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Apresentação: Brasil e Chile: políticas educacionais e neoliberalismo nas marchas e contramarchas dos anos 2000

RESUMO

Neste artigo é apresentado o dossiê “Valorização docente nos contextos do Brasil e do Chile frente às marchas e contramarchas do neoliberalismo”, considerando-se as condições sociais e políticas únicas, tanto no Brasil quanto no Chile, em que o neoliberalismo foi concebido e implementado. Partindo-se da ideia de que a essência da política é o debate da conjuntura, são apresentados os elementos definitórios para o que os organizadores entendem como marchas e contramarchas do neoliberalismo. Esta ideia-chave é o ponto de partida para a apresentação dos oito artigos que compõem o dossiê, nos quais é evidenciada a centralidade das políticas de formação, remuneração e condições de trabalho dos docentes no Brasil e no Chile. As várias abordagens que compõem as análises mostram uma agenda cotidiana, de certa maneira negociada, que mantém os elementos do neoliberalismo incorporados nas políticas educacionais contemporâneas.

Palavras-chave:
Políticas Educacionais; Valorização Docente; Formação de Professores; Neoliberalismo

ABSTRACT

This article presents the dossier “Teacher appreciation in the Brazilian and Chilean contexto in the face of the marches and countermarches of neoliberalism”, considering the singular social and political conditions of theses countries in which neoliberalism was conceived and implemented. Based on the idea that the essence of politics is the debate of the conjuncture, the authors present the elements that define what they call neoliberal marches and countermarches. Starting from this key idea the eight articles that make up the dossier are presented focusing on the issues training policies, remuneration and teachers’ working conditions in Brazil and Chile. The different approaches that make up the analysis reveal a somewhat negotiated agenda that preserves the elements of neoliberalism incorporated in contemporary educational policies.

Keywords:
Educational Policies; Teacher Appreciation; Teacher Training; Neoliberalism

RESUMEN

En este artículo se presenta el dosier “Valorización docente en el contexto de Brasil y de Chile frente a las marchas y contramarchas del neoliberalismo”, considerándose las singulares condiciones sociales y políticas de ambos países durante el período en el cual el neoliberalismo fue concebido e implementado. La idea básica del presente texto es la de que la naturaleza de la política y de la coyuntura nacional en cada caso constituyen los factores que definen lo que los organizadores del dosier entienden como marchas y contramarchas del neoliberalismo. A partir de esta idea clave se introducen los ocho artículos que integran el dosier, los que ponen en evidencia la centralidad de las políticas de formación, remuneración y condiciones de trabajo que caracterizan tanto la preparación como el desempeño de docentes de Brasil y de Chile. Los variados abordajes que componen los análisis desarrollados por los autores de los artículos muestran una agenda cotidiana que preserva la presencia del neoliberalismo en las políticas educacionales contemporâneas.

Palabras clave:
Políticas Educacionales; Valorización Docente; Formación de Profesores; Neoliberalismo

O dossiê que se apresenta neste texto foi elaborado em condições sociais e políticas bastante peculiares, tanto no Brasil quanto no Chile. Em primeiro lugar, cabe destacar o quadro de referência em que foi concebido, marcado por um movimento de sentido inverso nos dois países: no primeiro semestre de 2022, o Chile parecia avançar na direção de um processo que culminaria na sanção, via plebiscito, de uma nova Constituição política, diferente da vigente desde a ditadura militar, movimento que auspiciava, entre outros aspectos, que, finalmente, iria se impor no país o reconhecimento da natureza social de direitos antes entendidos como privados; o Brasil, por outro lado, no período pré-eleitoral de 2022, parecia correr o risco de caminhar na direção de uma conjuntura complexa pautada pela possível permanência de um governo que tentava por todos os meios concretizar uma transição exatamente oposta à chilena, anunciando um crescente processo de privatização dos direitos sociais consagrados na Constituição de 1988.

No entanto, os processos históricos não costumam guardar simetrias que possibilitem uma explicação simples, por esquematização. No Chile, a sanção do novo corpo legal não se efetivou; e, no Brasil, o projeto político de maior conservadorismo também não alcançou a vitória, ainda que continue tensionando a arena política. Houve mudanças, claro, mas nenhuma das ocorridas acabou sendo a mais esperada ou aconteceu da forma prevista. A análise das causas dessas singularidades e dos fatores que as geraram excede o escopo deste artigo.

O que se pode sustentar é que o dinamismo e a fluidez - ou liquidez, no dizer de Bauman (2000BAUMAN, Zigmund. Liquid Modenity. Polity Press & Blacwell Publishers Ltd, 2000.) - que caracterizam o contexto de desenvolvimento dos sistemas educacionais forçam uma perspectiva diacrônica que deve evitar, porém, a simples imposição dos processos sociais sobre os escolares, no sentido de considerar estes como simples derivados daqueles, ainda que, por vezes, eles possam parecer coincidentes.

Com efeito, os processos sociais e escolares de mudança, transformação e mutação não podem ser submetidos a uma simples substituição. De fato, enquanto tudo o que mencionamos acontecia no Brasil e no Chile, ambos os países, assim como o mundo inteiro, vivenciavam o lento fim da pandemia da COVID-19, que, desde 2020, tinha imposto um novo ritmo aos processos sociais e, como não poderia ser diferente, um outro ritmo sobre o sistema educacional. Foi só no ano de 2022 que as escolas puderam ser abertas plenamente graças ao controle dos efeitos maciços e devastadores da pandemia. As medidas de proteção à saúde tomadas como consequência do reconhecimento governamental, no mundo todo, da existência do mal e da necessidade de adotar medidas de afastamento social e controle das atividades por meio dos sistemas de saúde pública resultaram, ao redor do mundo, determinaram o fechamento de escolas para amenizar a propagação do vírus e evitar que meninos e meninas fossem expostos desnecessariamente ao contágio.

Para evitar o contágio seria necessário, no entanto, modificar drasticamente as condições de realização da experiência de ensino-aprendizagem e, consequentemente, também de forma drástica e inusitada, impor novas exigências aos docentes. Com efeito, os professores tiveram de adaptar as suas práticas à utilização das novas tecnologias. As consequências dessas mudanças para a aprendizagem dos alunos e para as condições de gestão dos sistemas escolares também deveremos abordar num trabalho futuro.

Isto não nos habilita a desconsiderar em momento algum o fenômeno da pandemia nem a sua incidência nas condições de vida laboral dos docentes no último período, uma vez que, em decorrência da situação provocada pela pandemia, foram levantadas múltiplas dúvidas sobre a validade da orientação da formação, sobre a natureza da educação e, diga-se de passagem, quanto ao trabalho dos professores. Estas dúvidas dizem respeito a aspetos tão díspares como os efeitos do contexto econômico, político e cultural mundial na situação profissional dos professores, nas condições da sua formação, na sua remuneração, nas características do currículo e, por fim, outros aspetos da sua atividade profissional.

Em relação ao contexto de desenvolvimento profissional, são muitas as variáveis a examinar, e cresce a relutância em catalogá-las por meio de uma fórmula única que capte a sua diversidade. Com efeito, há uma complexa rede de fatores em cuja estruturação se mesclam componentes econômicos, sociais, políticos e culturais que permitem compreender o trabalho docente. Cada uma dessas esferas dá a impressão de possuir uma estrutura autônoma e, ao mesmo tempo, ser caracterizada por múltiplos caminhos que a intercomunicam com as outras. Eles parecem divergir e convergir ao mesmo tempo, e, por isso, é comum a adoção de esquemas explicativos que pretendem captar uma solidez que se esvai no ar, para usar uma expressão de Marx.

A escolha pela linguagem marxista não responde apenas a uma intenção figurativa, metafórica, mas reflete uma qualidade ontológico-institucional própria da modernidade social que, com efeito, Marx caracterizou no Manifesto comunista (1984). Tal caracterização inaugurou, acreditamos, a forma oblíqua com que se tentou descrever a situação moderna desde o próprio Marx, e a mesma tendência se expressa de várias maneiras nas sucessivas tentativas da sociologia e da crítica cultural mais recente. Vários desses desenvolvimentos se concentraram no uso do termo “neoliberalismo” como uma categoria de análise. Este uso passou a substituir, desde 2000, o uso mais frequente de “pós-moderno” que caracterizara o debate sobre a forma do laço social e a atmosfera cultural pós-industrial. A noção de “neoliberalismo” tem sido entendida, de fato, nos debates mais atuais como uma categoria mais ampla do que aquela contida no termo “pós-moderno”.

Para os debates sobre as políticas educacionais, compreende-se aqui que o conceito de neoliberalismo abarca marcadores de ações dos Estados nacionais ou governos locais que incorporam elementos de gestão de resultados em detrimento da gestão burocrática centrada na preocupação com os meios de oferta da política pública. Tais elementos subvertem a perspectiva dos compromissos com a construção de políticas de proteção centradas no direito à cidadania, as quais são transformadas em políticas de competição entre instituições e, por vezes, entre os indivíduos sob a falaz afirmação do mérito como percurso individual. Esta agenda de resultados tem circulado no mundo de diferentes formas (VERGER, 2018VERGER, Antoni. A política educacional global: conceitos e marcos teóricos chave. Práxis Educativa, [S. l.], v. 14, n. 1, p. 9-33, 2018.), e, neste dossiê, são discutidos alguns dos agentes e alguns dos desafios dessa agenda.

O primeiro artigo do dossiê coloca o foco no tema da formação dos professores, intitulando-se “A influência do Banco Interamericano de Desenvolvimento na formação dos/das professores/as da educação básica no Brasil”. Cabe dizer que parte desse panorama internacional que determina em boa medida a situação dos professores no Brasil decorre da forma como organismos multilaterais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) têm condicionado a formação dos docentes. Isto não constitui um fato novo, embora ainda haja muito por conhecer sobre o conteúdo específico desse condicionamento e sobre a adesão dos governantes a essas pautas. Com efeito, não se trata apenas de uma relação neutra entre os recursos financeiros e as políticas nacionais, mas de uma forma de estabelecer a agenda temática dessa política, por meio da geração de redes sociais que integram empresas privadas locais ou transnacionais, na educação gerencial. Isto é mostrado no artigo de da Silva Lima Aranha e Baçal de Oliveira, onde os autores examinam o caso da Prefeitura Municipal de Manaus e a formação de professores.

A formação de professores é reconhecida como um fator central para a melhora da qualidade da educação e, por isso, tornou-se um importante campo de batalha ideológica, uma vez que constitui uma esfera de ação que pode favorecer a incorporação de posições hegemônicas no corpo docente. Em particular, a formação contínua de professores é aquela que tem mostrado uma abertura e propensão para a privatização pela participação nela de múltiplos atores privados que procuram incidir não só no próprio projeto de formação, mas também na captação de fundos disponíveis por meio de estratégias de ação que incluem, como no caso de Manaus, a participação ativa de agentes públicos e privados. Com isso, certamente, gera-se um crescente processo de mercantilização das necessidades de formação continuada envolvendo mecanismos privados de lucro possibilitados pela mediação de órgãos públicos.

Este é um fenômeno que tem gozado de ampla difusão no sistema educacional chileno. No Chile, a educação tem sido objeto de diversas formas de privatização, e o pano de fundo dos processos de privatização pode ser tomado - seja por razões cronológicas ou por razões conceituais - como uma referência que permite dimensionar a novidade de fenômenos semelhantes quando eles são vividos em outras realidades políticas ou, simplesmente, concluir que se trata de uma reiteração do mesmo tipo de processo. Além disso, a evidência empírica fornecida pelo estudo sobre a influência do BID na formação continuada de professores no Brasil é uma contribuição relevante.

Em uma lógica diferente, provavelmente mais difícil de conectar com processos como a privatização e com as características do capitalismo tardio, no artigo intitulado “Interdisciplinariedade como desafio para educar na contemporaneidade”, as professoras Infante Malachias e Araya Crisóstomo destacam aspectos menos desenvolvidos pela pesquisa educacional, no contexto da qual, porém, também podemos detectar outra das variantes das transformações produzidas pelo capitalismo tardio na educação, particularmente no caso estudado no artigo, em relação à formação inicial de professores.

Neste trabalho, defende-se a necessidade de uma abordagem interdisciplinar para a formação de professores, basicamente por dois motivos: primeiro, porque foi detectado que os graves problemas produzidos pelo desenvolvimento do capitalismo tardio afastam os estudantes dos cursos de licenciatura e, portanto, geram menos possibilidades de troca ao longo do tempo; e, segundo, porque vem se processando uma importante mutação na forma como o conhecimento da realidade é apresentado no âmbito da formação de novos professores. Em ambos os sentidos, a questão da interdisciplinaridade aparece como uma solução possível, tanto no que diz respeito à fragmentação do conhecimento quanto no que se refere ao conhecimento da realidade em sua diversidade de perspectivas.

Este é, finalmente, o sentido em que a questão da interdisciplinaridade se evidencia como exigência ontológica e epistemológica, já que sua aplicação é vista como uma forma de recompor a crise à que conduz o capitalismo tardio em termos de conhecimento e realidade, os quais moldam a nossa capacidade de agência social e política.

O artigo referente à interdisciplinaridade abre uma seção do dossiê sobre questões curriculares. O texto intitulado “Negociação das políticas-práticas curriculares: o desenvolvimento profissional de professores(as) orientado para a decisão curricular”, de Maria Julia Carvalho de Melo, Lucinalva Andrade Ataide de Almeida e Carlinda Leite, situa o debate no município de Caruaru. De fato, a estrutura federativa brasileira permite um amplo leque de estudos que buscam investigar as diversas expressões possíveis adotadas pelas tendências educacionais em diferentes territórios. Este trabalho em particular mostra as possibilidades de agenciamento dos professores em outro âmbito da política educacional, ou seja, no campo curricular e na forma como este pode configurar a autonomia docente.

O ponto interessante do artigo, para além de seus múltiplos detalhes, diz respeito ao modo como as lutas pela configuração curricular refletem as possibilidades de agenciamento dos professores como profissionais da educação que poderiam dar testemunho da existência de respostas curriculares para a formação de alunos adequadamente contextualizadas de acordo com as realidades econômicas, sociais e culturais e que, apesar das tendências mundiais de padronização curricular, estão fortemente presentes nas políticas escolares.

A semelhança desse fenômeno no Brasil e no Chile é impressionante: com efeito, em ambos os países, a configuração curricular se transforma em um campo que, apesar de sua postergação no debate sobre políticas educacionais, dá lugar ao exercício de capacidades de desenvolvimento docente na medida em que permite aos professores exercer a sua autonomia, mediada pelo bom senso profissional, para adequar os conteúdos e objetivos do currículo às realidades locais.

Esse mesmo problema de abordagem fica evidente no caso do gerencialismo como forma de gerir a formação continuada de professores. O tema do artigo de Vanderlei José Valim Vieira Filho e Fábio Peres Gonçalves intitulado “Gerencialismo na formação continuada de professores no Brasil: uma análise de documentos propostos pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação” dá continuidade ao debate sobre duas tendências na política educacional chilena e brasileira, a saber: a da privatização, já aludida neste dossiê, e a da padronização curricular, referida no artigo apresentado nos três parágrafos anteriores. Neste trabalho, porém, a perspectiva adotada se centra num item central do gerencialismo: a avaliação, o monitoramento e o controle dos resultados educacionais.

O valor deste texto está em que, nele, os autores conseguem mostrar, a partir do caso do Conselho Nacional de Secretários da Educação (CONSED) e da formação continuada exigida pelo contexto de implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do Novo Ensino Médio (NEM), como se estruturam na prática os itens do gerencialismo na política educacional, os quais são abordados de diferentes perspectivas de análise. A prática mostra que o gerencialismo leva ao alinhamento com as políticas e a governança educacional estadunidenses, além de incorporar os já mencionados mecanismos de avaliação, monitoramento e controle de resultados. No caso particular da formação continuada, objeto de análise do texto, esses itens do gerencialismo se consubstanciam na invocação da eficiência, da aliança entre agentes públicos e atores privados e, também, de sistemas padronizados de avaliação.

Um conjunto de artigos referentes tanto ao Chile quanto ao Brasil dá conta da situação laboral dos docentes em relação às políticas de desenvolvimento profissional, piso salarial e valorização dos docentes. Estas têm sido questões centrais discutidas no continente no contexto das reformas operadas a partir dos processos políticos de reformas educacionais produzidas após o fim das ditaduras e que nunca deixaram de estar presentes nas mais recentes lutas políticas em meio às disputas entre tendências marcadas pelo neoliberalismo e as diversas formas adotadas pelo progressismo na América do Sul.

Pois bem, ainda que a divulgação das políticas de desenvolvimento profissional docente no Chile tenda a destacar os avanços produzidos pelos acordos políticos alcançados nesta matéria, ignora as múltiplas formas de disputa que os professores tiveram de enfrentar para manter presente na definição legal finalmente alcançada uma visão de desenvolvimento profissional que os represente. Esta é, de fato, uma disputa antiga, e seus elementos podem ser identificados, desde o início, nos processos que caracterizaram a chamada “transição para a democracia”.

No artigo intitulado “Concepções dos líderes sindicais sobre o papel dos professores na construção do Sistema de Desenvolvimento Profissional Docente no Chile”, de Victor Figueroa e Dalila Andrade de Oliveira, é apresentado, além do necessário registro da participação docente na definição da Lei de Formação Profissional Docente, uma vertente do debate sobre a própria noção de “formação profissional docente”. O quadro da discussão descreve a situação característica do sistema escolar chileno em relação à mercantilização. A contribuição deste artigo está relacionada com a proposta de uma forma alternativa de entender o desenvolvimento profissional docente, que não apenas se resiste a simplesmente concordar com o quadro normativo, mas identifica nele elementos distintivos da concepção normativa de profissionalismo que põem em causa o próprio quadro de referência do debate, esse quadro que anteriormente chamávamos de mercantil.

Esses elementos, segundo os autores, advêm da ação de um movimento docente que tentou salvaguardar a autonomia, a responsabilidade e o papel público dos professores contra as formas de alinhamento, mera transparência e privatização do papel dos educadores. Eles questionam a forma como a profissão docente é concebida na legislação vigente. As regras para a profissão tendem a se articular acriticamente com critérios neoliberais que ordenam a ação educativa em um horizonte distinto daquele configurado pelos elementos considerados chave pelo coletivo docente (neste caso, inclusive, deixando-se à margem o Colégio de Professores, a organização que, historicamente, tem representado os professores no Chile).

Em uma linha similar de debate, no texto “Por entre direitos afirmados e renegados: a luta docente pelo piso salarial profissional nacional de 20 horas em Campo Grande, MS”, são examinadas as modalidades adotadas para as demandas dos professores sobre salários e como tais modalidades podem - e devem - valorizar a profissão docente.

Este é um caso especialmente marcante porque mostra, em outros aspectos do desenvolvimento do sistema educacional, como os governos tendem a desvalorizar ou negar direitos aos professores em virtude de sua necessidade imperiosa de atender às formas globais adotadas pelas reformas educacionais. Tal negação do direito ao Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN) foi expressa em diversos momentos nos quais, mesmo com regulamentos que garantiam esse direito incluindo a inovação do pagamento de 20 horas semanais, este não foi efetivado.

No contexto brasileiro, tal situação permite analisar como ocorre a transição do Governo federal para o municipal e quais são as dificuldades que se apresentam para a implementação das diretrizes nacionais. No artigo, é destacado o caso de uma grande greve de professores na Rede Municipal de Ensino de Campo Grande em 2015.

Como já foi mencionado, no Brasil, país marcado por uma descentralização da responsabilidade da oferta educacional, são necessários muitos estudos locais para se compreender as nuances das políticas nacionais. No texto intitulado “Mudanças nos planos de carreira do magistério paulista e a desvalorização docente”, Andreza Barboza estuda os desafios da valorização em termos de remuneração no contexto do estado mais rico do país, São Paulo. Novamente, constata-se aqui a prática de se regulamentar um direito para, em seguida, negá-lo. Primeiro, chama a atenção a estratégia de abonos para o pagamento do PSPN nesta Rede de Ensino, o que, segundo a autora, levaria a um achatamento da carreira dado que os efeitos dos ganhos percentuais previstos na lei nacional não se aplicariam à remuneração do conjunto dos professores em exercício.

O ponto-chave do debate da autora, entretanto, é a atratividade ou a falta de atratividade da carreira, especialmente a partir de um novo ordenamento legal aprovado no estado de São Paulo em 2022. A substituição da forma de pagamento de vencimentos para o subsídio elimina do Plano de Carreira, especialmente as progressões que reconhecem o tempo de serviço prestado pelo professor. Esta é uma mudança que se articula ao discurso da ênfase nos resultados, do qual partimos - entre outros elementos - para construirmos o conceito de contramarchas do neoliberalismo tal como o propusemos neste dossiê.

Por fim, Renata Cecilia Estormovski e Rosimar Serena Siqueira Esquinsani escreveram o artigo intitulado “(Des)valorização docente na educação básica brasileira: a naturalização da precarização promovida pelas premiações de professores”. Neste artigo são apresentados outro contexto e outros fatores que acentuam os desafios da valorização do trabalho docente. As autoras estudam o caso de um sistema de recompensas para os professores que camufla a negação de direitos. Nesta prática, o Prêmio Educador Nota 10, na realidade, nada mais é do que uma estratégia que impõe uma determinada concepção de trabalho docente. A análise dessa concepção, na opinião das autoras, permite refutar os critérios implícitos nela.

De fato, o reconhecimento do sucesso que é dado aos professores depende da sua capacidade de empreender, competir e acumular méritos, pois, com estes elementos, entre tantos outros articulados com a precariedade do seu trabalho, pretende-se induzir-nos a pensar que o professor só conseguiria superar os obstáculos como resultado do seu esforço individual.

Terminamos a organização deste dossiê nos primeiros momentos de 2023, logo após a posse de Lula como presidente do Brasil, representando uma “esperança para o mundo”, expressão tomada de empréstimo ao presidente chileno Gabriel Boric. Podemos entender essa ideia de esperança como a tradução de uma perspectiva de políticas progressistas. Entretanto, novamente os elementos da realidade nos chamam à reflexão. Os embates que se seguiram dias depois no Brasil, com o ataque ao Congresso Nacional e aos poderes da república, com magnitude de terrorismo interno, alertam-nos para o fato de que o conservadorismo não arrefeceu: uma ultradireita se mantém disputando o poder e não tem melindres para fazê-lo à força.

Por outro lado, vários dos elementos do dossiê evidenciam que, para além da agenda mais radical da direita golpista, há uma agenda cotidiana, de certa maneira negociada, que mantém os elementos do neoliberalismo incorporados nas políticas públicas. É fundamental que os desenhos destes movimentos (certamente menos violentos, porém duradouros e complexos) sejam compreendidos, bem como os motivos que convencem os diversos atores sociais a aceitá-los. Compreender marchas e contramarchas neoliberais nas políticas parece ser um desafio constante para, então, poder se reinventar, também, as formas de resistências.

REFERÊNCIAS

  • BAUMAN, Zigmund. Liquid Modenity. Polity Press & Blacwell Publishers Ltd, 2000.
  • MARX, Karl. Manifiesto Comunista. Babel: Santiago de Chile, 1948.
  • VERGER, Antoni. A política educacional global: conceitos e marcos teóricos chave. Práxis Educativa, [S. l.], v. 14, n. 1, p. 9-33, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2023
  • Aceito
    09 Fev 2023
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