virtual das dimensões heterogêneas. Duas passividades complementares. A ruptura não é, portanto, entre passado e futuro, mas entre o presente orgânico e essas duas temporalidades (ZOURABICHVILI, 2000ZOURABICHVILI, François. Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política). In: ALLIEZ, Eric (Org). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Tradução coordenada por Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2000.). O paralelismo entre espírito/matéria e orgânico/inorgânico é trocado pelo paralelismo entre ativo/passivo e orgânico/inorgânico, isso quer dizer que o espírito como tempo, passou tanto para o lado inorgânico quanto para o passivo. O que significa dizer que ele não é mais revelado por um ato, mas é o que acontece ao corpo, melhor dizendo que ele não pode ser pensado separadamente. O tempo ao modo do futuro é a linha intensiva que corta o corpo, enquanto o hábito a sua efetuação extensiva.

Se a função fabuladora falsifica a memória é porque justamente ela não é uma faculdade voltada para o passado, para a conservação do passado; mas uma faculdade voltada para o futuro, para a criação de novas e potentes imagens sem as quais o presente não passa. A fabulação é potência do falso porque ela nos força a passar, ela nos força a dizer Eu é um outro. Ela não é, portanto, um instinto virtual, como o queria Bergson (2006BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2006.), uma faculdade que nos mantém atados ao passado instintivo. A fabulação é a memória do futuro.

Quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho, não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para nossas escolhas do dia a dia. [...] sonho não como uma experiência onírica, mas como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas (KRENAK, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 51-53).

De certo podemos dizer que na imagem-cristal o presente é suspenso em prol de uma conexão direta entre o passado e o futuro, o que nos permite apreender o passado em sua dimensão virtual. Já na imagem-fábula é o próprio presente que se abre ao futuro nos deixando entrever os estados de mudança que o atravessam. Por isso, esta nova imagem, mais do que nos oferecer uma indiscernibilidade, nos faz ver o corpo enquanto um campo de forças, enquanto um campo de intercessão de forças.

A ampliação da consciência pela descrição cristalina mobiliza as potências do “falso” - assim chamado no nosso contexto realístico-mediático irrealizante, ou seja, daquilo que, falso para esse contexto, se coloca, de fato, além da dualidade da verdade e da mentira, do certo e do errado. O realismo do diário de notícia, da novela, do jogo eletrônico e do Facebook, em geral, é um aspecto da função irrealizante das formas atuais de dominação. Por essa razão, ele funciona muito bem, e compramos pequenos sonhos baratos, dia após dia, noite após noite. A fabulação realizante é uma forma de “conscientização” pois mostra o avesso do cenário midiático e liberta-se dele; para o olhar de quem frequenta pouco o cinematógrafo, as produções do mesmo, dos realizadores-artistas de cinema e do cinema, parecem geralmente inutilmente complicadas, ou descentradas, confusas, exageradas... A fabulação realizante funciona por meio de afetos desconhecidos, enquanto a fabulação irrealizante por meio de afetos familiares, domados e sem perigo, ligação dos personagens e das suas perspectivas, tanto temporais como espaciais, dentro do ser, dentro de nós.

Essas perspectivas, obviamente, podem declinar matizes múltiplas, percorrendo uma ampla escala que vai do mais provável ao mais anormal, ou ainda anomal, terrível, assustador, desestabilizador, conforme as páginas célebres de Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Devir-intenso, devir-imperceptível. Tradução de Suely Rolnik. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. p. 11-114.). Deleuze chama de narrativas falsificantes essas fabulações criadoras que se situam além do Verdadeiro e do Falso. Ele destaca a potência criadora daquilo que o mundo no qual vivemos chamaria tranquilamente de “falso”. A proposta é essencialmente política: O que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade que é a dos mestres ou dos colonizadores, é a função fabuladora dos pobres, enquanto ela confere ao falso a potência que faz dela uma memória, uma lenda, um monstro (DELEUZE, 1985DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem movimento. Tradução de Stella Senra. São Paulo: Editora 34, 1985., p. 196). Mas também, ela é espiritual, no sentido da palavra que Deleuze retomou de Bergson (ver LAPOUJADE, 2013LAPOUJADE, David. Potências do tempo. Tradução de Hortencia Santos Lencastre. São Paulo: Edições n-1, 2013., p. 95-98). Estamos dentro do tempo, isso é nossa espiritualidade.

Processos narrativos imagéticos da pesquisa com professoras

Tomara que estes encontros criativos que ainda estamos tendo a oportunidade de manter animem a nossa prática, a nossa ação, e nos deem coragem para sair de uma atitude de negação da vida para um compromisso com a vida, em qualquer lugar, superando as nossas incapacidades de estender a visão a lugares para além daqueles a que estamos apegados e onde vivemos, assim como às formas de sociabilidade e de organização de que uma grande parte dessa comunidade humana está excluída, que em última instância gastam toda a força da Terra para suprir a sua demanda de mercadorias, segurança e consumo (KRENAK, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 50).

Aqui chega a noção de cristal: coexistem, no decorrer das conversas, diferenças de modos de se narrar as coisas, com alternativas entre verdade e falsidade impossíveis de serem escolhidas - “decididas”, como dizem os lógicos. Quando um pesquisador ou uma pesquisadora entrevista um/a velho/a professor/a militante de um movimento de resistência à ditadura colonial-capitalista em cuja história de vida se misturam fatos e interpretações, descrições e avaliações, percepções e afetos... os quais podem conflitar com outras histórias de vida relacionadas ao mesmo momento sócio-histórico, a verdade está simplesmente se criando frente aos nossos olhos, nas dobras do tempo, das temporalidades múltiplas, como potência fabuladora e falsificadora das ilusões do mundo colonial-capitalista. Assim, vem se criando o “cristal do tempo”, como obra, memória inventada - conforme diz magnificamente Manoel de Barros (BARROS, 2003BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas I. A infância. São Paulo: Planeta, 2003.; 2006; 2008). Quanto mais “testemunha” se faz a narrativa, mais forte seu poder desmistificador. Por essa razão, o mais cristalino é o que sabemos descrever (a loucura colorida do mundo), pois é assim que captamos o impensado no pensamento, ao aceitarmos a falha presente em todo esforço para enunciar a verdade, pensar certo, ou simplesmente, pensar.

Na zona de lembranças, sonhos e pensamentos (DELEUZE, 1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Devir-intenso, devir-imperceptível. Tradução de Suely Rolnik. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. p. 11-114.), foi possível atualizar mais do que simples lembranças dos procedimentos da pesquisa. Foi necessário atualizar processos teoricopráticos de produção de conhecimentos acerca dos modos pelos quais os usos de narrativas nos processos de formação continuada de professores potencializam a produção de outros sentidos para o pensamento na escola ou processos éticos e estéticos de subjetivação docente.

Para o recorte aqui apresentado, enfocaremos dois eixos buscados nas conversações estabelecidas com as professoras: o primeiro diz respeito a como o contexto de “antropogenia” da atualidade atinge os processos de escolarização no ensino fundamental; o segundo se refere às manifestações explícitas nas conversações das professoras acerca das narrativas cristalinas e fabulatórias enfocando os possíveis para criação de novos mundos multiespécies: homem, natureza, tecnologia.

Metodologicamente, tratou-se de uma pesquisa1 1 A pesquisa e projeto de extensão “Signos artísticos instigando aprendizagens e potencializando a formação de professores do município da Serra/ES” é um subprojeto de pesquisa mais ampla, cadastrada no Diretório de Pesquisas do CNPq “Imagens, signos artísticos instigando aprendizagens nos currículos em cotidianos escolares: potencializando a constituição de corpos coletivos”, coordenado pela professora Janete Magalhães Carvalho e aprovada no CNPq para o período de 2020-2025. Contou com a participação de professores e integrantes do grupo de pesquisa “Com-Versações com a Filosofia da Diferença em currículos e formação de professores”. O Projeto de Extensão foi registrado e aprovado no Sistema de Gestão da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo sob o número 2376. articulada a um projeto de extensão realizado em encontros de formação continuada com docentes da rede municipal de ensino de Serra/ES, de modo virtual via GoogleMeet, uma vez por mês, no período noturno de 2021, em pleno ano de pandemia de covid-19. Inicialmente, a pesquisa foi pensada para 75 docentes, mas houve uma grande mudança, visto que, às vésperas do início da formação, o município de Serra-ES - assim como todos os outros municípios da região metropolitana conhecida como Grande Vitória - foi fortemente pressionado pelo Ministério Público para adiantar o retorno das aulas presenciais no modelo híbrido. Com o retorno de trabalho presencial, as professoras2 2 Usamos professoras, no feminino, porque de 42 docentes inscritas somente um era do gênero masculino. viram-se em conflitos de horário para participar das formações, resultando, com isso, em uma diminuição brusca do número de inscritos. Contudo, ainda nesse contexto de retorno de trabalho presencial e necessidade de flexibilização de horário por parte das professoras e dos grupos formadores, a formação foi mantida com um total de 42 professoras inscritas e divididas em três grupos. A escolha em trabalhar com grupos menores atendeu a necessidade de contar com maior participação dos envolvidos além de oferecer a possibilidade de três dias da semana diferentes para atender a disponibilidade dos professores. A participação nos encontros de formação continuada foi por livre adesão - e interesse em participar em vivências de experiências envolvendo signos artísticos em grupos de conversações − e a divulgação, inscrição e organização dos grupos foram realizadas pela Secretaria Municipal de Educação do município de Serra (ES).3 3 A escolha por desenvolver a pesquisa e o projeto de extensão no município de Serra deu-se devido ao convite feito pela gerência de Formação da SEME à coordenadora do grupo de Pesquisa “Com-Versações”. Para o texto aqui apresentado, selecionamos apenas parte do material produzido com um dos grupos de formação, este com um total de 14 professoras participantes.

O projeto de pesquisa e extensão apresentou como objetivos: 1) estabelecer rede de conversação e experimentações com professores da Rede Municipal de Ensino da Serra/ES, buscando, pelos signos artísticos, potencializar a aprendizagem de professores e, consequentemente, de alunos em currículos como coletivos compartilhados; b) debater os possíveis de uma docência inventiva, menos baseada em processos de recognição, e produzida por meio de modos coletivos de conversação e ação de professores, vividos no plano de imanência da micropolítica no/do/com os cotidianos escolares em redes de fabulação, utilizando o cinema, a literatura, a pintura e a fotografia, o grafite e outros.

Os dados empíricos que formaram este trabalho referem-se às redes de conversação estabelecidas com as professoras (CARVALHO, 2009CARVALHO, Janete M. O cotidiano escolar como comunidades de afetos. Petrópolis, RJ: DP et Alii; Brasília, DF: CNPq, 2009.). Todos os encontros foram registrados, permitindo fixar as “conversas” desenvolvidas, durante as quais foram trazidas memórias de práticas, problematizações e posições alternativas. Partimos da relação entre arte e experimentação e para cada uma delas montamos uma sequência de exercícios que propiciou aos corpos docentes saírem gradualmente de suas zonas de conforto; a cada exercício buscamos intensificar os fluxos, de modo que a relação entre ser afetado e afetar (sentir e agir) gerou linhas de fuga e/ou zonas de ruído nas quais os corpos se deixaram impregnar por pequenas percepções (abertura perceptual) desprovidas inicialmente de um conteúdo dotado de sentido. Tais exercícios advindos de práticas como o cinema, a literatura, o desenho, a pintura, a fotografia etc, buscaram criar afectos experimentados pela dinâmica de forças coletivas colocadas em jogo tanto nos docentes como em nós pesquisadores. Ou seja, o uso de exercícios criou um campo gerador de embates, problematizações, num campo de abertura para aprendizagens e para a realização coletiva.

Também importa destacarmos nossa opção por apresentar os resultados da pesquisa ao final do texto, buscando responder às problematizações trabalhadas. Assim, as falas produzidas na pesquisa em redes de conversação aparecerão em itálico, não fazendo recuo à esquerda, mas, sempre que possível, conversando com os intercessores de cunho teórico-metodológico da Filosofia da Diferença que balizam essa escritatexto. Para fazer jus ao nosso referencial teórico, cumpre também informar que de forma alguma daremos quaisquer modos de identificação das falas, não apenas por uma questão ética de anonimato, mas principalmente por afirmarmos a potência dos agenciamentos coletivos de enunciação (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. A gealogia da moral (quem a Terra pensa que é). Tradução de Célia Pinto Costa. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p. 53-91.). Partimos da premissa de que nenhuma fala ocorre apenas no campo individual, isto é, não é um ser falante que exprime suas ideias isoladamente: “Um indivíduo tal ou qual, tomado numa massa, tem ele mesmo um inconsciente de matilha que não se assemelha necessariamente às matilhas da massa da qual ele faz parte”, dizem Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. A gealogia da moral (quem a Terra pensa que é). Tradução de Célia Pinto Costa. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p. 53-91., p. 63). E vão mais além: “Cada um de nós é envolvido num tal agenciamento, reproduz o enunciado quando acredita falar em seu nome ou antes fala em seu nome quando produz o enunciado” (Ibidem, p. 64-65). Por tal motivo, não apostamos em uma escrita de criação de nomes fictícios para as professoras, e sim arriscamos que os próprios enunciados apareçam com força e vivacidades puras. Aqui, importam mais as forças que as acompanham em suas enunciações e os modos como elas se expandem em conversas com outras forças.

Desse modo, lançamo-nos à questão: de quais modos se relacionam, como sujeitos do conhecimento, o homem, a natureza e a tecnologia, e convocam, assim, um modo de conhecer que ultrapasse a matematização da vida em direção, quiçá, à de produção de uma zona de comunalidade expansiva? O que entendemos por sujeito do conhecimento quando pensamos nessa articulação entre conhecer e produzir nos corpos orgânicos e não-orgânicos, em especial, em tempos de pandemia?

Suspender o céu para expandir os horizontes das docências: as narrativas cristalinas e fabulatórias criam novos mundos

Nos encontros com as professoras em tempo de pandemia, experimentamos outros e novos modos de fazer pesquisa e extensão. Ao entrar em composição com as fabulações e narrativas cristalinas de professoras no encontro com os signos artísticos, o coletivo participante dos encontros de formação4 4 O coletivo participante dos encontros de formação continuada neste grupo foi constituído por: professoras dos anos iniciais (8); anos finais: professoras de Artes (3), professoras de Educação Física (2) e pedagogo (1); professoras da Ufes (3); mestranda (1); doutorandas (2). criou forças para desconstruir algumas “verdades” pensadas para a educação; problematizar como esses discursos, crenças e concepções são produzidos e, sobretudo, pensar se renovamos essas ideias ou nos colocamos abertas para pensar em outras lógicas e dimensões, com outras lentes para criarmos outros modos de experimentações curriculares e de docências.

Fabular. Inventar possíveis para as docências. Pensar com as docências inventivas outros modos de pensar e de fazer currículos. Currículos nômades que se constituem movidos pela força das infâncias, das adolescências e juventudes em devir. Acompanhar enunciações coletivas que vislumbram e desejam produzir mundos não antropocenos, vidas que operam deslizando da sociedade do espetáculo, vidas que desaprendem para reaprender, movidas pelos encontros para produzir o conhecimento - o mais potente dos afetos.

É... não é fácil problematizar essas “verdades” que até então eram consideradas inquestionáveis. Estamos vendo que as pesquisas pós-críticas em educação, não desconsidera o que já foi produzido no mundo, mas nos convida a pensar e a experimentar outros modos de pesquisar, de fazer currículos, política e educação. Problematiza aquilo que se tem como “verdade”, questiona e nos instiga a colocar sempre em cheque essas verdades que estão estabelecidas para as escolas. Isso provoca e nos leva a pensar e agir de outro modo 5 5 Foram mantidaa no texto as marcas do discurso oral informal. .

Nas nossas experimentações cotidianas curriculares vamos aproveitando tudo aquilo que é bom, que possibilita as aprendizagens. Descartamos aquilo que não funciona. Mas, às vezes, guardamos, porque em outro momento pode funcionar. Agimos de outro modo, conforme as circunstâncias. É uma mistura, uma alquimia, “abracadraba”, mágica mesmo [risos], sempre em busca de se produzir o novo. Vamos assim, experimentando diversos caminhos, muitas possibilidades.

Para Deleuze (1990DELEUZE, Gilles. Cinema 2: a imagem-tempo. Tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990.), o que se vê no cristal é sempre a fusão da vida em toda a sua expressividade. O tempo puro. O tempo e a vida em seus desdobramentos e ou diferenciações: “[...] Como preservar a verdade se contra ela conspira ‘a força do tempo’, no sentido em que torna compossíveis presentes incompossíveis, faz coexistirem passados não necessariamente verdadeiros, e toda uma potência do falso se afirma criadora?” (PELBART, 2010PELBART, Peter P. O tempo não reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 20). Nos encontros com as professoras em redes de conversação, o real e o imaginário se tornam indiscerníveis, pois não há nessa rede de conversação uma verdade única e universal para frear e controlar as experimentações e composições coletivas curriculares. Há a força do fluxo do tempo inventivo embalando o devir docência. Assim, perguntamos ao grupo: o que seria produzir o novo nas nossas docências? Como seria pensar a docência como experimentação coletiva?

Nos nossos movimentos de formação apresentamos músicas, fragmentos de filmes, curtas, experimentações com a cibercultura, fotografias... Esses movimentos nos possibilitam caminhar com um olhar sensível para perceber as mudanças no/do mundo e nos fazem inserir, entrar em relação, buscar novas conexões. É diferente. Não buscamos aqui trazer “uma verdade”, mas, sim, é um convite para a composição. É o tal do “fazer com”.

Eu estou aqui pensando se o que estamos produzindo de “novo” nas docências seria aquilo que pensamos e fazemos a partir dos acontecimentos. Aquilo que surge no cotidiano, de forma inesperada, o que aparece e não estava no roteiro... E aí a gente se lança a experimentar sem ter uma certeza no que vai dar. Mas a gente se lança junto, a gente combina, a gente briga. Sempre um ou outro não concorda, mas a gente faz. Não sei... estou aqui pensando...

Vivenciar a docência como invenção é experimentar os encontros a partir das enunciações infantis, das brincadeiras, e a gente tem muita relutância em fazer isso. Em se permitir entrar no devir-infância da docência e lidar com eles nos encontros. Muitas vezes a gente se depara com a nossa própria rigidez (porque fomos formatados para ser assim, seguir assim). Eu até falei com vocês a questão das borboletas na minha vida. Quando eu era criança, eu tinha um jeito próprio de ver, de me aproximar das borboletas, e a relação que eu tenho hoje, porque a gente se torna muito rígida, dura mesmo, é outra. Na minha casa, quando eu era criança, ao esticar a mão, as borboletas pousavam no meu dedo. Isso era muito recorrente. E eu cheguei hoje e vi uma borboleta, mas eu jamais tentaria fazer isso de novo, porque sou adulta, tenho uma outra visão. E nem acredito mais que elas pousariam em mim. A gente tem uma rigidez, timidez, vergonha que nos impede de entrar em conexão. Eu acho que vivenciar a docência como experimentação coletiva é se permitir, é se abrir, é entrar em relação aos encontros e vivenciar também a partir das enunciações infantis.

O acontecimento das borboletas... Com o borboletar de uma professora fomos desconstruindo conceitos, problematizando a rigidez da ciência (e da moral), criando outros possíveis para a educação e fabulando outros mundos movidos pela vontade de potência. Em redes de conversação, os processos de subjetivação das docentes foram se constituindo e, assim, fomos afirmando a invenção e produzindo novas imagens de escolas e de mundos. Para Lazzarato (2006LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Tradução de Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.), um acontecimento produz, primeiramente, uma transformação da subjetividade, da maneira de sentir, na qual novas possibilidades de vida se engendram, emergem, revelando um processo de experimentação e de criação: “É preciso experimentar aquilo que a transformação da subjetividade implica e criar agenciamentos, dispositivos, instituições capazes de se utilizar dessas novas possibilidades de vida” (LAZZARATO, 2006LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Tradução de Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006., p. 12). Ou, como diz Deleuze (1992DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992., p. 218), para quem acreditar no mundo “[...] significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volumes reduzidos”.

Na minha casa tinha um jardim e a minha mãe cuidava muito daquele jardim e tinha muita borboleta. Eu era uma criança e ficava encantada. Eu deitava na grama e elas pousavam. Tinham muitas e de cores variadas. Depois que a gente cresce, a gente não vê mais. Mas elas devem estar por aí. Eu não me acho mais especial para as borboletas. Porém, quando eu era criança eu me achava. Era mágico. A gente se permitia pensar, a criança é livre, ela não tem essa rigidez que o adulto tem. A gente é muito mais livre quando é criança. Eu percebo isso pela minha postura física, pela forma de me colocar. Muitas vezes, a gente se coloca com rigidez por conta da mentalidade que muda, por conta das questões sociais também que são impostas e que esperam outras posturas para nós.

A força da experimentação, dos afetos que atravessam. A força da infância que opera em outro tempo e que se faz vivo, não se deixa aprisionar. A fabulação nos ajuda a escapar desses modelos que tentam nos aprisionar. A borboleta foge, escapa, resiste.

A gente pode, também, pensar a borboleta como um modo de ser e estar no mundo, como uma forma de navegar, de percorrer os espaços. Porque como as borboletas têm liberdade para ir pelos jardins, em alguns espaços elas não cabem, não conseguem ter a liberdade de voar. Assim, se pensarmos as teorias, elas ajudam a percorrer os espaços, mas nem todo o lugar a gente consegue chegar com a teoria.

Eu gostaria de pensar a beleza da singularidade de cada borboleta. Cada uma tem as suas próprias características, forças, cores, que desbravam os jardins com os seus voos, trajetos... Elas são intensas. Não vivem muito tempo, mas em intensidade. Elas têm pés gustativos, tocam as coisas e se deixam experimentar; a borboleta experimenta com o toque. Penso também quando a gente se permite a tocar, experimentar... os afetos e afecções. E pensar no devir-infância da docência. Fabular outros modos de docência.

Essa pesquisa-experiência6 6 Para Bondia, “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”. Para isso, é necessário um gesto de interrupção, um “parar”: “[...]parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, parar para pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, dar-se tempo e espaço” (2002, p. 24). E são esses movimentos que apostamos e afirmamos na rede de conversação com as professoras para problematizar os currículos e as docências. nos modifica e, também, os nossos entornos. Respirar. Abrir os poros. Desamarrar. Desatar. Descolar. Borboletar. Dançar com as borboletas e as crianças, entrar em relação com tudo que potencializa e afirma a vida. Sim, estamos buscando novas conexões com as minorias, com a força de ação coletiva, para pensar o homem, a natureza e a tecnologia como sujeitos do conhecimento. E, assim, como nos fala Krenak (2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020), ser capazes de viver as nossas subjetividades com a liberdade que formos capazes de inventar, ou seja, as nossas poéticas sobre a existência.

Por que a gente fica tão amarrado numa existência das coisas, da vida, reproduzindo um único modo de ser e estar no mundo que a gente não se dá conta mais de encontrar as borboletas, os pirilampos? A gente não se deixa atravessar. Nós estamos aqui pensando no que estamos fazendo de nós mesmas. Quais são as nossas verdades, os nossos discursos. Que discursos produzem/produziram essas verdades que vão colando na gente e que não desagarram nunca mais? Hoje a gente problematiza as relações de poder. E quantas produções de poder que a gente, ao invés de problematizar o que vai colando na gente, a gente aumenta as colas, renova, reproduz. E quando a gente vê, as imagens que não alçam voo da borboleta mais.

Uma colega me contou que trabalha em uma escola do campo. A escola, para ela, é possibilidades de encontros, possibilidades de compartilhamento da vida. Mas hoje eu fico me questionando como a gente pode produzir e inventar esse sentimento de alegria na escola. Por exemplo, os alunos com um click têm acesso à informação, a tecnologia fez com que tudo fosse muito rápido e efêmero. E aí a professora fala: “A minha preocupação é: será que eu vou dar conta, será que eu vou conseguir fazer com que os alunos sintam essa energia do que significa estar na escola? Essa força, essa potência?”.

Mas, essa preocupação é constante. O que me aguarda, o que me espera? Eu acho que é aquela questão do docente-discente, uma coisa não existe sem a outra. E a gente antes não tinha tanta essa interação de você aprender com eles como a gente tem hoje. Justamente por essa coisa de eles estarem tão na nossa frente... A gente dá essa possibilidade de aprender com eles, de fazer essa troca, essa interação com os alunos. Isso nos dá a possibilidade de criar também, a gente não ficar reproduzindo aquilo que a gente já conhece. A gente tem que dar esse espaço...

Agora eles têm muito essa coisa do Tik Tok. A gente não gosta, a gente é contra, tem restrição, mas existe uma possibilidade de a gente aproveitar essas coisas. Agora eles estão na modinha de chamada “meme”. Na hora da chamada, ao invés deles responderem “presente”, eles falam um meme. Cada dia é uma coisa. A minha sobrinha tem 12 anos. Ela falou que o professor mais legal dela fez isso e eles tinham que responder com frases de mãe. E o que você falou: “Você não é todo mundo não!”. “Na volta a gente compra...”; “se eu for aí e encontrar vou esfregar na sua cara”. Eu pensei que ia ser o maior tumulto na sala fazer isso, mas todos ficam em silêncio. Quer dizer, você aproveitou uma coisa que é deles e trouxe ali para o seu mundo. No início eu fui resistente, mas depois percebi que poderia ser interessante.

Pensar o sujeito do conhecimento na relação homem, natureza e tecnologia, muitas vezes, é difícil porque procuramos o enquadramento, permitindo que “etiquetas” sejam coladas, reproduzidas, e esquecemos desses outros movimentos que acontecem, que estão lá. Assim, várias noções de mundo passam despercebidas no dia a dia, como a história da borboleta, com a qual não nos permitimos entrar em relação. Mas mundos são relações. Imagens e palavras criam outros mundos. O que podem outras palavras e imagens que criam mundos? O que nos assusta, nos estranha, que é inusitado? Algo nos causa desconforto porque rompe com alguma coisa pré-estabelecida, com uma verdade, com uma certeza para produção do novo.

[...] produzir o novo é inventar novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer[...]. A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência do homem comum. (PELBART, 2011PELBART, Peter P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011., p. 23).

O que importa é a constituição de complexos modos de subjetivação, ou seja, quando as professoras conversam sobre o que potencializa suas vidas e quando percebem o quanto o novo amplia os processos de aprender e de ensinar, elas recompõem uma corporeidade existencial e, de alguma forma, ressingularizam-se. Guattari (2012GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34, 2012.) aponta que as novas modalidades de subjetividades são criadas da mesma maneira que os artistas criam novas formas a partir da palheta que dispõem, ou seja, tudo o que pode contribuir para a criação de uma relação com o outro. Em uma entrevista é perguntado a Guattari se a vida pode ser inventada quando todas as imagens são produzidas de antemão, e ele responde:

[...] Sim, veja os exemplos dos químicos. Eles trabalham com o mesmo material todos os dias: carbono, hidrogênio. O principal é livrar-se dessa espécie de redundância, de serialidade, de produção em série da subjetividade, de solicitação permanente a voltar ao mesmo ponto. É como a situação de um pintor, que compra suas tintas na mesma loja. O que interessa é o que vai fazer com elas (GUATTARI; ROLNIK, 2000GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografia do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000., p.53).

Pensar a docência como experimentação... eu creio que todas as fabulações, tudo que a gente provocou de diferente aqui, passa pelos agenciamentos daquilo que nos afeta, das afecções. Mas o que é conhecimento? Eu diria que conhecimento é tudo que é produzido no cotidiano; tudo o que é produzido nas relações nos cotidianos, nas diferentes redes educativas. Mas de qual conhecimento a gente está falando? O que é relevante conhecer? O que nós estamos produzindo ou o que foi construído historicamente?

É a partir da visão de quem, do colonizado ou do colonizador?

Se eu tivesse que responder com uma palavra, eu diria que é relação.

Eu diria que tudo o que acontece nessas relações, eu diria que é conhecimento.

Porque a primeira coisa que a gente pensa de conhecimento é o sistematizado, é o que se cobra nas escolas, mas eu acho que tudo o que a gente produz é conhecimento. Você pode chegar ao conhecimento sistematizado a partir de uma relação com os alunos. Quando a gente fala que o estudante não sabe nada, a gente está se referindo a quê? Muitas vezes, a gente não se permite entrar em relação com as experimentações daqueles estudantes. Como provocar esse encontro? Com algo que faz sentido para eles.

A escola fala de coisas que fazem sentido para alunos e alunas? Como alunos e alunas constroem o conhecimento? Qual a relação entre conhecimento e afeto? Entre conhecimento e vida? Tais questionamentos se tornam necessários para que possamos pensar em um ensinar e um aprender construídos de forma ética, associando-se a expressões que se movimentam a partir de nosso entendimento e desejo, e a potência está na provisoriedade e na singularidade do desejo de cada um.

O conhecimento age produzindo afetos e os afetos produzem conhecimento. Se conhecer é afetar e ser afetado, qual a relação entre conhecimento e afeto? Quais as intensidades e possibilidades para a criação de vida que pulsa e que torna possível a invenção em que o conhecimento seja o mais potente dos afetos?

Spinoza (2008SPINOZA, Baruch de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.) afirma que o modo como nós pensamos, como nós conhecemos, implica o modo como vivemos, isto é, para Spinoza, qualquer que seja a forma de conhecimento, esta reflete uma maneira de viver. O caminho ético apresentado por Spinoza nos leva a pensar na dignidade de vivermos o que somos, assumindo nossos problemas, anseios, desejos, o que nos levaria a criar um estilo de vida próprio, singular, na constituição de mundos não “antropocenos”, sem formas, mas com a força do encontro com outros mundos.

Importante é conceber a vida, cada individualidade de vida, não como uma forma, ou um desenvolvimento de forma, mas como uma relação complexa entre velocidades diferenciais, entre abrandamento e aceleração de partículas. Uma composição de velocidades e de lentidões num plano de imanência. [...] é pela velocidade e lentidão que a gente desliza entre as coisas, que a gente se conjuga com outra coisa: a gente nunca começa, nunca recomeça tudo novamente, a gente desliza por entre, se introduz no meio, abraça-se ou se impõe ritmos (DELEUZE, 2002DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002., p. 128).

Composições sem fim...

Buscamos, nesta escrita, criar agenciamentos com as professoras a partir das redes de conversação e do encontro com os signos artísticos no intuito de provocar o pensamento. Apostamos nas narrações cristalinas e fabulatórias da docência para fazer proliferar os movimentos do pensamento relacionando como sujeitos do conhecimento o homem, a natureza e a tecnologia.

Pensar o conhecimento como relação permite-nos desenhar mutações de percepção relativas ao espaço, ao corpo, ao tempo, a partir das redes de conversação com professoras, como parte de um território existencial compartilhado com a vida pulsante vivida e sentida nos cotidianos escolares. Vida pulsante em meio a (des)encontros de corpos, de espaços, de tempo, cuja potência está na multiplicidade. Encontramos “vontade de potência”, no sentido nietzchiano, no esforço, na tentativa, na busca da superação, na busca por afetos que mobilizam, movimentam e incitam a outras possibilidades. Vontade do sempre “mais”, da luta para alcançar o “possível” e ir além daquilo que é atual. Não é somente a luta para se preservar no ser, um simples instinto de conservação, mas é uma vontade de “ultrapassar”, de ir sempre mais adiante, para criar outros mundos. “Vontade de potência” é a força em movimento que impele à vontade de ser, vontade da existência de si mesmo, na tentativa de um mundo não “Antropoceno”, onde os sujeitos do conhecimento são o homem, a natureza e a tecnologia.

E, nessa vontade de potência, as narrativas cristalinas e a fabulação, em redes de conversação, possibilitam a criação de novos mundos multiespécies, interligando o homem, a natureza e a tecnologia como sujeitos do conhecimento.

REFERÊNCIAS

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  • GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34, 2012.
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  • GAUTHIER, Jacques. Tudo que não inventamos é falso: dispositivos artísticos para pesquisar, ensinar e aprender com a sociopoética. Fortaleza: EDUECE, 2014a.
  • GAUTHIER, Jacques. A “fabulação realizante” como caminho soberano para entrar na dimensão interna do conhecimento. Revista Paralelo 31, Salvador, BA, n.3, p. 8-21, dezembro de 2014b.
  • HARAWAY, Danna. O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
  • HARAWAY, Danna. Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e Feminismo Socialista no Final do Século XX. In: HARAWAY, Danna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz. (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 35-118.
  • KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020
  • LAPOUJADE, David. Potências do tempo. Tradução de Hortencia Santos Lencastre. São Paulo: Edições n-1, 2013.
  • LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Sousa. Bauru: EDUSC, 2001.
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  • LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Tradução de Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
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  • PELBART, Peter P. O tempo não reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2010.
  • PELBART, Peter P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.
  • PELBART, Peter P. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições, 2016.
  • SPINOZA, Baruch de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
  • ZOURABICHVILI, François. Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política). In: ALLIEZ, Eric (Org). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Tradução coordenada por Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2000.
  • ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Centro Interdisciplinar de Estudo de Novas Tecnologias da Informação, 2004.
  • 1
    A pesquisa e projeto de extensão “Signos artísticos instigando aprendizagens e potencializando a formação de professores do município da Serra/ES” é um subprojeto de pesquisa mais ampla, cadastrada no Diretório de Pesquisas do CNPq “Imagens, signos artísticos instigando aprendizagens nos currículos em cotidianos escolares: potencializando a constituição de corpos coletivos”, coordenado pela professora Janete Magalhães Carvalho e aprovada no CNPq para o período de 2020-2025. Contou com a participação de professores e integrantes do grupo de pesquisa “Com-Versações com a Filosofia da Diferença em currículos e formação de professores”. O Projeto de Extensão foi registrado e aprovado no Sistema de Gestão da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo sob o número 2376.
  • 2
    Usamos professoras, no feminino, porque de 42 docentes inscritas somente um era do gênero masculino.
  • 3
    A escolha por desenvolver a pesquisa e o projeto de extensão no município de Serra deu-se devido ao convite feito pela gerência de Formação da SEME à coordenadora do grupo de Pesquisa “Com-Versações”.
  • 4
    O coletivo participante dos encontros de formação continuada neste grupo foi constituído por: professoras dos anos iniciais (8); anos finais: professoras de Artes (3), professoras de Educação Física (2) e pedagogo (1); professoras da Ufes (3); mestranda (1); doutorandas (2).
  • 5
    Foram mantidaa no texto as marcas do discurso oral informal.
  • 6
    Para Bondia, “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”. Para isso, é necessário um gesto de interrupção, um “parar”: “[...]parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, parar para pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, dar-se tempo e espaço” (2002, p. 24). E são esses movimentos que apostamos e afirmamos na rede de conversação com as professoras para problematizar os currículos e as docências.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2022
  • Aceito
    24 Out 2022
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