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Apresentação - Educação, saúde e assistência às infâncias: inflexões em torno do objeto de pesquisas

Presentación - Educación, salud y puericultura: inflexiones en torno al objeto de investigación

RESUMO

Este artigo tem como intuito apresentar algumas reflexões acerca do dossiê Educação, Saúde e assistência às infâncias: saberes, conhecimentos e práticas sociais. Em sua organização reúne artigos que tencionam debater iniciativas públicas e ou privadas produzidas por intelectuais e ou instituições no âmbito da institucionalização de conhecimentos científicos e de modelos de assistência relacionados com a saúde pública, as ações tutelares e a educação das infâncias. Com esse intento, congrega dez artigos decorrentes de pesquisas com variados repertórios documentais e referenciais teórico-metodológicos que expressam tendências e perspectivas de análises possíveis acerca da produção de conhecimentos no âmbito das ciências humanas. Deste modo, os artigos contribuem para reflexões que se ancoram em temáticas relacionadas à filantropia; às políticas públicas de saúde, de interdição e de educação; as problemáticas relativas à higiene escolar, aos processos de escolarização, as instituições de atendimento assistencial e de educação, bem como potencializam analises sobre o papel dos intelectuais e das instituições em diferentes espaços/tempos que tomam às infâncias como eixo mobilizadores de inflexões e de pesquisas.

Palavras-chave:
Assistência; Infâncias; Educação; Saúde; História da Educação

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo presentar algunas reflexiones sobre el dossier Educación, Salud y Puericultura: saberes, conocimientos y prácticas sociales. En su organización, reúne artículos que pretenden debatir iniciativas públicas y/o privadas producidas por intelectuales y/o instituciones en el ámbito de la institucionalización del conocimiento científico y modelos de asistencia relacionados con la salud pública, acciones de tutela y educación infantil. Con ese propósito, presentamos un conjunto de diez artículos resultantes de investigaciones con variados repertorios documentales y referentes teórico-metodológicos, que expresan tendencias y perspectivas de posibles análisis sobre la producción de conocimiento en el campo de las ciencias humanas. De esta forma, los artículos contribuyen a reflexiones que se anclan en temas relacionados con la filantropía; políticas de salud pública, interdicción y educación; cuestiones relacionadas con la higiene escolar, los procesos de escolarización, las instituciones de cuidado y educación, así como a enriquecer los análisis sobre el papel de los intelectuales y las instituciones en diferentes espacios/tiempos que toman a la infancia como eje movilizador de reflexiones e investigaciones.

Palabras clave:
Asistencia; Infancias; Educación; Salud; Historia de la Educación

ABSTRACT

The aim of this article is to present some reflections on dossier Education, Health and Childcare: knowledge, expertise and social practices. Its organization brings together articles that intend to debate public and/or private initiatives produced by intellectuals and/or institutions in the context of the institutionalization of scientific knowledge and care models related to public health, guardianship actions and the education of children. To this attempt, it is a collection of ten articles resulting from research with varied documentary repertoires and theoretical-methodological references that express possible trends and perspectives of analysis about the production of knowledge in the field of human sciences. In this way, the articles contribute to thoughts that are anchored on issues related to philanthropy; public health, interdiction and education policies; subjects related to school hygiene, schooling processes, welfare and education institutions, as well as enhancing analyses on the role of intellectuals and institutions in different spaces/times that take childhood as the mobilizing axis of reflections and research.

Keywords:
Assistance; Childhoods; Education; Health; History of Education

Introdução

Momento para sonhar e imaginar, a chegada da virada do século enchia os olhos daqueles “cidadãos novidadeiros”. Era hora de não só mapear o presente, como também de planejar o futuro. Se a chegada de um novo século sempre fez sonhar, talvez tenha sido o fim do século XIX o que melhor concretizou esse tipo de utopia. As exposições universais passavam a demonstrar didaticamente o progresso e a imaginar o amanhã; os mapeamentos e inventos olhavam para os impasses do presente, mas de esguelha miravam o século seguinte; a “sciencia” impunha-se como forma de redimir incertezas (COSTA; SCHWARCZ, 2000COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz 1890-1914: no tempo das certezas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p.10-11).

No alvorecer do século XX renovaram-se os debates científicos e políticos em torno do problema da organização da nação e de construção de um ideal de brasilidade destinado a consolidar o novo regime instaurado a partir da proclamação da República, em 1889. As dimensões continentais do Brasil, associadas aos problemas de ordem econômica e social imputavam desafios ao país que mirava alcançar a tão sonhada civilização. Nesta perspectiva, “educar a população, planejar a economia, livrar o país da ignorância, tratar as doenças tropicais, prevenir das doenças e epidemias, promover políticas eugênicas” e empreender ações de adequação das instituições, da política, do social e da população integrava-se as medidas enredadas por diferentes setores da sociedade envolvidos em propor projetos e ações objetivando superar as mazelas que assolavam o país (CAMARA, 2011CAMARA, Sônia. Infância pobre e instituições assistenciais no Brasil republicano. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes; ARAÚJO, Vania Carvalho (Org.). História da Educação e da assistência à infância no Brasil. Vitória: EDUFES, 2011. p. 17-56 Disponível em: http://iesc.pro.br/publicacoes_iesc/livro-historia-da-educacao-e-da-assistencia-a-infancia-no-brasil/. Acesso em: 25 set. 2022.
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).

Neste cenário, o panorama que se descortinou trouxe à cena a convicção, por parte desses setores da sociedade de que a ciência se constituía como a forma de “redimir incertezas” (COSTA; SCHWARCZ, 2000COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz 1890-1914: no tempo das certezas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.) e intervir no presente a fim de prever o futuro do país. Nesta direção, proteger a infância e atuar sobre as famílias pobres passou a constituir-se como algumas das medidas capazes de empreender a civilização e requerer o progresso e a modernização da nação.

Neste contexto, como defende Velloso (2010VELLOSO, Monica Pimenta. As distintas retóricas do moderno. In: OLIVEIRA, Claudia; VELLOSO, Monica Pimenta; LIMA, Vera. O moderno em revista. Representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p. 43-110.), o moderno assumiu sentido amplo, polissêmico e controverso. Por um lado, foi associado às “conquistas científico-tecnológicas e ao desenvolvimento do processo urbano-industrial” e; por outro, esteve vinculado às ideias e representações que se dedicavam em pensar o lugar do país “na ordem civilizatória mundial” (VELLOSO, 2010VELLOSO, Monica Pimenta. As distintas retóricas do moderno. In: OLIVEIRA, Claudia; VELLOSO, Monica Pimenta; LIMA, Vera. O moderno em revista. Representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p. 43-110., p. 49). Pensar o país a partir destas perspectivas significava esquadrinhar as diferentes realidades sociais a fim de incidir sobre elas, projetando no presente a possibilidade de futuro. Assim, ancorados na ciência e no intento de construir uma nova imagem do país, projetos foram arquitetados visando construir uma nova ordem social.

Até o início do século XX, as ações desenvolvidas por instituições públicas, privadas, público-privadas, de auxílio mútuo e por filantropos e filantropas de diferentes proveniências traduziam-se, em grande parte, na abertura e manutenção de hospitais, asilos, colônias correcionais, creches, ligas, institutos, postos médicos, maternidades, preventórios, dispensários, policlínicas e escolas direcionadas a promover e agenciar ações caritativas, assistenciais, protetivas, regeneradoras e de educação tendendo abrandar a situação de pobreza e de ignorância da população, em especial das crianças. Para Camara (2011CAMARA, Sônia. Infância pobre e instituições assistenciais no Brasil republicano. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes; ARAÚJO, Vania Carvalho (Org.). História da Educação e da assistência à infância no Brasil. Vitória: EDUFES, 2011. p. 17-56 Disponível em: http://iesc.pro.br/publicacoes_iesc/livro-historia-da-educacao-e-da-assistencia-a-infancia-no-brasil/. Acesso em: 25 set. 2022.
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), em diálogo com Scwartzman (2004), por diferentes caminhos, os adeptos da República que se colocavam como arautos de um novo tempo, construíram estratégias de edificação da nação, a partir da bandeira liberal, que objetivava “‘transformar’ e ‘incorporar’” os indivíduos. De tal modo,

O século nascente trouxe para os republicanos de diferentes vertentes a esperança em se consolidar o projeto de País associado a uma perspectiva de minimizar as desigualdades sociais e sanar os problemas associados à pobreza. A criança pobre foi vislumbrada como plataforma privilegiada de retórica e de ação, galvanizando propostas direcionadas a categorizá-la ao mesmo tempo em que se regulamentavam e fiscalizavam os seus fazeres e suas formas de vida cotidiana vistas como anti-higiênica, ‘desregrada’ e ‘condenável’.

[...] No correr desse processo, a preocupação com a infância colocou-se no cerne de diferentes discursos e práticas (CAMARA, 2011CAMARA, Sônia. Infância pobre e instituições assistenciais no Brasil republicano. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes; ARAÚJO, Vania Carvalho (Org.). História da Educação e da assistência à infância no Brasil. Vitória: EDUFES, 2011. p. 17-56 Disponível em: http://iesc.pro.br/publicacoes_iesc/livro-historia-da-educacao-e-da-assistencia-a-infancia-no-brasil/. Acesso em: 25 set. 2022.
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, p. 18-19 - grifos nossos).

No que concerne as medidas enfeixadas, por diferentes setores da sociedade, no atendimento às infâncias essas não foram concebidas de forma uniforme para todo o território brasileiro, no entanto é possível identificar experiências caritativas, filantrópicas e assistenciais em diferentes regiões do país. Deste modo, refletir acerca dos usos e das formas que as iniciativas de assistência e as políticas públicas foram tomando corpo no decurso dos séculos XIX e XX, requer compreendermos os sentidos atribuídos às infâncias e às famílias empobrecidas no bojo dos projetos de nação delineados e implementados pelos seus idealizadores.

Em acordo com a assertiva defendida por Abreu (2015), ponderamos que, se por um lado, “os usos sociais da assistência” foram concebidos para atender, em grande parte, aos “administradores do sistema”, ou ainda para estabelecer relações de poder que se realizavam no entrelaçamento entre os interesses públicos e privados é possível, por outro, ponderar que os sujeitos utentes destes serviços caritativos, filantrópicos e assistenciais promovidos em escala local, regional e nacional puderam usufruir dos seus benefícios (ABREU, 2015, p. 9).

Desta forma, objetivando refletir acerca da situação das infâncias e das iniciativas destinadas a sua assistência e educação este dossiê reúne dez artigos, escritos por dezenove pesquisadores que, a partir de perspectivas de análises e ângulos de observação diferentes elegeram problemáticas e temporalidades distintas a partir das quais empreenderam suas reflexões relacionadas à filantropia e a caridade; as políticas públicas de saúde, de interdição e de educação; a higiene e a higiene escolar; a educação sanitária; os processos de escolarização das infâncias; as transformações da ciência e seus impactos sociais, as instituições de atendimento assistencial e educativa e o papel assumido por filantropos.

Em sua variedade de temáticas, o dossiê agrega instituições representativas das regiões Sudeste, Sul, Norte, Centro-Oeste e Nordeste do país, contando com pesquisadores da Universidade de Brasília, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, das universidades do Estado e Federal da Bahia, da Universidade do Amazonas e da Universidade Federal do Amazonas, da Universidade Federal de Goiânia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade do Estado do Pará, da Universidade do Estado de Santa Catarina, do Instituto Federal do Paraná, da Secretaria Estadual de Educação do Distrito Federal e da Secretaria Municipal de Manaus/AM.

Com efeito, espera-se em acordo com o escopo editorial da Revista poder colaborar para a socialização e difusão de análises que se dedicam em pensar diferentes iniciativas direcionadas as infâncias no Brasil e nos Estados Unidos. Para além de apresentar os artigos reunidos no dossiê, o texto intenta desenvolver algumas ponderações acerca das imbricações entre as ações públicas e privadas de assistência no decurso do processo de consolidação de uma matriz assistencial que previa e conclamava como fundamental a atuação do Estado como elemento central na promoção de políticas públicas de atendimento e educação às infâncias. Com este intento, o texto em tela organiza-se em duas partes. Na primeira, busca evidenciar alguns aspectos a partir dos quais é possível pensar as iniciativas direcionadas às infâncias, com destaque para as medidas médico-higienista e jurídica. Na segunda, apresenta o itinerário de escrita dos artigos reunidos no dossiê.

Por uma perspectiva de assistência e proteção às infâncias: entrelaçando ações filantrópicas e assistenciais às infâncias

Um olhar para o passado revela que a questão da infância foi um fenômeno recorrente em contextos de rápida industrialização e desenvolvimento urbano acelerado. Na França e na Inglaterra do século XIX as crianças faziam parte da reflexão sobre as condições de vida das camadas populares no contexto do capitalismo emergente. Tanto se falava das crianças exploradas pelo trabalho industrial como de crianças abandonadas, vadias, mendigas, que integravam o universo cruel da grande cidade e que foram retratadas com grande realismo por escritores [...] (ALVIM; VALLADARES, 1988ALVIM, Rosilene Barbosa; VALLADARES, Lícia do Prado. Infâncias e sociedade no Brasil: uma análise da literatura. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais. n. 26, p. 3-37, 1988. Disponível em: https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/90. Acesso em: 24 ago. 2022.
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, p. 3).

Como demonstram Alvim e Valladares, em texto publicado em 1988ALVIM, Rosilene Barbosa; VALLADARES, Lícia do Prado. Infâncias e sociedade no Brasil: uma análise da literatura. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais. n. 26, p. 3-37, 1988. Disponível em: https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/90. Acesso em: 24 ago. 2022.
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, a problemática em torno das infâncias e, em particular, das crianças empobrecidas assumiu destaque em diferentes países no decurso do século XIX. No Brasil, especialmente, a partir das últimas décadas dos oitocentos, com as transformações sociais em curso, advindas, particularmente, com a abolição da escravidão (1888) e a proclamação da República (1889), requereu-se medidas envolvendo a criação de uma força de trabalho livre e a criação de mecanismos capazes de instituir discursos e práticas de integração da população a nova ordem em desenvolvimento. Neste processo, a questão da infância assumiu centralidade entre as questões sociais a serem enfrentadas pelo país (ALVIM; VALLADARES, 1988ALVIM, Rosilene Barbosa; VALLADARES, Lícia do Prado. Infâncias e sociedade no Brasil: uma análise da literatura. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais. n. 26, p. 3-37, 1988. Disponível em: https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/90. Acesso em: 24 ago. 2022.
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, p. 4).

No contexto internacional, inúmeros congressos e associações foram organizados como arenas de discussões acerca da situação das infâncias, com particular atenção para a regulamentação do trabalho, a escolarização obrigatória, as medidas tutelares e a elaboração de instituições e leis específicas para o seu atendimento, a exemplo do Congresso Criminal de Paris, de 1889.

No congresso de 1889, segundo análise de Camara (2010CAMARA, Sônia. Sob a Guarda da República: a infância menorizada no Rio de Janeiro na década de 1920. Rio de Janeiro: Quartet, 2010., p. 213), as teorias do tipo antropológico criminal e do criminoso nato incorrigível, defendidas pelo psiquiatra italiano Cesare Lombroso (1835-1909) foram contestadas e combatidas. Baseados em uma Nova Escola Criminal, seus adeptos defendiam explicações ancoradas “na primazia e no reconhecimento dos fatores sociais sobre os biológicos”. A partir de então a Sociologia Criminal, com expoentes como o filósofo e sociólogo francês Gabriel Tarde (1843-1904) defendiam uma nova perspectiva a partir da qual deveria se compreender o crime e o criminoso. A miséria, o ambiente moral e material, bem como as condições de vida constituíam-se em elementos que exerciam influência sobre a vida das pessoas e, como tal, deveriam ser plausíveis de intervenção do Estado e de iniciativas da sociedade civil.

Os efeitos desses debates tiveram ampla repercussão no Brasil contribuindo para inflexões por parte de médicos, juristas e filantropos que se posicionaram entoando bandeiras e construindo ações assentadas no desejo de compreender e intervir sobre a situação da infância no país. Como assegura Camara (2010CAMARA, Sônia. Sob a Guarda da República: a infância menorizada no Rio de Janeiro na década de 1920. Rio de Janeiro: Quartet, 2010.), no fluxo desse movimento, as crianças foram idealizadas como “gênese da sociedade”, objeto de estudo e de regulação. Objetivando ampliar o papel do Estado na condução e direção de políticas destinadas a atender aos interesses da nação, setores da sociedade direcionaram esforços no sentido de reorganizar a sociedade, estabelecendo, para isto, estratégias de controle e transformação social. Para isto, instituições asilares para menores em diferentes regiões do país foram concebidas, mobilizando debates e ações por parte do Estado, da Igreja, de filantropos, de juristas e de médicos. De tal modo, consideravam ser

[...] mister que fomente a criação das obras úteis de caridade científica, que se estabeleça a legislação apropriada, longe do costumado caráter platônico, tornando-se uma realidade prática, operando, enfim, um movimento promissor, pela disseminação, em todo o país, dos sãos princípios que conduzirão o nosso povo, numa salutar atmosfera de bondade e de carinho, à felicidade e ao vigor físico e moral.

[...] Tempo já é de organizarmos de uma maneira definitiva e eficiente a Assistência Pública e os governos, ante as nossas prementes necessidades nesse sentido, os grandes progressos das nações do velho e do Novo Continente e o momento social que atravessamos, têm a imperiosa obrigação de olhar carinhosamente para a resolução do palpitante problema, procurando, como se exige hodiernamente, amparar a criança, o velho, o pobre, o doente, o indigente, o desvalido (MONCORVO FILHO, 1923MONCORVO FILHO, Arthur. Discurso do Presidente do Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância. In: Boletim do Primeiro Congresso de Proteção à Infância. 6º Boletim. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923., p. 128-129).

Deste modo, com base em modelos médico-higiênicos, os especialistas e militantes, a exemplo de Moncorvo Filho, visaram atuar sobre as possíveis ameaças causadas por uma população insubmissa e perigosa transformando o que era considerado heterogêneo e destoante ao projeto de modernização do país, em uma composição homogênea e unificada. Em uma ação combinada, mediante parâmetros técnicos, científicos e racionais, medidas foram propostas visando propagar e instituir a higiene infantil, a puericultura, a pediatria e a higiene escolar como parâmetros de regulação e ordenamento da vida social, do ambiente e das habitações.

Durante as primeiras décadas do século XX, principalmente entre o fim da Primeira Guerra Mundial e a eclosão da Segunda Guerra a questão da proteção e da assistência médico-social à infância se manifestou como uma ação coletiva internacional que envolvia médicos, juristas, pedagogos e instituições beneficentes e filantrópicas de diversos países (BIRN, 2006BIRN, Anne-Emanuelle. O nexo nacional-internacional na saúde pública: o Uruguai e a circulação das políticas e ideologias de saúde infantil, 1890-1940. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 13, n. 3, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-59702006000300007. Acesso em: 25 set. 2022.
https://doi.org/10.1590/S0104-5970200600...
; SCARZANELLA, 2014SCARZANELLA, Eugenia. Los pibes en el Palacio de Ginebra: Las investigaciones de la Sociedad de las Naciones sobre la infancia latinoamericana (1925-1939). Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe, v. 14, n. 2, 2014. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4003703. Acesso em: 18 set. 2022.
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)1 1 Sobre o movimento internacional de proteção à infância conferir os trabalhos de Scarzanella (2014) e Birn (2006). . Nesta conjuntura, movimentos de interdependência, para além das fronteiras nacionais, foram concebidos visando sensibilizar a sociedade civil e os governos para que agissem em favor da infância.

Acordos internacionais, legislações e aparatos institucionais foram elaborados em diferentes países no sentido de resguardar as especificidades e atender as necessidades sociais, jurídicas e sanitárias das crianças, especialmente daquelas submetidas ao abandono e a pobreza. Para isso, representantes oficiais e militantes ativos da sociedade civil de nações europeias, dos Estados Unidos e de países latino-americanos, como Uruguai, Argentina, Brasil, México e Chile organizaram comitês, associações e institutos internacionais que se dedicaram na promoção de estudos, na organização de congressos e de publicações que versavam sobre diferentes aspectos do chamado “problema da infância”.

A agenda das instituições internacionais de proteção à infância era extensa e elaborada conforme os contextos socioculturais distintos. Apesar disso, de modo geral, as questões relacionadas aos direitos sociais, a educação e a mortalidade infantil assumiram predomínio. Na perspectiva da época, o “problema da infância” poderia ser resumido em dois pontos cruciais: o abandono e a mortalidade. Nesta linha de preocupação, os especialistas e os militantes da causa da infância consideravam esses dois pontos como consequências indesejáveis da pobreza e dos hábitos desregrados e anti-higiênico das classes pobres. Realce foi dirigido aos elementos que contribuíam para a degenerescência da raça e para a mortalidade infantil, tais como: o alcoolismo, as doenças sexualmente transmissíveis, a tuberculose. Quanto a estes aspectos, em conferência realizada no ano de 1916, o médico pediatra e idealizado do Instituto de Proteção e Assistência à Infância (IPAI), Moncorvo Filho defendia que o problema da mortalidade infantil se acirrava, ainda mais, entre as crianças de 0 a 7 anos de idade, acometidas por doenças como a varíola, a tuberculose e o alcoolismo. Assim, com base nas elevadas taxas de mortalidade infantil, principalmente em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, procurou, por um lado, demonstrar que os números davam mostras da ignorância higiênica que predominava entre os pais, indiciando, por outro lado, a falta de assistência médica e o abandono em que se encontrava a assistência pública no país (MONCORVO FILHO, 1923MONCORVO FILHO, Arthur. Discurso do Presidente do Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância. In: Boletim do Primeiro Congresso de Proteção à Infância. 6º Boletim. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923., p. 123-124).

As reflexões produzidas pelo médico Moncorvo Filho encontraram eco junto a seus pares e mais especialistas e militantes de outros campos de saber. De tal modo, consideravam que a proteção à infância dependia de estratégias se intervenção médicas e jurídicas sobre as condutas e condições de vida das populações pobres e trabalhadoras, particularmente, em países como o Brasil em que, segundo ajuizavam, “as influências mesológicas, climatéricas e sociais, variam com as grandes distancias, que separam, por exemplo, os sertões do litoral; e diversos também devem ser os resultados que tais influências possam produzir no desenvolvimento físico dos indivíduos” (BARRETO, 2003BARRETO, Tobias. Menores e loucos em Direito Penal. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003., p. 15).

Assim, médicos e juristas envolvidos com à causa da infância ao ponderarem sobre a proteção e a assistência, consideravam que para salvar as crianças seria necessário uma atuação coordenada envolvendo várias frentes, a saber: controlar as altas taxas de ilegitimidade e de natalidade; modificar os hábitos alimentares e o estado nutricional; melhorar as condições de moradia, evitando a propagação de doenças contagiosas; regulamentar o trabalho infantil e das mulheres em fase de amamentação; organizar sistemas escolares; criar serviços de assistência materno-infantil; reprimir a delinquência infanto-juvenil, estimulando a pedagogia do trabalho e educação das mulheres para o exercício da maternidade e de manutenção do lar.

Sanglard e Ferreira (2010SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio. Médicos e filantropos: a institucionalização do ensino da pediatria e da assistência à infância no Rio de janeiro da Primeira República. Varia História, Belo Horizonte, v. 26, n. 44, p. 437-459, 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-87752010000200006. Acesso em: 15 set. 2022.
https://doi.org/10.1590/S0104-8775201000...
, p. 458) identificam a existência de uma “relação umbilical entre a institucionalização da pediatria e a criação de instituições assistenciais à infância”, onde os médicos assumiram protagonismo no movimento histórico em que se ressignificou o papel da filantropia e da benevolência no atendimento, proteção e auxílio da infância. A assistência que foi gradativamente sendo implementada, especialmente a partir das primeiras décadas da República, pretendia assumir um caráter científico baseado nos conhecimentos advindos com a Puericultura e a Pediatria. Deste modo:

[...] as ações científicas foram motivadas, em última instância, pela ideia de que a ausência de políticas públicas que visavam corrigir os ‘maus hábitos’ típicos da cultura das famílias (sobretudo das famílias do vasto setor das classes trabalhadoras urbanas) e as práticas pré-científicas vigentes nas instituições escolares, hospitalares, asilares e correcionais condenavam a infância brasileiras à doença. E, no tempo, que o liberalismo ainda dominava as práticas assistenciais, o concurso da filantropia tornou-se fundamental para que as ideias defendidas por esses médicos fossem postas em prática (SANGLARD; FERREIRA, 2010SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio. Médicos e filantropos: a institucionalização do ensino da pediatria e da assistência à infância no Rio de janeiro da Primeira República. Varia História, Belo Horizonte, v. 26, n. 44, p. 437-459, 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-87752010000200006. Acesso em: 15 set. 2022.
https://doi.org/10.1590/S0104-8775201000...
, p. 458).

Na direção de instituir uma cruzada salvadora da infância, os médicos higienistas insistiram quanto ao papel relevância da mulher. Como assegura Freire (2008FREIRE, Maria Martha de L. “Ser mãe é uma ciência”: mulheres, médicos e a construção da maternidade científica na década de 1920. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 15, supl., p. 153-171, 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-59702008000500008. Acesso em: 15 set. 2022.
https://doi.org/10.1590/S0104-5970200800...
, p. 154), ainda que vinculado à natureza feminina, a maternidade “[...]ultrapassava os limites da esfera doméstica e adquiria um novo caráter, de missão patriótica e função pública. Tratava-se não mais de garantir filhos ao marido, mas sim cidadãos à Pátria”. Nesta direção, cursos populares e campanhas destinados a instruir e educar as mães foram concebidos visando romper com o atraso e instituir os pressupostos da ciência. A filantropia e a assistência científicas foram requeridas com o intento de coligar esforços em prol da promoção da “boa prole”, saudável e robusta. Deste modo, foi no entrecruzamento entre as iniciativas educativas, higiênicas, eugênicas e jurídicas que as relações foram cerzidas entre os setores intelectuais, da sociedade e do Estado; da medicina, da educação e do Direito; da escola e da família; do público e do privado.

Parece-nos cabível afiançar sobre o poder de alcance das iniciativas assistenciais e filantrópicas empreendidas sobre as famílias, a exemplo, das prescrições médicas quanto aos cuidados com as crianças, ou ainda das medidas reguladoras determinadas pelo jurídico ao instituir a tutela do Estado sobre o viver das pessoas. Nesta direção, os projetos e as ações instituídas às infâncias necessitam serem pensadas em um movimento de análise relacional (BOURDIEU, 2012BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012., p. 33) acerca dos diferentes campos de saber, como da Assistência, da Medicina, da Educação e do Direito. De tal forma, os projetos elaborados e praticados constituem-se, em nossa compreensão, em indícios a partir dos quais é crível mapear e compreender às concepções que tomaram forma e materialidade no que tange às infâncias no país, bem como da possibilidade de a partir destas iniciativas buscarmos os fios e os rastros (GINZBURG, 2007GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.) que permitem tramar a história a partir de outras escutas, de outras vozes.

Por um itinerário de leitura: as pesquisas em foco

Embora os homens cultivados de uma determinada época possam discordar a respeito das questões. É sobretudo através das problemáticas obrigatórias nas quais e pelas quais um pensador reflete que ele passa a pertencer à sua época podendo-se situá-lo e datá-lo. Assim como os linguistas recorrem ao critério da intercompreensão a fim de determinar as áreas e gerações intelectuais e culturais através de um levantamento dos conjuntos de ‘questões obrigatórias’ que definem o campo cultural de uma época (BOURDIEU, 1987BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987., p. 207).

Em sua organização, o dossiê reúne uma dezena de artigos que trazem contribuições originais para o campo de estudos sociais e históricos sobre políticas sociais públicas e privadas de assistência às infâncias. Como itinerário de leitura, sugerimos aos leitores à luz da perspectiva de Bourdieu (1987BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987., p. 207), que considerem o que o autor chama de as “questões obrigatórias”, ou seja, o conjunto de conceitos, categorias e repertórios de análise que dão inteligibilidade as discussões em curso no campo intelectual de uma época. Considerar as problemáticas a partir das quais as questões relacionadas às infâncias foram urdidas, significadas permite compreender a historicidade dos fenômenos nomeados, descritos e problematizados, mas também expressam um leque de preocupação que tem mobilizado os pesquisadores em torno das questões relacionadas às infâncias.

Nesta perspectiva, consideramos que os artigos reunidos expõem o posicionamento dos autores e autoras a respeito de características das políticas sociais brasileiras, especialmente, a tendência de formação de consórcios ou de alianças entre os agentes públicos e os agentes privados. Concebidas como políticas sociais de caráter público-privado, a assistência às infâncias é apresenta como um trabalho social envolveu diferentes grupos e tipos sociais que se articulavam em função de valores relacionados à caridade religiosa ou a filantropia laica ou científica.

Partindo desta premissa, o dossiê conduz a dois eixos de análises. O primeiro, coliga os artigos que abordam as temáticas associadas aos processos de institucionalização das infâncias que combinavam ações de proteção e de repressão aos menores. O segundo, reúne os artigos que se dedicam a pensar iniciativas no âmbito da assistência propriamente dita que visavam, prioritariamente, medicar e educar as infâncias.

O artigo O pioneiro da educação de cegos e surdocegos nos Estados Unidos: Samuel Gridley Howe (1801-1876), de Tatiana de Andrade Fulas, abre o dossiê tratando da atuação do médico e filantropo Samuel Gridley Howe, um típico intelectual liberal-reformador social da primeira metade do século XIX que confiava na educação como solução dos problemas relacionados à chamada “questão social”. Samuel Howe foi responsável pelo surgimento do primeiro instituto dedicado a escolarização de cegos e surdos nos Estado Unidos da América do Norte da primeira metade do século XIX. Em diálogo com o modelo de análise dos intelectuais proposto por Jean-François Sirinelli, a autora examina o trabalho social de Howe, debatendo a repercussão de suas ideias e práticas no cenário do movimento filantrópico europeu de criação de institutos, das inovações pedagógicas e tecnologias que viabilizaram a escolarização de crianças e jovens cegos ou surdocegos.

Em seguida, no artigo As instituições e as leis para a infância no Brasil Império: circulação de ideias sobre o menorismo, Maria Nilvane Fernandes e Elizabeth Trejos-Castillo contestam a interpretação vigente na historiografia sobre a utilização do conceito de menor no campo jurídico-assistencial brasileiro, comumente relacionada a promulgação do Código de Menores de 1927. As autoras revisitam as legislações, normativas, decretos e regulamentos pertinentes à educação, repressão e tutela da infância produzidos durante o regime imperial brasileiro. Verificam que o uso do conceito já era frequente em meados do século XIX, apresentando evidências da existência de uma cultura menorista referente a infância empobrecida. Mesmo não se tratando de uma análise genealógica do discurso menorista, o artigo registra os movimentos de “ressignificação dos conceitos criança e infância” que redundaram na formação de uma cultura oficial que definiu as infâncias empobrecidas com um problema social preocupante para as elites dirigentes e intelectuais imperiais e republicanas.

A questão do menorismo também é tratada no artigo Imigração, criminalidade e instituição correcional: o caso de menores portugueses na Amazônia paraense (1880-1925). O autor, Telmo Renato da Silva Araújo, analisa o cometimento de crimes e a detenção correcional de menores imigrantes portugueses atraídos para a cidade de Belém, capital do Estado do Pará, durante o período de expansão da economia da borracha na região amazônica. Em sua compreensão, ainda que o conceito de menor já estivesse em uso no campo jurídico-assistencial, não havia legislação penal específica para casos de criminosos estrangeiros menores. Apesar disso, menores de várias nacionalidades, sobretudo, portuguesa foram enquadrados em várias tipificações criminais e encaminhados para a Colônia Correcional Santo Antônio do Prata (CCSAP). Destaca-se, no artigo, além da elaboração do perfil social de menores estrangeiros citados na documentação da vara criminal, o acompanhamento da trajetória sinuosa de internações, fugas e reincidências de menores imigrantes portugueses internados na Colônia Correcional mesmo depois de alcançarem a maioridade legal.

O artigo Diretrizes para a educação escolar de uma instituição para menores considerados antissociais (Santa Catarina/Brasil - 1972-1982), de Silvia Maria Fávero Arend e Otoniel Rodrigues Silva, objetiva abordar as concepções e práticas correcionais de menores, com destaque para as iniciativas no âmbito da educação escolar. Para isto, a análise incide sobre as diretrizes que orientaram a criação e o funcionamento do Centro Educacional para Menores, instituição de correção para menores considerados propensos ou efetivamente praticantes de condutas antissociais. O estudo acompanha a adoção, pelo Estado de Santa Catarina, das diretrizes da “política nacional do bem-estar do menor” formulada durante a vigência do regime civil-militar brasileiro iniciado em 1964. Especificamente, destaca-se a adoção do padrão de assistência da Fundação do Bem-Estar do Menor (FUNABEM). A adoção do modelo FUNABEM rompe com a tradicional aliança entre o Estado e a Igreja Católica que, geralmente, se incumbia da gestão pedagógica e administrativa de instituições de assistência aos menores. O Centro Educacional para Menores, uma “instituição de caráter parapenal”, promovia a internação de menores que apresentavam, o que os idealizadores do projeto consideram ser um “grave desvio de conduta”.

O artigo de autoria de Ricardo Santos Batista, intitulado Higiene Escolar e Saúde Pública em Salvador (1925-1930), visa refletir acerca das concepções e práticas higienistas que fundamentaram a implantação da política pública de assistência a infância no Estado da Bahia. Em decorrência da crise sanitária causada pela pandemia de gripe espanhola, em 1918, ocorreu a reforma na área da saúde pública federal com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). O regulamento sanitário proposto pelo novo órgão federal preconizava a intervenção efetiva dos poderes públicos nos assuntos relacionados à saúde pública. O Estado da Bahia foi um dos primeiros a aderir a nova legislação sanitária instituindo a Secretaria de Saúde e Assistência Pública (SSAP), órgão responsável pela saúde pública estadual. Em obediência ao modelo proposto pelo DNSP, foi criada, no âmbito da SSAP, a Diretoria de Higiene Infantil e Escolar (DHIE) comandada pelo médico pediatra e filantropo Joaquim Martagão Gesteira, catedrático de pediatria da Faculdade de Medicina da Bahia e líder da Liga Baiana Contra a Mortalidade Infantil (LBCMI), uma entidade filantrópica criada em 1923. Na Bahia, a execução das políticas sociais de assistência às infâncias foi compartilhada entre a DHIE e a LBCMI, um formato institucional que se tornou o modelo seguido pelas políticas posteriores, de assistência à infância.

A gestão “privada” da assistência a infância é objeto da análise desenvolvida no artigo Saúde, assistência e educação: a institucionalização da infância carente em Goiás no Século XX de Rildo Bento de Souza, Lara Alexandra Tavares da Costa e Kalyna Ynanhiá Silva de Faria. O artigo trata de três instituições dedicadas à prestação da assistência à infância pobre: o Asilo São Vicente de Paulo (1909), que se dedicava aos cuidados de saúde; o Orfanato São José (1922), que se proponha a educar meninas órfãs e o Preventório Afrânio de Azevedo (1943), uma instituição de isolamento compulsório de crianças de pais contaminados pela hanseníase (lepra). O artigo se filia à tradição de estudos sobre a infância que abordam a prestação da assistência em um contexto em que conviviam ideias e práticas advindas da caridade católica, da filantropia leiga e do higienismo médico. Chama atenção, a ausência de referências aos poderes públicos, sugerindo a inexistência de políticas sociais para a infância emanadas dos governos estaduais e municipais goianos por um longo período de tempo.

O artigo Infância isolada: política pública para a profilaxia da lepra no Maranhão (1930-1950), de Rosyane de Moraes Martins Dutra e Celia Maria Benedicto Giglio trata de um caso de implantação local da política nacional de combate a hanseníase. Desde a criação da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas (1923), órgão vinculado ao Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), a prevenção da hanseníase baseava-se no modelo de isolamento social do doente e propunha a criação de três tipos de instituições: os dispensários, que faziam o diagnóstico e a triagem dos doentes; os leprosários, que promoviam o isolamento compulsório dos doentes e os preventórios que serviam para a segregação social das crianças filhos e filhas dos acometidos pela hanseníase. Entre 1930 e 1954, a política de isolamento foi mantida e ampliada com a formulação do Plano Nacional de Combate à Lepra que previa a montagem de uma rede nacional de leprosários, dispensários e preventórios. No Maranhão, foram criados o Dispensário Frei Querubim, Leprosário da Ponta do Bonfim e o preventório Educandário Santo Antônio. A prevenção da hanseníase também foi uma política pública de assistência médico-social de gestão “privada” conduzida por uma entidade filantropia feminina de âmbito nacional, a Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra (FSALDL), que representava os interesses de todas as Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra presentes nos estados brasileiros.

O artigo Os reflexos de uma política de acesso à educação infantil destinada a bebês e crianças desnutridas, de Mariana Pereira de Castro e Souza e Bruno Tovar Falciano trata dos limites da concepção de política pública de assistência à infância. O caso estudado é o programa Creches e Centros de Atendimento à Infância Caxiense (CCAIC) promovido pelas secretarias municipais de educação, de saúde e de assistência social do Município de Duque de Caxias (RJ). O programa em questão adotou uma “abordagem médico-assistencialista” que concebeu o atendimento médico-escolar da primeira infância como uma estratégia de mitigação da pobreza familiar. Desse modo, o artigo trata da persistência de “longa duração” de discursos e de práticas que remetem e reiteram o sentido historicamente atribuído à assistência e à educação da primeira infância como estratégia de arrefecimento da pobreza familiar.

A crítica ao modelo “médico-assistencialista” também é feita no artigo As creches Casulo no Amazonas, 1979-1990, de Kelly Rocha de Matos Vasconcelos, Moysés Kuhlmann Júnior e Pérsida da Silva Ribeiro Miki, aborda a política pública de assistência a infância pré-escolar adotada pelo regime civil-militar brasileiro (1964-1989). Além de preparar a criança para a escolaridade obrigatória, o Projeto Casulo teria como objetivo “massificar” nacionalmente a ofertas de creches de fácil implantação e que dependessem de pouco investimento de recursos públicos, as chamadas creches de “baixos custos”. Para isso, adotariam o “modelo pré-escolar de massa” que se baseava no envolvimento direto da “comunidade” local, ou seja, entidades filantrópicas, beneficentes e religiosas. Inspirado nos argumentos de Moysés Kuhlmann Júnior e de Fúlvia Rosemberg, o artigo segue um caminho interpretativo que enfatiza os propósitos político-ideológicos e os limites do modelo de educação pré-escolar adotado pelo Projeto Casulo.

Por fim, o artigo Panorama das políticas públicas para o atendimento pedagógico domiciliar no Brasil, de Helma Salla e Geraldo Eustáquio Moreira examina as formulações legislativas e normativas estaduais que fundamentam as políticas púbicas atuais de Atendimento Pedagógico Domiciliar (APD). Adotando uma “abordagem de pesquisa qualitativa e exploratória”, os autores analisam o conteúdo textual das legislações e normas educacionais adotadas pelos estados brasileiros disponíveis em sites oficiais. APD é tipo específico de assistência de caráter transitório que visa garantir a continuidade do processo de escolarização em situações em que as condições de saúde impedem a frequência regular ao ambiente escolar. A discussão desenvolvida no artigo é sobre a “quase inexistência” de oferta da modalidade de ensino APD o que demostraria uma das fragilidades da atual política pública educacional.

Considerações finais

Podemos concluir dizendo que os artigos reunidos no dossiê Educação, Saúde e assistência às infâncias: saberes, conhecimentos e práticas sociais estão localizados na zona de diálogo entre as contribuições oriundas da História da Educação, História da Assistência e História da Infância. Outro aspecto que consideramos importante destacar é a possibilidade de que essas análises possam ensejar movimentos problematizadores capazes de ampliar o foco de visão acerca das infâncias consideradas como problemas social e jurídico, bem como do intento em compreender as dimensões assumidas pela atuação de homens e mulheres envolvidos na promoção de ações assistenciais e do papel social das instituições.

Nesse sentido, destacamos que embora muitos estudos e pesquisas venham sendo produzidos, desde as últimas décadas do século XX, nas ciências humanas ainda se identifica a necessidade de ampliarmos investimentos de análise quanto à produção de abordagens que tragam à cena os atores sociais ativos, os próprios usuários ou sujeitados às políticas sociais para as infâncias, ou seja, as crianças e jovens com suas especificidades e diversidades socioculturais. Fica o convite à leitura e as reflexões que este dossiê possa ensejar.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Sobre o movimento internacional de proteção à infância conferir os trabalhos de Scarzanella (2014) e Birn (2006).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2023
  • Aceito
    30 Ago 2023
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