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Ensino à beira do leito -- uma verdade inabalável

Editorial

Ensino à beira do leito ¾ uma verdade inabalável

Nos últimos anos, temos assistido a um enorme progresso da medicina com o advento de uma tecnologia que não apenas tornou o homem transparente mas que, também, exigiu uma revisão dos valores bioéticos, normatizando a pesquisa nos homens e animais.

As conseqüências desse progresso foram benéficas, não há dúvida, porém trouxeram alguns problemas que, associados à política de saúde de nosso país, comprometem o que há de mais importante na medicina, que é a relação médico-paciente e o respeito às condições socioculturais dos doentes. Realmente, essas condições não são detectadas pela tecnologia de ponta, mas sim pelo contato direto do médico com seu paciente, o qual pertence a uma família, a uma sociedade, e que sofre as suas influências.

Dentro desta linha de raciocínio, cumpre-nos chamar a atenção para o alto preço da medicina e os fatos a ele ligados. As escolas médicas, na sua maioria com corpo docente pouco qualificado, formam jovens sem condições de exercer a prática médica, necessitando recorrer às residências médicas, muitas delas inaptas à formação do residente ¾ seus programas são bons, mas falta qualificação aos que assessoram os recém-formados.

Nesse contexto, surge outro agravante — assistimos, infelizmente, ao interesse de alguns que se dizem conhecedores do ensino médico, em transferir o ensino à beira do leito para anfiteatros e laboratórios de simulação, situações em que não há relação médico-paciente e a característica humanística da medicina é esquecida ¾ enfim, privilegiam o caráter tecnicista da medicina e vislumbram no aluno a importância de um médico tecnocrata. O que muitos chamam de ensino à beira do leito não passa de ensino no corredor ou em porta de enfermaria. Poucos se lembram de apresentar-se ao doente e explicar-lhe o que será feito ao lado dos alunos.

O contato com o paciente é o momento ideal não só para se treinar a capacidade dos alunos no diagnóstico e na terapêutica, mas é, também, uma oportunidade única de ensinar e pôr em prática a ética e o profissionalismo. Muito importante é ver a atitude do professor em relação ao doente, como médico e professor, visando não apenas ensinar, mas, também, e principalmente, educar pelo testemunho de sua atuação. Particularmente em relação à Clínica Médica, entende-se que somente pode ensiná-la professor que a exerce, e em sua plenitude, passando grande parte de sua vida ao lado dos doentes. Somente assim um dia o médico não perderá para o computador.

E o que acham os pacientes do ensino à beira do leito? Eles adoram. Gostam da atenção, da oportunidade de fazer perguntas e compreender melhor a finalidade da instituição como hospital-escola.

Ao observar-se os alunos durante as aulas à beira do leito, nota-se que eles se sentem vivos, participantes, interessados. Aprenderão que a observação é importante e que, quando chegar a vez deles, será uma ferramenta fundamental.

Mas se isto não bastasse, surge, apregoada por quem não tem formação e vocação para o ensino e exercício da medicina como ciência e arte, a medicina baseada em evidência, como se isto fosse algo de novo. É preciso que se diga que os que exercem a prática médica sempre o fizeram baseados em evidência, porém com a experiência clínica, que é insubstituível.

O progresso da informática permite a revisão sistemática da literatura, que, apesar de seu inquestionável valor, é preciso que seja colocada em seu devido lugar, principalmente pelo jovem médico, que deve priorizar os tratados como fonte para o seu aprendizado ¾ "A medicina, na graduação, aprende-se nos livros clássicos", dizia Domingos Deláscio. Aliás, no Annals of Internal Medicine, importante revista científica de circulação internacional, Patil1, em carta enviada ao editor, salienta exatamente nossa opinião ao fazer comentário sobre o artigo de Badgett et al.2, cuja resposta enfatiza, com elegância, que a experiência clínica é fundamental nas decisões e no ensino médico. Realmente, a medicina fundamenta-se na vivência, no tempo que se passa ao lado do doente, e não na coletânea de dados cuja origem pode ser discutível.

Diz com muita propriedade Oswaldo Ramos: "A Medicina é a profissão cujo aprendizado e exercício exigem mais sofrimento" — e cabe aqui a frase de Jairo Ramos, o pai da Clínica Médica em nosso meio: "O médico diferencia-se no diagnóstico e iguala-se no tratamento". Assim sendo, principalmente o jovem recém-formado, em seus estudos, deverá interessar-se, fundamentalmente, pela etiopatogenia e fisiopatogenia das doenças, pois estas representam as bases de um diagnóstico adequado e permitem uma análise crítica das metanálises, evitando que resultados por elas apresentados, e obtidos de forma nem sempre confiável, substituam a experiência adquirida à beira do leito.

Ainda especificamente em relação à Clínica Médica, e tão grave quanto o exposto, é a fragmentação do ensino da propedêutica médica, que em algumas escolas é ministrada pelas especialidades, e não por clínicos. Todos aqueles que exercem esta especialidade por vocação posicionam-se frontalmente contra esta forma de ensino, que, inevitavelmente, arremete o raciocínio do aluno para as máquinas. A visão holística do doente não pode deixar de existir, principalmente em uma fase precoce do aprendizado.

A.C. Lopes

Professor Titular da Disicplina de Medicina de Urgência do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Paulo ¾ Escola Paulista de Medicina; Presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica.

1. Patil JJP. Clinical experience and evidence-based medicine. Ann Intern Med 1998; 128: 245.

2. Badgett RG, O'Keefe M, Henderson MC. Using systematic reviews in clinical education. Ann Intern Med 1997; 126: 886-90.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2000
  • Data do Fascículo
    Set 1998
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