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Miocárdio hibernado - uma realidade?

Editorial

Miocárdio hibernado — uma realidade?

O termo "hibernado" é designativo de miócitos que residem em regiões do músculo cardíaco que recebem fluxo de sangue suficiente para as funções que necessitam baixa energia (como as necessárias para a manutenção da integridade estrutural), mas inadequado para sustentar as altas necessidades energéticas da contração1.

Ao longo dos últimos anos, identificou-se a existência dessas regiões e também a possibilidade de sua recuperação clínica2, o que se reveste de particular importância para os pacientes coronarianos, que cursam com um comprometimento grave da função ventricular esquerda.

De fato, um número substancial de estudos tem observado melhora da sobrevida com a revascularização miocárdica, quando comparada ao tratamento clínico, em pacientes com doença coronária e baixa fração de ejeção, primariamente devida ao músculo viável, mas hibernado3-6. Por outro lado, pacientes com má função ventricular esquerda e doença multiarterial, que não demonstraram viabilidade miocárdica, em exames pré-operatórios, apresentaram índices elevados de morbi-mortalidade, após a cirurgia, quando comparados àqueles que exibiam viabilidade preservada3,7.

Não só a presença de músculo viável e reversível tem impacto prognóstico, mas também sua extensão. Tem sido verificado que a magnitude da melhora dos sintomas da insuficiência cardíaca, após a revascularização miocárdica, está intimamente relacionada às dimensões da viabilidade miocárdica demonstradas pré-procedimento terapêutico5. E mais ainda, tem-se observado que pacientes candidatos a transplante cardíaco, que evidenciaram viabilidade miocárdica pré-operatória, têm tido bom prognóstico quando submetidos à cirurgia de revascularização, ao invés do transplante originalmente proposto8.

Esses fatos indicam não só que o problema é real, como também que sua correção tem impacto clínico comprovado. Ou seja, a avaliação não-invasiva da viabilidade do músculo cardíaco pré-revascularização fornece informações prognósticas de grande utilidade, que podem orientar o clínico no sentido de uma melhor seleção de pacientes portadores de cardiomiopatia isquêmica, que terão benefícios advindos da revascularização miocárdica. E esses benefícios, conforme tem-se verificado, são substancialmente maiores que os proporcionados pelo tratamento clínico ou, em outro extremo, pelo transplante cardíaco.

Alguns aspectos, contudo, dentro deste tema, não são realidade presente. O primeiro diz respeito aos limites bem definidos, entre miocárdio hibernado e atordoado. Esses termos representam processos fisiopatológicos diferentes, com definições distintas, entretanto, sob o ângulo clínico, os limites entre essas duas situações nem sempre são claros. É provável que ambos, tanto a hibernação quanto o atordoamento repetitivo, ocorram clinicamente e contribuam para a disfunção isquêmica do ventrículo esquerdo9. Além do mais, ambos os processos podem ser observados num mesmo paciente e coexistir numa mesma região miocárdica, causando a disfunção crônica desse ventrículo.

Não é realidade, ainda, que tenhamos definido o mérito relativo de cada um dos métodos designados, hoje, para predizer a recuperação funcional. Várias técnicas não-invasivas têm sido empregadas, nos últimos anos, para identificar marcadores de viabilidade miocárdica, em regiões com disfunção contrátil. Algumas avaliando a atividade metabólica; outras, a perfusão miocárdica e a integridade de membrana, e outras, ainda, a reserva contrátil10-13. O valor relativo de cada um desses métodos, no entanto, deverá vir de estudos comparando os três tipos de avaliação, em grandes séries de pacientes, submetidos à revascularização miocárdica. Enquanto não os tivermos, persiste a incerteza quanto aos valores preditivos dessas técnicas em antecipar a recuperação funcional miocárdica.

Tampouco é realidade o delineamento da relevância clínica. É preciso definir, em estudos mais amplos, se grupos específicos de pacientes coronarianos beneficiar-se-ão ou não (e o quanto) de uma ou de outra modalidade de teste, em particular. Isto porque as evidências ainda nos vêm de estudos relativamente pequenos, não randomizados e, muitas delas, de análises retrospectivas.

Por fim, não é realidade, até o momento, o aspecto de custo-efetividade. O método preciso e definitivo para determinar viabilidade miocárdica, e indicar ou não a revascularização, em uma particular circunstância clínica, precisa ser também custo-efetivo, para integrar o "mundo real". Além do mais, não podemos perder de perspectiva que a avaliação da viabilidade miocárdica é apenas um dos fatores que integram a tomada de decisão quanto a revascularizar ou não. Como para qualquer outro paciente portador de insuficiência coronária, a decisão deve ser baseada tendo, também, em consideração: a apresentação clínica, a anatomia coronária, o grau de disfunção ventricular esquerda e a presença de isquemia demonstrável.

O miocárdio hibernado é, portanto, uma realidade conceitual avalizada e de ocorrência clínica confirmada, que tem determinado grande quantidade de pesquisa básica e clínica, reavaliação da definição de isquemia, desenvolvimento de testes para seu diagnóstico e aperfeiçoamento de estratégias para decisão de melhor tratamento.

Mais do que isto, o miocárdio hibernado é uma realidade que demonstra, hoje, haver ainda um grande percurso a ser vencido, na definição da importância de sua própria identidade.

A.G.M.R. Sousa

Doutora em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Diretora do Serviço de Cardiologia Invasiva do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, São Paulo, SP.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2000
  • Data do Fascículo
    Jun 1997
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