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(Re)lendo Bourdieu a partir da obra de Maria Helena Souza Patto

RESUMO

O presente artigo objetiva analisar as discussões dos conceitos elaborados por Pierre Bourdieu na obra de Maria Helena Souza Patto, professora aposentada e pesquisadora do Instituto de Psicologia da USP, cuja produção intelectual foi divisora de águas no campo da Psicologia em interface com a educação no Brasil. Do conjunto de escritos, será dado destaque a três livros e um capítulo: Psicologia e Ideologia (1984), A produção do fracasso escolar (1990), A miséria do mundo no terceiro mundo (2000) e A cidadania negada (2009). As referências a Bourdieu ao longo da obra de Patto dão relevo à necessidade de um diálogo crítico ao priorizar, em sua análise, a complexidade da realidade educacional brasileira e considerar os perigos na utilização de conceitos quando dissimulam as relações de forças presentes em suas articulações com as problemáticas estudadas.

Palavras-Chave:
Pierre Bourdieu; Maria Helena Souza Patto; Pesquisa educacional; Realidade brasileira; Análise bibliográfica

ABSTRACT

This article aims to analyse the discussions of the concepts elaborated by Pierre Bourdieu in the work of Maria Helena Souza Patto, a retired professor and researcher from the Psychology Institute of USP, whose intellectual production was a watershed in the field of psychology in interface with education in Brazil. From this set of writings, three books and one chapter will be highlighted: Psychology and Ideology (1984), The production of school failure (1990), The misery of the world in the third world (2000) and Denied citizenship (2009). The references to Bourdieu throughout Patto’s work highlight the need for a critical dialogue by prioritising, in her analysis, the complexity of the Brazilian educational reality and considering the dangers in the use of concepts when they conceal the power relations present in their articulations with the problems studied.

Keywords:
Pierre Bourdieu; Maria Helena Souza Patto; Educational research; Brazilian reality; Bibliographic analysis

Introdução

O objetivo deste artigo é analisar as discussões dos conceitos elaborados por Pierre Bourdieu presentes na obra de Maria Helena Souza Patto, professora aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Com Graduação em Psicologia no mesmo Instituto, onde também defendeu o mestrado e o doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (concluídos em 1965, 1970 e 1981, respectivamente), Patto é autora de mais de 50 publicações (entre livros, capítulos e artigos), sendo considerada divisora de águas no campo da psicologia em interface com a educação. De sua obra, é comum o destaque à publicação de A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia (PATTO, 1990;2015), livro premiado pela APEOESP em 1995 e consagrado como clássico (CARVALHO, 2015).

Bourdieu é referência constante ao longo da obra de Patto, cujas reflexões dão visibilidade ao perigo relacionado a algumas leituras do pensamento do sociólogo francês no Brasil. No presente artigo, além do clássico livro mencionado, serão destacadas as seguintes publicações, em que a referência a Bourdieu é marcante: Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à Psicologia Escolar (1984), A miséria do mundo no terceiro mundo (2000) e A cidadania negada: políticas públicas e formas de viver (2009a).

A trajetória de Maria Helena Patto, de certa forma, mistura-se às transformações pelas quais a chamada Psicologia Escolar e Educacional passou no Brasil, sobretudo a partir dos anos 1980 (MACHADO; LERNER; FONSECA, 2017MACHADO, Adriana Marcondes; LERNER, Ana Beatriz Coutinho; FONSECA, Paula Fontana. Movimentos políticos e discursivos em Psicologia e Educação: fragmentos de uma história. In: MACHADO, Adriana Marcondes; LERNER, Ana Beatriz Coutinho; FONSECA, Paula Fontana. Concepções e proposições em psicologia e educação: a trajetória do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo: Blucher, 2017, p. 15-27.). Desde a dissertação de mestrado, publicada sob a forma de livro em Privação cultural e educação primária (PATTO, 1973PATTO, Maria Helena Souza. Privação cultural e educação primária. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1973.), Maria Helena demonstra estar mobilizada pela desigualdade social e comprometida com a melhoria da educação escolar oferecida ao povo, em especial aos mais pobres. No entanto, embaçando a compreensão do fenômeno, tal pesquisa foi atravessada por sua adesão às teorias ambientalistas desenvolvidas nos Estados Unidos na mesma década (o mestrado foi realizado entre 1967 e 1970). No contexto da pesquisa, tal aporte parecia convincente por seu caráter interacionista, que aparentemente superava o reducionismo biológico próprio a teorias pré-deterministas da Psicologia, dominantes no país.

A dissertação de mestrado, pouco depois, passou a ser criticada pela própria autora. Em um contexto de mobilização em torno da reabertura política do país, mergulhado desde 1964 no regime autoritário, nas universidades e centros de pesquisa eram intensas a politização e a busca de quadros teóricos de inspiração marxista que contribuíssem para o processo de transformação social (CATANI; CATANI; PEREIRA, 2002CATANI, Afrânio Mendes; CATANI, Denice Barbara; PEREIRA, Gilson R. de M. Pierre Bourdieu: as leituras de sua obra no campo educacional brasileiro. In: TURA, Maria de Lourdes Rangel. Sociologia para educadores. Rio de Janeiro: Quartet, 2002.). Ao lado das reflexões disparadas por memórias da infância e da visitação a instituições de educação compensatória nos Estados Unidos, que contradiziam em muitos aspectos as teses ambientalistas, Maria Helena Patto foi tocada pela leitura de três livros cuja tradução estava chegando no país e que impactaram significativamente as pesquisas no campo educacional (ANGELUCCI et al., 2004ANGELUCCI, Carla Biancha; KALMUS, Jaqueline; PAPARELLI, Renata; PATTO, Maria Helena Souza. O estado da arte da pesquisa sobre fracasso escolar (1991-2002): um estudo introdutório. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 51-72, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1517-97022004000100004. Acesso em 25 jul. 2022.
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). São eles: Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, de Althusser (1974ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença, 1974.), A economia das trocas simbólicas, de Bourdieu (1974BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.), e A reprodução, de Bourdieu e Passeron (1975)1 1 Segundo Catani, Catani e Pereira (2002), as primeiras traduções de Bourdieu aportaram no Brasil em 1968 e sua maior presença nas pesquisas educacionais inicia-se na segunda metade dos anos 1970, com a publicação justamente de A economia das trocas simbólicas (1974), antologia organizada por Sérgio Miceli, e A reprodução (1975), primeiro livro traduzido e obra mais citada à época. Os autores ainda ressaltam que, em um contexto acadêmico bastante politizado, as análises predominantes do autor vão girar em torno da dicotomia reprodução x transformação, depois posta em termos de reprodução x resistência. .

Disso resultou uma virada de olhar que tornou possível à autora perceber e denunciar o caráter ideológico de diversas explicações sobre as desigualdades socioeducacionais produzidas por uma ciência que se dizia neutra e objetiva, embora estivesse embebida no compromisso político e ideológico de naturalização do humano. No cerne de sua crítica está um conjunto de teorias que justificam o fracasso escolar, culpabilizando estudantes e famílias das classes populares pelas dificuldades vividas em um sistema idealmente voltado para o bem comum. Desde então, Patto dedica-se a desnaturalizar a realidade social humana, historicizando-a.

No percurso intelectual de Maria Helena Patto, Pierre Bourdieu figura como uma referência importante e constante, ainda que não seja central. Do ponto de vista histórico, a primeira menção a ele se deu em um capítulo publicado na coletânea Introdução à Psicologia Escolar, primeiro livro organizado pela autora depois do mestrado. O título do texto revela o movimento de ruptura e redirecionamento que se iniciava: Da psicologia do “desprivilegiado” à psicologia do oprimido (PATTO, 1981PATTO, Maria Helena Souza. Da psicologia do “desprivilegiado” à psicologia do oprimido. In: PATTO, Maria Helena Souza. Introdução à Psicologia Escolar. São Paulo: T.A. Queiroz, 1981, p. 208-228.). Na ocasião, citando A reprodução (BOURDIEU; PASSERON, 1975BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A reprodução. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.), Maria Helena anuncia o giro que virá em sua trajetória acadêmica, em um parágrafo ao mesmo tempo sucinto e contundente:

[...] as manifestações culturais de qualquer grupo ou classe social são arbitrárias (no sentido que Bourdieu e Passeron dão a este termo) e a desvalorização de umas concomitantemente à imposição de outras nada mais é que um processo social que garante a expropriação do produto do trabalho do explorado e a acumulação do capital pela classe que detém o poder. Assim, para que possamos entender o fenômeno da dominação cultural, cujo resultado não pode ser a simples diferença entre as culturas dominante e dominada, nem tampouco sua identidade, é preciso remontar a um quadro sociológico mais amplo e inclusivo, que nos revele as determinações últimas das relações entre as classes sociais. (PATTO, 1981PATTO, Maria Helena Souza. Da psicologia do “desprivilegiado” à psicologia do oprimido. In: PATTO, Maria Helena Souza. Introdução à Psicologia Escolar. São Paulo: T.A. Queiroz, 1981, p. 208-228., p. 221).

Perseguindo esse complexo objetivo, Maria Helena se engaja de forma consistente no compromisso de analisar criticamente a psicologia e a educação. Como primeiro resultado de peso nessa direção, publica Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar (PATTO, 1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.), livro de sua pesquisa de doutorado, realizada entre 1977 e 1981. Como veremos, a leitura de Bourdieu foi determinante nesse trabalho.

O encontro com a teoria de Pierre Bourdieu em Psicologia e Ideologia

Publicado originalmente em 1984, Psicologia e Ideologia põe a psicologia escolar em foco, pensando-a a partir de seus determinantes históricos, econômicos, sociais e políticos, no contexto da escola pública primária brasileira voltada para crianças das classes subalternas2 2 A autora denomina classes oprimidas ou classes subalternas, em contraposição a classes marginalizadas, desprivilegiadas ou desfavorecidas, expressões estas que costumam mascarar a estrutura de exploração e dominação. . A crítica à psicologia escolar hegemônica, dita instrumental, denuncia seu papel ideológico e seu compromisso com a reprodução das desigualdades de classes típicas do capitalismo. Ao mesmo tempo, Maria Helena aponta que outra psicologia é possível, abrindo caminhos para assentá-la em bases crítico-transformadoras e indicando ranços que assombram esse exercício. O compromisso ético-político na luta contra a opressão é nítido no livro e acompanha a trajetória da autora como um todo.

Para cumprir o desafio proposto na tese, Patto recorre a diferentes autores do campo crítico, como Karl Marx, Henri Lefebvre, Franco Basaglia, Louis Althusser, Paulo Freire, Marilena Chaui, José de Souza Martins, Ecléa Bosi e Pierre Bourdieu. Como a própria autora reconhece no “Prefácio”, a tese carece de unidade teórica, embora dê relevo especial à teoria reprodutivista: “a marca althusseriana é nítida” (PATTO, 1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984., p. 3). No conjunto de referências mobilizadas para a pesquisa, vale-se de alguns conceitos de Bourdieu, colocando-o em diálogo com outros pensadores críticos, para tecer uma síntese própria.

Mencionado em um primeiro momento para lançar críticas a Dewey e Durkheim (PATTO, 1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984., p. 26), a autora dedica uma subseção para apresentar a teoria de Bourdieu. Intitulada “Pierre Bourdieu: o papel da escola na economia das trocas simbólicas”, ela está inserida na seção “Sociedade e educação em Althusser: a escola como aparelho ideológico do Estado”, que fecha o primeiro capítulo do livro, “Raízes: a relação escola-sociedade” (PATTO, 1984).

Inicialmente, Maria Helena parece inserir Bourdieu nos quadros do materialismo histórico (PATTO, 1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984., p. 32). A leitura da obra do sociólogo francês na chave marxista foi comum no campo educacional brasileiro na virada dos anos 1970 para os anos 1980 (CATANI; CATANI; PEREIRA, 2002CATANI, Afrânio Mendes; CATANI, Denice Barbara; PEREIRA, Gilson R. de M. Pierre Bourdieu: as leituras de sua obra no campo educacional brasileiro. In: TURA, Maria de Lourdes Rangel. Sociologia para educadores. Rio de Janeiro: Quartet, 2002.), contexto de publicação de Psicologia e Ideologia. No entanto, para Forquin (1995FORQUIN, Jean Claude. Sociologia da educação: dez anos de pesquisa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995., p. 60), há “grandes dificuldades para situar e caracterizar os trabalhos de Bourdieu e Passeron”. A própria Patto reconhece isso ao afirmar mais adiante, no mesmo livro, que Bourdieu se vale de conceitos teóricos e procedimentos metodológicos presentes nos três grandes clássicos da sociologia, Marx, Weber e Durkheim, e que isso, “embora resulte num produto extremamente original, fértil e desafiador, não deixa de apresentar incongruências e ambiguidades já apontadas por críticos de sua obra” (PATTO, 1984, p. 45).

Independentemente disso, ela afirma que a contribuição de Bourdieu para a educação é “inegável”, principalmente por ajudar a compreender a “microfísica do poder na instituição escolar” (p. 61), instituição privilegiada, pois vista socialmente como “neutra por excelência”. Na leitura de Patto, Bourdieu acrescenta às abordagens macroestruturais que pensam a escola como aparelho ideológico de Estado a microestrutura de dominação que se efetiva no plano das relações interpessoais: “Longe de querermos invalidar as análises macroestruturais da relação entre Escola e Sociedade, o que desejamos é nos aproximar, no equacionamento desta problemática, da dimensão na qual o psicólogo transita: a dimensão pessoal ou intersubjetiva” (p. 136). Bourdieu caminha nessa direção, ao mergulhar na “maneira pela qual dimensões sociais incidem na prática individual e como o conceito abstrato de ideologia se materializa no fazer humano” (p. 54). Com isso, alia “o conhecimento da organização interna do campo simbólico a uma análise do papel ideológico e político que cumprem ao legitimar uma ordem arbitrária na qual se baseia o sistema de dominação vigente” (p. 47).

A fim de elucidar os mecanismos de dominação presentes no cotidiano escolar, Patto (1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.) recorre à teoria bourdieusiana, valendo-se das noções e dos conceitos de capital cultural, habitus, reprodução social, arbitrário cultural, violência simbólica, agências educativas, sistema de ensino, autoridade pedagógica, ação pedagógica, trabalho pedagógico e critérios de seleção e eliminação escolar. Seu pensamento é sintetizado em um longo e denso parágrafo:

O trabalho pedagógico, exercido em nome de uma classe, produz, portanto, a interiorização dos princípios de um arbitrário cultural sob a forma de um habitus durável e transferível ou sistema de esquemas de percepção de pensamento, de julgamento e de ação, e o faz sem necessariamente recorrer à coerção externa ou à coerção física. Produzindo o desconhecimento do duplo arbitrário da ação pedagógica através do reconhecimento da autoridade pedagógica e do produto que ela propõe, o trabalho pedagógico legitima o arbitrário cultural que impõe, de formas mais ou menos sutis, mais ou menos eficazes. [...] O valor, enquanto capital cultural, dos bens culturais transmitidos pelas diferentes ações pedagógicas familiares é função da distância entre o arbitrário cultural imposto pela autoridade pedagógica dominante e o arbitrário cultural inculcado pela ação pedagógica familiar nas diferentes classes. Nesse sentido, Bourdieu não só estabelece uma hierarquia entre as diferentes instâncias de violência simbólica quanto à sua eficiência (defendendo o primado da ação pedagógica familiar, base da eficácia de todas as demais subsequentes), mas mostra também que a produtividade específica de um trabalho pedagógico secundário dominante é tanto menor quanto mais se exerce sobre grupos ou classes formados por um trabalho pedagógico primário mais afastado do trabalho pedagógico dominante. É este fato que o permite afirmar que o trabalho pedagógico secundário dominante não produz completamente as condições de sua produtividade, privilegiando, assim, em termos de aquisição de competências socialmente valorizadas, aqueles que já possuem familiaridade com o arbitrário cultural dominante, ou seja, a classe ou os grupos dominantes. (PATTO, 1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984., p. 52-53, destaques da autora).

O caráter reprodutivista da escola encontra corpo na autoridade pedagógica do professor e na importância dos veredictos escolares, responsáveis por viabilizar o processo de violência simbólica e a seletividade do sistema de ensino. Se o trabalho pedagógico envolve a imposição e inculcação do habitus da classe dominante, ele não é inócuo nem indiferente às classes oprimidas: ele produz “o reconhecimento da legitimidade da cultura dominante” e o simultâneo “reconhecimento da ilegitimidade da cultura popular” (PATTO, 1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984., p. 53).

A influência de Bourdieu é notável na análise de Patto sobre nossa história educacional. Em 1961, após a promulgação da primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB), a seletividade do sistema de ensino brasileiro ficou evidente, legalizando tendências contraditórias há muito presentes na educação, reforçando a tradicional dualidade entre educação intelectual, reservada às classes dominantes, e educação profissional, destinada aos pobres. A LDB cumpriu um papel de legitimar e institucionalizar as desigualdades sob a aparência de democratizar o ensino, uma vez que os cursos profissionalizantes de nível médio foram reservados às classes populares e, em geral, ofertados por instituições de qualidade duvidosa, não oferecendo oportunidades reais de ingresso nas universidades. Assim, a escola tornou-se fonte de descontentamento para os mais pobres, ou, nos dizeres de Bourdieu e Champagne (1997, p. 483), “um engodo e fonte de uma imensa decepção coletiva: essa espécie de terra prometida, sempre igual no horizonte, que recua à medida que nos aproximamos dela”.

Patto (1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.) também identifica estratégias de manutenção da seletividade do ensino na ditadura militar, via incremento do ensino pago de segunda categoria, como supletivos e o ensino superior privado voltado para cursos de menor prestígio acadêmico e profissional. A relegação dos estudantes das classes populares a cursos e disciplinas desvalorizados que tendem a mascarar as desigualdades é fenômeno bastante discutido no campo da sociologia da educação (FORQUIN, 1995FORQUIN, Jean Claude. Sociologia da educação: dez anos de pesquisa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.) e tão bem explorado por Bourdieu e Passeron em Os Herdeiros (2014BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014.).

No centro da pesquisa que dá corpo ao Psicologia e Ideologia está a organização de um contraponto às teorias dominantes no campo da psicologia educacional, em especial a teoria da carência cultural, na qual Patto se apoiou anos antes. Tal teoria surgiu nos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970, como resposta ao crescente descontentamento das classes populares frente às desigualdades socioeducacionais, alimentando o mito da igualdade de oportunidades, esteio da ideologia liberal naquele país (PATTO, 1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.). Conforme preconiza, as causas do fracasso que tradicionalmente assola os alunos das classes populares estariam em supostas deficiências ou carências oriundas do meio sociocultural. Com isso, a escola, enquanto instituição social determinada, fica isenta de responsabilidade e as crianças pobres e suas famílias são consideradas como culpadas pela produção do fracasso. Ao perguntar “psicologia da pobreza ou pobreza da psicologia?” (1984, p. 113) expõe que tal “teoria” é um veículo da ideologia dominante, com efeitos profundos na atuação de professores e psicólogos, referidos no livro como professores e psicólogos policiais, expressão emprestada e desdobrada de Maria Tereza Nidelcoff3 3 Décadas adiante, esse debate permanece em sua obra (PATTO, 2009b), atualizado na expressão “cães de guarda do sistema”, agora emprestada de Paul Nizan. .

Patto (1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.) referencia Bourdieu para ressaltar que a aparente neutralidade da escola é estratégia de reprodução da dominação de classe. Ao valorizar uma cultura considerada superior, a teoria da carência cultural desconsidera sua imposição enquanto arbitrário cultural e partícipe do processo de dominação. Para dar materialidade a essa compreensão, a autora põe em foco o mito da deficiência de linguagem, quando tece duras críticas à tese do dialetismo presente em pesquisas sobre crianças pobres no Brasil. Ainda que embebidas de boa vontade, para ela, trata-se da “tese liberal, da crença de que à escola cabe o papel de, a longo prazo, extinguir a pobreza, através de um processo de facilitação da passagem dos membros da chamada classe baixa para as denominadas classes mais altas” (PATTO, 1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984., p. 134).

Em sua crítica, tais pesquisas não atinam que “a eleição da língua em sua forma oficial como critério para o sucesso escolar e profissional é um ato de dominação” e que “a imposição arbitrária de um arbitrário cultural implica, queiramos ou não, a desvalorização de outras formas de linguagem”. Tal concepção “colabora com os intentos de perpetuação do status quo porque faz crer que um problema, na verdade econômico, social e político, se resume a uma questão psicológica, linguística ou escolar”. Como corte ético, Patto ressalta os efeitos individuais e grupais “dotados de um poder de opressão que não pode ser desconsiderado” (1984, p. 135). Não é casual que ela traga Fanon para o debate, de quem extrai suporte para afirmar a psicologia e a educação como instituições ativas no processo de silenciamento da expressão e de “cassação da palavra do oprimido” (p. 135-136).

Maria Helena, já à época, destaca as dificuldades de superar vícios presentes no olhar (do) dominante em relação às classes oprimidas. No livro, ela analisa pesquisas atravessadas por essa contradição: embora preocupadas em “desvendar as medidas que instalam a dominação no coração do oprimido”, valendo-se de abordagens teórico-metodológicas consideradas críticas, como é o caso do aporte bourdieusiano, essas pesquisas mantêm subjacente a suposição da inferioridade dos pobres própria às teorias ambientalistas. O contraponto de Patto dá valor à pesquisa engajada e à experiência sensível no encontro com o outro (PATTO, 1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984., p. 154-5):

Uma convivência mais longa e mais despojada de mediações acadêmicas com representantes do povo, sobretudo nas zonas rurais, tem trazido, aos que optaram por este caminho, a certeza de que sua capacidade de sentir e de pensar é muito maior do que faz crer a teoria da carência cultural. Se existe carência, ela é de recursos econômicos, de informação política e de oportunidades de organização, que lhes permita abrir espaços internos e externos à reflexão.

O Prefácio de Psicologia e Ideologia indica que Patto (1984PATTO, Maria Helena Souza. Psicologia e ideologia: uma crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.) segue no exercício de pensar o próprio pensamento, acolhendo e partilhando as críticas da banca4 4 Composta pelos Professores doutores José de Souza Martins, Dermeval Saviani, Sylvia Leser de Mello e Ana Maria de Almeida, além da orientadora, Ecléa Bosi. . A tese é referida por ela como “um depoimento”, que relata o “início de uma trajetória profissional difícil” e que ao final segue sendo “ambígua e a meio caminho”, indicando que seguirá o percurso pelas trilhas da dialética (p. 1-4). A expressão “a meio caminho” é habitada pela assunção de “levar adiante a tarefa aqui esboçada” e reforçada no compromisso que encerra o texto: esse é “um desafio que se coloca a todos que estejam tentando trazer para o centro de suas vidas as palavras de Brecht: ‘a única finalidade da ciência está em aliviar a miséria da existência humana” (p. 4).

No exercício de alargar e aprofundar o pensamento, Patto deu materialidade àquela que se tornou sua publicação de maior impacto: A produção do fracasso escolar. Sem esgotar a complexidade de tal livro, daremos relevo, a seguir, à maneira como a autora dialoga com a teoria de Bourdieu e sua interpretação por pesquisadores educacionais brasileiros.

Apontamentos sobre a teoria de Bourdieu em A produção do fracasso escolar

Em 1990, foi publicada a primeira edição de A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia, aclamada tese de livre docência de Maria Helena Patto, apresentada em 1987. De enorme repercussão, em 2015, o livro foi publicado em sua quarta edição, revista e ampliada, marcando 25 anos desde o lançamento (PATTO, 2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015.).

Patto (2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015., p. 29) toma como desafio da pesquisa “contribuir para a compreensão do fracasso escolar enquanto processo psicossocial complexo”. Entendendo a relevância de se conhecer o processo dessa produção, a autora empreende uma revisão crítica diligente da literatura que discute as causas da produção do fracasso escolar e, ao mesmo tempo, apresenta uma densa pesquisa sobre o tema, realizada no chão de uma escola pública de primeiro grau situada em um bairro pobre na cidade de São Paulo, entre 1983 e 1984, com intensa participação de três estudantes pesquisadoras. Como resultado, a autora oferece uma contribuição teórica original e apresenta uma saída para impasses de natureza teórico-metodológica presentes naquele contexto, com importantes reverberações no campo educacional brasileiro.

Na ocasião, buscava-se uma perspectiva teórica para pensar a relação escola-sociedade que superasse as concepções funcionalistas, sem curvar a vara5 5 Expressão célebre utilizada por Saviani, inspirada em Lênin: “Com efeito, assim como para se endireitar uma vara que se encontra torta não basta colocá-la na posição correta, mas é necessário curvá-la do lado oposto, assim, também, no embate ideológico, não basta enunciar a concepção correta para que os desvios sejam corrigidos; é necessário abalar as certezas, desautorizar o senso comum.” (SAVIANI, 2018, p. 48). para críticas que vissem a escola como uma totalidade reprodutora da sociedade, aspecto (auto)criticado na tese de doutorado. Assim, o lugar da teoria reprodutivista é redimensionado, dando assento a uma leitura dialética. Sem desprezar as contribuições de Bourdieu para pensar o sistema de ensino público brasileiro, a autora cria tensionamentos importantes quanto aos limites impostos pelo olhar que se volta apenas para a força da continuação. Despontam importantes referências do materialismo histórico e dialético, como Antonio Gramsci, Theodor Adorno, Eric Hobsbawm, José de Souza Martins, Marilena Chauí e, em especial, Agnes Heller. É no complexo conceito de vida cotidiana desta última que Patto (2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015.) encontra uma saída teórico-metodológica para articular a esfera social e individual e pensar as tensões e contradições presentes na vida escolar6 6 Para aprofundamento deste debate, recomendamos a leitura de Patto (1990/2015) e Patto (1993). . Desde então, tem sido um referencial promissor para refletir sobre a escolarização das classes subalternas nos países situados na periferia do capitalismo.

Nesse livro, Patto partilha o exame crítico das principais explicações hegemônicas sobre as causas da produção do fracasso escolar reservado às classes populares, destacando seu viés positivista e o predomínio do modo capitalista de pensar. Em sua interpretação, situam-se aí algumas análises equivocadas da teoria de Bourdieu na pesquisa educacional brasileira.

Inicialmente, ressaltamos que, para Patto (2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015.), a entrada de Bourdieu no pensamento educacional brasileiro é um verdadeiro marco, desempenhando papel estratégico de mudança, sobretudo em três eixos: colocar em foco a dimensão relacional do processo de ensino-aprendizagem (contrapondo o tecnicismo que a relegava a segundo plano); enfatizar o processo de dominação e discriminação social presentes na educação (tensionando sua naturalização); e ampliar a possibilidade de pensar a educação a partir dos condicionantes sociais (contrariando o mito da neutralidade), posições que compuseram com teorias que discutiam os mecanismos de reprodução na educação e as concepções dialéticas sobre a sociedade e a escola.

No entanto, em sua compreensão, nas pesquisas educacionais brasileiras a teoria bourdieusiana foi atravessada por equívocos importantes7 7 No mesmo sentido, uma década depois, Catani, Catani e Pereira (2002) apontam que a quase a totalidade dos trabalhos publicados à época nos principais periódicos de educação foram apropriações superficiais de sua obra. , sobretudo nos casos de estudos voltados para a produção do fracasso escolar em nossa realidade (sendo mais sutil nos ensaios teóricos sobre o autor). Como equívoco fundamental, a autora enfatiza:

A convivência da teoria da reprodução com a convincente teoria da carência cultural, aliada a uma concepção positivista de produção de conhecimentos, resultou em distorções conceituais que levaram a aplicação da concepção da escola como aparelho ideológico de Estado a descaminhos teóricos. (PATTO, 2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015., p. 137).

Epistemologicamente inconciliáveis, as teorias da carência cultural e da reprodução foram amalgamadas na literatura educacional brasileira dos anos 1970. Essa fusão responde a uma fadada tentativa de sutura de um discurso fraturado sobre a produção do fracasso escolar: “a partir de duas informações inicialmente não conciliadas - ‘as causas estão na escola’ x ‘as causas estão na clientela’ - produziu-se uma terceira que as relacionava: a escola é inadequada para as crianças carentes” (PATTO, 2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015., p. 120-121, grifo da autora). Nesta lógica, o fracasso escolar seria produto do desencontro cultural entre a escola, representante dos valores da classe média, e a criança “carente”, portadora de deficiências próprias de seu meio sociocultural. Sua crítica acerca da relação “inadequação do ensino x desinteresse dos alunos” é certeira:

Essas interpretações do fracasso da escola são, a nosso ver, inconciliáveis. Da maneira como estão enunciadas, não é possível nem mesmo afirmar que a uma escola desinteressante vem se somar um aluno desinteressado; é uma simples questão de lógica: enquanto a primeira não melhorar, não se pode afirmar a falta de motivação como inerente ao segundo. (PATTO, 2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015., p. 113).

Como resultado dessa incompatibilidade, a incorporação de conceitos bourdieusianos à teoria da carência cultural levou à descaracterização do papel da escola no esquema teórico do sociólogo francês. A escola foi vista como forma de ascensão social possível às classes populares e seu caráter reprodutor foi desconsiderado. É assim que o conceito de dominação deixa de ser entendido “como contrapartida cultural da exploração econômica inerente a uma sociedade de classes regida pelo capital” para ser interpretado “como um desencontro entre dois segmentos culturais distintos que resultava na segregação dos grupos e classes mais pobres, supostamente portadores de padrões culturais completamente diferentes dos padrões da classe média” (PATTO, 2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015., p. 137). Essa interpretação esvaziada de Bourdieu possui a tonalidade a-histórica própria à literatura educacional norte-americana dos anos 1960. Dessa maneira,

como os determinantes sociais e estruturais das condições diferentes de vida não eram explicitados, a existência de relações de produção calcadas na exploração, de interesses inconciliáveis de classes antagônicas - concepções indispensáveis para o entendimento da dominação cultural - ficavam omitidas e estas pesquisas passaram a veicular uma interpretação do papel social da escola em total desacordo com a arquitetura conceitual da teoria que lhes servia de inspiração. (PATTO, 2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015., p. 138).

Nesse enfoque, de “concessionário legítimo da violência simbólica”, o professor passa a cumprir um papel socializador das classes dominadas, a princípio válido, porém equivocado em seu caráter impositivo frente ao desencontro cultural entre estudantes e professores. Tais pesquisas defendem que, diante de alunos pobres, professores, “por intolerância, moralismo ou inadvertência”, não reconhecem “a existência de subculturas distintas da sua na sociedade inclusiva” (PATTO, 2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015., p. 137). Caberia, assim, à escola, viabilizar a integração das classes dominadas aos valores da classe dominante e, quiçá, propiciar-lhes condições de ascensão.

O objetivo não era, portanto, garantir às classes subalternas a apropriação do saber escolar enquanto instrumento de luta na transformação radical da sociedade, mas acenar para o pobre com a possibilidade de melhoria de suas condições de vida através de uma melhora de nível social e econômico, estruturalmente impossível para a maioria. (PATTO, 2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015., p. 138).

No mesmo sentido, o conceito de capital cultural foi esvaziado ao ser assimilado sob o viés da teoria da carência cultural. De bem estratégico utilizado para pensar o processo de dominação e legitimação que se passa na sociedade e na escola, o conceito é utilizado para se referir a atributos psicológicos e comportamentais tidos como ideais, mas ausentes nos integrantes das classes populares, tomados como “deficientes” ou “carentes” culturais. Diz ela:

A noção de “capital cultural” foi inicialmente empregada, na pesquisa sobre o fracasso escolar, como sinônimo de desenvolvimento psicológico consonante com os critérios de uma psicologia normativa, segundo a qual todos os resultados de provas psicométricas situados abaixo da média são considerados indicadores de desenvolvimento deficitário. (PATTO, 2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015., p. 139).

Com isso, mais uma vez, as causas da produção do fracasso escolar eram atribuídas às crianças das classes populares, vistas como sujas, doentes, indisciplinadas, rebeldes, pouco inteligentes, carentes, provenientes de famílias desestruturadas etc., reproduzindo estereótipos comuns às pesquisas na área. Considerar a inadequação da escola à criança carente ou diferente é uma tentativa de conciliar o discurso fraturado que oscilava a responsabilização entre a escola e o aluno (PATTO, 2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015.). A autora prossegue (p. 147-8):

Além de desconhecerem o habitus, certamente heterogêneo, dos variados segmentos das classes populares que habitam a periferia das grandes cidades e de preencher esta lacuna com suposições fundadas em preconceitos, os pesquisadores, ao atribuírem o fracasso escolar das crianças pobres à sua falta de “capital cultural” para fazer frente às exigências culturais da escola, esquecem-se de um aspecto fundamental da teoria da reprodução: seus autores referem-se à relação professor-aluno no ensino universitário francês, em que um corpo docente de alto nível exige de seus alunos conhecimentos e estilos de pensamento e linguagem a que geralmente só os mais ricos têm acesso. Os enunciados de Bourdieu e Passeron sobre as exigências culturais do ensino superior francês serão generalizáveis para as escolas primárias públicas brasileiras? Seus professores, especialmente nas primeiras séries, avaliam seus alunos segundo critérios que passam por estilos mentais e verbais característicos de uma elite intelectualizada? Seus professores possuem “capital cultural” e o exigem de seus alunos? Será que essa escola chega a veicular “o saber da classe dominante” e os altos índices de repetência podem ser explicados como resistência por parte dos alunos, à imposição desse saber?.

Munida de tais perguntas8 8 Décadas mais tarde, em A miséria do mundo o terceiro mundo, Patto responde algumas delas em uma nota de rodapé que pode passar despercebida aos mais incautos: “As exigências feitas pelos professores da rede de ensino público primário muitas vezes não chegam a passar pelo capital cultural nos termos definidos por Bourdieu: o que se exige não são estilos de pensamento e de linguagem da classe dominante, mas principalmente três coisas: obediência, submissão a rituais pedagógicos, sempre os mesmos e destituídos de sentido; ajuda pedagógica extraescolar, sem a qual ‘não vai’, como afirmam alguns professores” (PATTO, 2000, p. 221). , Maria Helena dá corpo, em A produção do fracasso escolar, a uma pesquisa criteriosa sobre como tal produção sintetiza determinações históricas, políticas, sociais, econômicas, institucionais, pedagógicas, relacionais que não podem ser contidas em formulações simplificadoras. Para compreender a concretude de nossa realidade no miúdo da vida, impôs à pesquisa a longa convivência com o cotidiano escolar. O aporte materialista histórico-dialético deu aos elementos concretos um cabedal teórico consistente, que permitiu à autora lançar luz não só aos movimentos de reprodução dos interesses de dominação, que ainda insistem em ser hegemônicos nas escolas (de onde importa conhecê-los a fundo), mas também aos movimentos de ruptura ao que está posto. É assim que ela repara:

A rebeldia pulsa no corpo da escola e a contradição é uma constante nos discursos de todos os envolvidos no processo educativo; mais que isto, sob uma aparente impessoalidade, pode-se captar a ação constante da subjetividade. A burocracia não tem o poder de eliminar o sujeito; pode, no máximo, amordaçá-lo. Palco simultâneo da subordinação e da insubordinação, da voz silenciada pelas mensagens ideológicas e da voz consciente das arbitrariedades e injustiças, lugar de antagonismo, enfim, a escola existe como lugar de contradições, que longe de serem disfunções indesejáveis das relações humanas numa sociedade patrimonialista, são a matéria-prima da transformação possível do estado de coisas vigente. (PATTO, 2015PATTO, Maria Helena Souza. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Entremeios, 2015., p. 423).

Tomando as contradições como motor, suas críticas não implicaram o entendimento de que Bourdieu não tem contribuições para pensar nossa educação, mas frisam a importância de cuidados em seu uso para interpretar a realidade brasileira, os quais foram postos em prática em sua trajetória. Atenta, ela segue leitora de Bourdieu, que permanece sendo referenciado em diversos escritos seus. Da obra de tal autor, merece destaque o impacto do livro A miséria do mundo (BOURDIEU, 1997BOURDIEU, Pierre; CHAMPAGNE, Patrick. Os excluídos no interior. In: BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 481-486.) no percurso acadêmico de Patto, aspecto abordado a seguir.

Quando A miséria do mundo atinge Maria Helena Souza Patto

A leitura de A miséria do mundo (BOURDIEU, 1997BOURDIEU, Pierre; CHAMPAGNE, Patrick. Os excluídos no interior. In: BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 481-486.) fisgou Maria Helena Souza Patto. Nesse livro, o sociólogo francês coordena uma equipe que busca compreender os depoimentos de pessoas das classes populares que dependem de políticas públicas em vários campos da vida social. Para Patto, “contra uma ‘psicologia acadêmica de má qualidade’”, Bourdieu perscruta “a subjetividade no interior de uma ordenação social concreta, dividida e desigual como sempre foi, mas agora gerenciada por mecanismos de dominação que dão existência a novas formas da aparência igualitária”. Assim, ele atinge “os meandros da produção da dificuldade de viver”, que tem sido “ocultada por uma farsa democrática cada vez mais apurada” (2000, p. 187).

Mais do que referido, tal livro afeta sua produção acadêmica. Inicialmente, Patto (2000PATTO, Maria Helena Souza. A miséria do mundo no Terceiro Mundo. In: PATTO, Maria Helena Souza. Mutações do Cativeiro. São Paulo: Hacker/EDUSP, 2000, p. 187-222.) publica o capítulo “A miséria do mundo no terceiro mundo: sobre a democratização do ensino”. Não apenas o título e o conteúdo, mas a forma do texto dialoga nitidamente com o livro francês: para compreender com delicadeza o depoimento de uma estudante de ensino médio em um curso supletivo noturno, é preciso situá-lo no bojo da política educacional que o constitui.

Primeiro, Patto sintetiza o que leu, em especial no capítulo “Os excluídos no interior” (BOURDIEU; CHAMPAGNE, 1997BOURDIEU, Pierre; CHAMPAGNE, Patrick. Os excluídos no interior. In: BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 481-486.) e, em seguida, nas entrevistas com estudantes e docentes: “As vozes registradas confirmaram a tese central da teoria do sistema de ensino que Bourdieu formulou há quase trinta anos: sob a aparência de democratização, a realidade da reprodução” (PATTO, 2000PATTO, Maria Helena Souza. A miséria do mundo no Terceiro Mundo. In: PATTO, Maria Helena Souza. Mutações do Cativeiro. São Paulo: Hacker/EDUSP, 2000, p. 187-222., p. 189). Em acordo com Bourdieu e Champagne (1997), esse “sistema contraditório” dá contorno a uma “política educacional perversa”, que instaura “práticas de exclusão brandas”, substituindo a “eliminação brutal” pela “eliminação sutil”. Como consequência, há nas escolas “uma nova modalidade de exclusão escolar que mantém os excluídos no interior”, não sem a experiência de “dilaceramento das vítimas do engodo”, que demonstram perceber que a escola que acessam é “simulacro” (PATTO, 2000, p. 190).

Contudo, como a miséria do mundo atinge quem vive no terceiro mundo? Como seria essa realidade no Brasil? Movida por essas inquietações, Patto atenta para não fazer transposições simplificadoras. No fim do milênio, o Brasil seguia mergulhado em “procedimentos que responsabilizam os prejudicados por uma escola de má qualidade e por um sistema escolar calcado numa lógica - a lógica do próprio sistema social que a inclui - que promete, mas não pode cumprir a democratização das oportunidades educacionais” (PATTO, 2000PATTO, Maria Helena Souza. A miséria do mundo no Terceiro Mundo. In: PATTO, Maria Helena Souza. Mutações do Cativeiro. São Paulo: Hacker/EDUSP, 2000, p. 187-222., p. 192). Diferentemente da França, no entanto, aqui os “excluídos no interior” estavam estacionados no ensino fundamental, sendo lenta a ascensão pelos níveis escolares, em geral em instituições privadas de má qualidade. Diz ela, à luz da política educacional em vigor naquele contexto:

Comparada com o quadro francês (no qual os “excluídos-incluídos” podem percorrer de ponta a ponta a carreira escolar), a situação brasileira ainda é de “eliminação brutal”, que é como os pesquisadores coordenados por Bourdieu chamam a escolaridade que se encerra no primeiro nível da escolarização, seja ele completado ou não. Mas é sabido que a política atual caracteriza-se por tentativas de internalização escolar dos expulsos, seja pela criação de uma rede de caminhos dentro da escola de primeiro grau - os quais, sob o pretexto de incluir, prolongam a ilusão da inclusão, pois, mesmo que os percorram, esses alunos não tiveram acesso a um ensino que se possa dizer de boa qualidade -, seja pelo afrouxamento dos critérios de avaliação da aprendizagem, com intenção clara, mas não confessada, de empurrar de qualquer jeito os estudantes de baixa renda pelos graus escolares adentro, quando possível até o terceiro grau. (PATTO, 2000PATTO, Maria Helena Souza. A miséria do mundo no Terceiro Mundo. In: PATTO, Maria Helena Souza. Mutações do Cativeiro. São Paulo: Hacker/EDUSP, 2000, p. 187-222., p. 193).

Tecidas essas considerações, Maria Helena nos apresenta Sandra, uma jovem negra de 26 anos, trabalhadora desde os 13 e mãe desde os 20, que acabara de concluir o ensino médio pela via de um curso supletivo noturno precarizado. Seguindo a estrutura da pesquisa francesa, há um curto texto sobre a depoente, para então se partilhar a entrevista, sem análises que a retalhem; o que acessamos é o diálogo entre Maria Helena e Sandra, dando recheio a dilemas e decisões que aparecem no horizonte da depoente, nos tocando de forma sensível.

Instigada por essa experiência, Patto coordenou uma pesquisa coletiva inspirada em tal estudo, publicada no livro A cidadania negada: políticas públicas e formas de viver (PATTO, 2009aPATTO, Maria Helena Souza. A cidadania negada. Políticas públicas e formas de viver. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009a.). Realizada nos primeiros anos do novo milênio, entre 2001 e 2005, a pesquisa objetivou compreender as formas de viver a presença/ausência do Estado na garantia de direitos sociais por parte de pessoas que dependem de políticas públicas nas áreas do trabalho, educação, habitação, segurança, saúde, cultura e lazer. Abrindo cada área, há um texto sobre a política pública naquele campo, após o qual são partilhadas 35 trajetórias afetadas pela presença ou não de tais políticas: primeiro, um texto apresenta os depoentes; depois, há as entrevistas editadas.

O capítulo que analisa as políticas públicas educacionais, “Sob o signo do descaso”, faz um breve e contundente histórico da educação no Brasil até atingir o cenário da época. Ao modo bourdieusiano, Patto (2009aPATTO, Maria Helena Souza. A cidadania negada. Políticas públicas e formas de viver. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009a., p.187) afirma: “os excluídos da escola, agora ‘incluídos’, fazem crescer as estatísticas escolares e beneficiam, única e exclusivamente, os que governam”. Situada a área, são apresentadas cinco entrevistas, por meio das quais conhecemos as histórias de uma professora da rede básica de ensino público, de duas mães de alunos de escola pública fundamental e de três estudantes, em diferentes etapas da escolarização. Impressionantemente atuais, passados quase 20 anos, destacamos que Patto volta a entrevistar Sandra, “um caso claro de ‘inclusão-exclusão’ nos termos de Bourdieu: uma jovem pobre que lutava por escolarização, mas com ‘inclusão’ escolar ilusória. Na verdade, entrara num beco sem saída: paradoxalmente, frequentava a escola, mas estava excluída do direito à educação” (PATTO, 2009aPATTO, Maria Helena Souza. A cidadania negada. Políticas públicas e formas de viver. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009a., p. 240).

Tal como o estudo francês, a pesquisa brasileira, por seu caráter coletivo, foi orientada por princípios comuns, sintetizados no capítulo “Para ler as entrevistas”. Ao pensar o desenho da pesquisa, Patto faz apontamentos éticos que reforçam a importância de proteger os depoentes dos chamados “desvios de sentido” advindos da “má compreensão” de suas falas, sendo um cuidado a escrita do pequeno texto que antecede cada entrevista. O objetivo de compreender o que as pessoas dizem nas entrevistas não é simples nem fluido, mas tenso. Segundo analisa,

além de resguardá-los [os depoentes] dos desvios que possam provir do leitor, a pesquisa foi construída sobre dois pilares teóricos que os preservassem da má escuta dos próprios pesquisadores: a reinvenção da pesquisa para além do cientificismo que concebe a produção de conhecimento sobre os seres humanos em termos positivistas; a consideração fundamental de que a cultura popular se produz, e só pode ser entendida, no interior das relações sociais de poder vigentes numa sociedade dividida. (PATTO, 2009aPATTO, Maria Helena Souza. A cidadania negada. Políticas públicas e formas de viver. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009a., p. 17).

No horizonte, o reconhecimento da humanidade de todas as pessoas envolvidas na pesquisa. Como desafio, construir encontros que buscassem superar toda e qualquer forma de comunicação violenta, preocupação fundamental quando miramos pesquisas como um todo e que se sobreleva quando a desigualdade as atravessa. Também sensibilizada por Alfredo Bosi, Patto afirma: “O que está em xeque, em suma, é a dominação que o intelectual introjetou tão profundamente que já não se apercebe dela” (2009a, p. 19). O cuidado para não ser inquiridor, impositivo, intrusivo, maneirista ou um mero curioso acompanhou a pesquisa. As entrevistas se assemelharam a conversas gravadas, na qual entrevistadoras se implicaram em construir uma escuta “ativa e metódica”, ao mesmo tempo acolhendo, buscando compreender, posicionando-se e provocando reflexões. Tal atenção foi sustentada na transcrição, edição e composição do texto final, buscando fugir dos “riscos da escrita” (BOURDIEU, 1997BOURDIEU, Pierre; CHAMPAGNE, Patrick. Os excluídos no interior. In: BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 481-486.).

No esforço de entender as entrevistas, Patto ressalta a importância de se “considerar que as falas registradas são produzidas numa realidade social concreta, feita de exploração e de opressão”, que produz efeitos subjetivos. Articulando Bourdieu com Laing, pensador da antipsiquiatria bastante referenciado em sua obra, a autora reitera: só há inteligibilidade nos depoimentos quando os reconhecemos inseridos em macrossituações, marcadas por tensões e contradições que não cabem em achatamentos unidimensionais da realidade nem das pessoas.

No livro, Patto (2009) reafirma que a Psicologia, como outras ciências humanas, tende a produzir textos “sobre os pobres”, legitimando concepções que “fazem parte de uma espécie de ‘senso comum acadêmico’ que agrava preconceitos e reduções ao aplicar-lhes a chancela de verdades científicas” (p. 598). Ao confrontar essa hegemonia, pondo no foco a fala das pessoas, desvelam-se costuras singulares de apropriações, recusas e aceitações ao que está dado. Ainda que haja repetições, próprias à sociedade massificada, há várias “formas de viver construídas na e contra a adversidade que resistem às leituras que querem torná-las homogêneas” (p. 598).

Ponderação presente em sua obra, ao menos desde A produção do fracasso escolar, Patto assegura, referenciando Chaui: “não existe a perfeita submissão”, nem “total alienação”, tampouco a “boa consciência”. Reiterando que “numa sociedade dividida as consciências também o são”, a autora compreende que somos todos reféns dos ardis da alienação “e” portadores de resistência (PATTO, 2009aPATTO, Maria Helena Souza. A cidadania negada. Políticas públicas e formas de viver. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009a., p. 596-597). De fato, mesmo quando os depoentes aparentavam estar colados ao discurso do opressor, foi possível “ouvir, nas frestas da adesão, a consciência social da perversidade da situação que lhes é imposta e a insistência do desejo de diminuir o fosso da falta historicamente aprofundado nas sociedades capitalistas industriais” (p. 598). Esse diapasão afina a sensibilidade: mesmo ciente da “precisão” das análises “cortantes” produzidas por pensadores da teoria crítica da sociedade como Marcuse e Adorno, e ainda que reconheça a força da reprodução, presente na teoria de Bourdieu, sua leitura dos depoimentos convoca-nos ao reparo fino: “Em todas as narrativas, é possível ouvir alguma recusa da padronização”, na medida em que os relatos “portam a tensão de conformismo e resistência”, havendo passagens que “descolam da ideologia e revelam alguma percepção da face perversa da realidade social” (PATTO, 2009, p. 596).

Sua mirada para as contradições também se volta para seu território de atuação:

As limitações impostas pela opacidade da vida social nas sociedades contemporâneas também se fazem presentes na universidade. A miséria do mundo também nos atinge. De um lado, porque ela produz e veicula uma concepção de cientificidade que produz conhecimento ideológico; de outro, porque tem sido objeto de uma política educacional que a quer à imagem e semelhança da lógica empresarial. (PATTO, 2009, p. 599).

O estudo buscou caminhar na contramão dessa lógica. Como resultado, um material instigante e profundo, cuja leitura contribui tanto no que diz respeito a seus achados, mas também, senão essencialmente, em relação aos caminhos construídos para chegar até eles.

Considerações finais

No presente artigo, buscamos analisar as reflexões tecidas na obra de Maria Helena Souza Patto a partir das contribuições do pensamento de Pierre Bourdieu e sua presença na pesquisa educacional brasileira. A opção por colocá-la no centro do debate deu-se pela importância de sua obra no campo da psicologia e da educação, mas também pelas análises e críticas pertinentes que ela faz do autor, que seguem bastante atuais.

Sua relevância cresce diante de pesquisas recentes sobre a produção de sucesso ou fracasso escolar que se afirmam críticas, inspiradas em Bourdieu, mas mostram a força do ranço ambientalista, mantendo o discurso fraturado denunciado por Patto há décadas. Reforçam essa análise o estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar, de Angelucci et al. (2004ANGELUCCI, Carla Biancha; KALMUS, Jaqueline; PAPARELLI, Renata; PATTO, Maria Helena Souza. O estado da arte da pesquisa sobre fracasso escolar (1991-2002): um estudo introdutório. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 51-72, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1517-97022004000100004. Acesso em 25 jul. 2022.
https://doi.org/10.1590/S1517-9702200400...
) e as críticas feitas por Viégas (no prelo) à pesquisa sobre o fracasso escolar na chamada “ralé brasileira” (FREITAS, 2009FREITAS, Lorena. A instituição do fracasso: a educação da ralé. In: SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 281-304.).

A leitura do conjunto de escritos de Patto que referenciam Pierre Bourdieu, realizada neste artigo, anuncia uma pensadora vivaz, que se movimenta sem perder o rigor. Como resultado, tem-se uma composição autoral, na qual Maria Helena dialoga criticamente com a abordagem do pensador francês, pondo-a em articulação com o estudo criterioso da realidade brasileira. Com isso, ela tece apontamentos instigantes ao passo em que se vale de construtos do autor para inspirar a criação de caminhos teóricos e metodológicos em suas pesquisas.

Nesse trançado, Patto capta não apenas os continuismos e as reproduções, dominantes e sufocadoras no chão das escolas, mas também as rupturas e criações, bastante reais. Em seu percurso, é constante a referência à poesia A flor e a náusea, quando Maria Helena dá ênfase à vida: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio” (ANDRADE, 1945ANDRADE, Carlos Drummond de. A flor e a náusea. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945.).

Para concluir, ressaltamos uma reflexão muito cara à autora sobre os usos de teorias estrangeiras para pensar a realidade brasileira (PATTO, 2005PATTO, Maria Helena Souza. Para escrever a história da Psicologia: resumo de uma experiência. In: PATTO, Maria Helena Souza. Exercícios de indignação. Escritos de Educação e Psicologia. Casa do Psicólogo: São Paulo, 2005, p. 109-120.). Sem desprezar os pensamentos elaborados em outro tempo e território, trata-se de não os naturalizar ou universalizar, desconsiderando nossas especificidades, determinadas historicamente. Tal como ela ressalta em vários escritos, é preciso cuidar para que as ideias não fiquem “fora de lugar” (SCHWARZ, 1977; 2000). Ciente dessa necessidade, suas pesquisas voltam-se à história da psicologia e da educação no Brasil, bem como aos desafios da construção diária de políticas educacionais. Nesse movimento, Patto nos convida a priorizar a complexidade da realidade concreta analisada e a cuidar de articulações com conceitos teóricos, realizadas de maneira a dissimular as relações de força em jogo.

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  • SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas, SP: Autores Associados, 2018.
  • SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor, as batatas. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
  • VIÉGAS, Lygia de Sousa. A Miséria do mundo acadêmico: a relação entre pobreza e fracasso escolar em Ralé Brasileira. In: MESSEDER NETO, Hélio da Silva; VIÉGAS, Lygia de Sousa; OLIVEIRA, Elaine Cristina. Educação, Pobreza e Desigualdade Social: escritos de subversão. Salvador: EDUFBA, no prelo.
  • 1
    Segundo Catani, Catani e Pereira (2002), as primeiras traduções de Bourdieu aportaram no Brasil em 1968 e sua maior presença nas pesquisas educacionais inicia-se na segunda metade dos anos 1970, com a publicação justamente de A economia das trocas simbólicas (1974), antologia organizada por Sérgio Miceli, e A reprodução (1975), primeiro livro traduzido e obra mais citada à época. Os autores ainda ressaltam que, em um contexto acadêmico bastante politizado, as análises predominantes do autor vão girar em torno da dicotomia reprodução x transformação, depois posta em termos de reprodução x resistência.
  • 2
    A autora denomina classes oprimidas ou classes subalternas, em contraposição a classes marginalizadas, desprivilegiadas ou desfavorecidas, expressões estas que costumam mascarar a estrutura de exploração e dominação.
  • 3
    Décadas adiante, esse debate permanece em sua obra (PATTO, 2009b), atualizado na expressão “cães de guarda do sistema”, agora emprestada de Paul Nizan.
  • 4
    Composta pelos Professores doutores José de Souza Martins, Dermeval Saviani, Sylvia Leser de Mello e Ana Maria de Almeida, além da orientadora, Ecléa Bosi.
  • 5
    Expressão célebre utilizada por Saviani, inspirada em Lênin: “Com efeito, assim como para se endireitar uma vara que se encontra torta não basta colocá-la na posição correta, mas é necessário curvá-la do lado oposto, assim, também, no embate ideológico, não basta enunciar a concepção correta para que os desvios sejam corrigidos; é necessário abalar as certezas, desautorizar o senso comum.” (SAVIANI, 2018, p. 48).
  • 6
    Para aprofundamento deste debate, recomendamos a leitura de Patto (1990/2015) e Patto (1993).
  • 7
    No mesmo sentido, uma década depois, Catani, Catani e Pereira (2002) apontam que a quase a totalidade dos trabalhos publicados à época nos principais periódicos de educação foram apropriações superficiais de sua obra.
  • 8
    Décadas mais tarde, em A miséria do mundo o terceiro mundo, Patto responde algumas delas em uma nota de rodapé que pode passar despercebida aos mais incautos: “As exigências feitas pelos professores da rede de ensino público primário muitas vezes não chegam a passar pelo capital cultural nos termos definidos por Bourdieu: o que se exige não são estilos de pensamento e de linguagem da classe dominante, mas principalmente três coisas: obediência, submissão a rituais pedagógicos, sempre os mesmos e destituídos de sentido; ajuda pedagógica extraescolar, sem a qual ‘não vai’, como afirmam alguns professores” (PATTO, 2000, p. 221).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2022
  • Aceito
    20 Ago 2022
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