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Hipocalcemia e síndrome convulsiva em alcoólatras - uma associação freqüentemente não diagnosticada

Hypocalcemia and convulsive syndrome in alcoholics: an association frequently not diagnosed

Resumos

Hipocalcemia é um fator importante contribuinte para a epilepsia, e estudos anteriores mostraram que o etanol diminui o cálcio plasmático. OBJETIVO: Estabelecer a prevalência de hipocalcemia na população convulsiva em geral e identificar um subgrupo específico de risco para hipocalcemia. MÉTODOS: Realizamos um estudo prospectivo de dosagem de cálcio ionizado plasmático em 78 pacientes consecutivos admitidos no Serviço de Emergência da Escola Paulista de Medicina devido à síndrome convulsiva. Desses pacientes, 22% eram alcoólatras. Foi também dosado o cálcio ionizado plasmático numa população de 44 alcoólatras não-convulsivos em seguimento ambulatorial. RESULTADOS: Uma alta prevalência de hipocalcemia foi encontrada na população alcoólatra convulsiva (32%), em contraste com os convulsivos não-alcoólatras e o grupo alcoólatra não-convulsivo (ambos os grupos sem distúrbio do cálcio). O cálcio ionizado plasmático do grupo de alcoólatras convulsivos teve valores significantemente menores que o grupo de convulsivos não-alcoólatras (p<0,05) [mediana de 1,20; variação entre 1,04 e 1,32mmol/L/; mediana de 1,24; variação entre 1,16 e 1,29mmol/L, respectivamente]. O grupo de alcoólatras não-convulsivos apresentou valores de cálcio ionizado entre 1,17 e 1,32mmol/L, com mediana de 1,26mmol/L. Estes valores não diferiram dos obtidos nos convulsivos não-alcoólatras, mas foram significantemente maiores que os do grupo de alcoólatras convulsivos (p<0,05). Os níveis de paratormônio sérico, função hepática, fosfatemia e amilasemia estavam normais em todos os pacientes estudados. CONCLUSÃO: Este estudo mostra a importância da dosagem de cálcio plasmático em pacientes alcoólatras com síndrome convulsiva e sugere que a correção da hipocalcemia possa ser medida importante a ser adotada nestes casos.

Hipocalcemia; Alcoolismo; Epilepsia


Hypocalcemia can be a contributory factor for epilepsy and previous studies showed that ethanol decreases plasma calcium. PURPOSE: To establish the prevalence of hypocalcemia in the general convulsive population and to ascertain if there was a specific group of risk for hypocalcemia. METHODS: A prospective study of plasma ionized calcium measurement in 78 consecutive patients admitted owing to seizures at the Emergency Department of Escola Paulista de Medicina was performed. 22% of these patients were alcoholics. The plasma ionized calcium in 44 ambulatory non-convulsive alcoholics was also measured. RESULTS: A high prevalence of hypocalcemia was found in the alcoholic convulsive population (32%), in contrast with the non-alcoholic convulsive group and the alcoholic non-convulsive group (no calcium disturbance in both groups). The alcoholic convulsive group had values of ionized calcium statistically lower than the non-alcoholic convulsive group using the Mann-Whitney test (p<0.05) [median value= 1.20mmol/L; range= 1.04 - 1.32mmol/L/ median value= 1.24mmol/L; range= 1.16-1.29mmol/L respectively]. The alcoholic non-convulsive group had values of ionized calcium between 1.17 and 1.32mmol/L with median value of 1.26 mmol/L; these values were not different from those obtained with the non-alcoholic convulsive patients, however they were higher than the calcium levels in the alcoholic convulsive group (p<0.05). PTH levels, liver function tests, phosphatemia and amylasemia were normal in all patients. CONCLUSION: This study emphasizes the importance of serum calcium measurement in alcoholic patients presenting seizures and suggests that hypocalcemia correction might be important in these patients.

Hypocalcemia; Alcoholism; Epilepsy


Artigo Original

Hipocalcemia e síndrome convulsiva em alcoólatras - uma associação freqüentemente não diagnosticada

M.J. Kayath, M. Argentoni, J.G.H. Vieira

Disciplina de Endocrinologia da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP, São Paulo, SP.

RESUMO

Hipocalcemia é um fator importante contribuinte para a epilepsia, e estudos anteriores mostraram que o etanol diminui o cálcio plasmático.

OBJETIVO. Estabelecer a prevalência de hipocalcemia na população convulsiva em geral e identificar um subgrupo específico de risco para hipocalcemia.

MÉTODOS. Realizamos um estudo prospectivo de dosagem de cálcio ionizado plasmático em 78 pacientes consecutivos admitidos no Serviço de Emergência da Escola Paulista de Medicina devido à síndrome convulsiva. Desses pacientes, 22% eram alcoólatras. Foi também dosado o cálcio ionizado plasmático numa população de 44 alcoólatras não-convulsivos em seguimento ambulatorial.

RESULTADOS. Uma alta prevalência de hipocalcemia foi encontrada na população alcoólatra convulsiva (32%), em contraste com os convulsivos não-alcoólatras e o grupo alcoólatra não-convulsivo (ambos os grupos sem distúrbio do cálcio). O cálcio ionizado plasmático do grupo de alcoólatras convulsivos teve valores significantemente menores que o grupo de convulsivos não-alcoólatras (p<0,05) [mediana de 1,20; variação entre 1,04 e 1,32mmol/L/; mediana de 1,24; variação entre 1,16 e 1,29mmol/L, respectivamente]. O grupo de alcoólatras não-convulsivos apresentou valores de cálcio ionizado entre 1,17 e 1,32mmol/L, com mediana de 1,26mmol/L. Estes valores não diferiram dos obtidos nos convulsivos não-alcoólatras, mas foram significantemente maiores que os do grupo de alcoólatras convulsivos (p<0,05). Os níveis de paratormônio sérico, função hepática, fosfatemia e amilasemia estavam normais em todos os pacientes estudados.

CONCLUSÃO. Este estudo mostra a importância da dosagem de cálcio plasmático em pacientes alcoólatras com síndrome convulsiva e sugere que a correção da hipocalcemia possa ser medida importante a ser adotada nestes casos.

UNITERMOS: Hipocalcemia. Alcoolismo. Epilepsia.

INTRODUÇÃO

A importância da hipocalcemia como fator contribuinte para a epilepsia já foi bem documentada em estudos experimentais1,2 e em doenças como o hipoparatiroidismo. Estudos anteriores sobre intoxicação alcoólica aguda e crônica evidenciaram que o etanol diminui o cálcio plasmático3,9, entretanto a relação entre alcoolismo, hipocalcemia e convulsões nunca foi bem estabelecida.

Em nosso estudo avaliamos o nível de cálcio ionizado plasmático de 78 pacientes consecutivos atendidos no Pronto-Socorro do Hospital São Paulo devido à síndrome convulsiva. Nossos objetivos foram: estabelecer a prevalência de hipocalcemia nesta população convulsiva em particular e verificar se havia um grupo de risco para distúrbios do metabolismo do cálcio.

PACIENTES E MÉTODOS

Pacientes

Foram estudados 78 pacientes convulsivos, sendo 56 homens com idade variando entre 2 a 76 anos (mediana=31 anos) e 22 mulheres com idade entre 2 e 75 anos (mediana=33 anos). Dos pacientes, 22 (28%) eram alcoólatras (classificados pelo CID-9, OMS 1977), sendo todos do sexo masculino com idades variando entre 18 e 77 anos (mediana 38 anos). Quanto ao tipo de quadro clínico, todos os pacientes alcoólatras apresentaram crise convulsiva generalizada tipo grande mal, e os restantes apresentaram crises convulsivas motoras focais ou generalizadas. Uma coleta de sangue foi realizada no momento da admissão, sendo feita uma dosagem de cálcio ionizado. Quando hipocalcemia (níveis abaixo de 1,14mmol/L) era detectada, acrescentavam-se às dosagens de paratôrmonio (PTH), magnésio, fósforo, fosfatase alcalina, transaminases, amilase e tempo de ativação de protrombina. Dosagens de cálcio ionizado também foram efetuadas em 44 pacientes alcoólatras em seguimento ambulatorial conforme Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais10.

Métodos

Cálcio ionizado foi dosado a partir de sangue venoso heparinizado, com o emprego de um equipamento de eletrodo íon-específico (ICA-2 Ionized Calcium Analyzer, Radiometer, Copenhagen, Dinamarca) com correção automática para o pH 7,4. Os valores normais para este método situam-se na faixa de 1,14 a 1,29mmol/L. O PTH sérico foi dosado por radioimunoensaio com o emprego de método amino-terminal específico11. Magnésio, fósforo e enzimas séricas foram dosados pelos métodos de rotina habituais e fitas de detecção de álcool utilizadas para rastreamento de etanol urinário. A comparação entre os grupos estudados foi feita utilizando-se o teste de Mann-Whitney e o nível de significância escolhido foi um P<0,05.

RESULTADOS

A dosagem de cálcio ionizado na população convulsiva como um todo mostrou mediana de 1,23mmol/L com valores distribuindo-se entre 1,04 a 1,32mmol/L. O grupo de pacientes alcoólatras convulsivos teve mediana de 1,20mmol/L com va-lores entre 1,04 e 1,32mmol/L, sendo que sete (32%) apresentavam hipocalcemia. Estes números são significativamente menores que os de convulsivos não-alcoólatras (mediana de 1,24mmol/L, variação entre 1,16 e 1,29mmol/L) (p<0,05). O grupo de alcoólatras não-convulsivos apresentou valores de cálcio ionizado entre 1,17 e 1,32mmol/L, com mediana de 1,26mmol/L. Estes valores não foram, estatisticamente, diferentes dos obtidos nos convulsivos não-alcoólatras, mas foram significantemente maiores que os do grupo de alcoólatras convulsivos (p<0,05). Todos estes dados estão representados na tabela acima. Em cinco pacientes convulsivos com hipocalcemia foi feito o teste para a presença de álcool na urina, sendo negativo em todos os casos. Magnésio sérico foi dosado em seis dos sete pacientes convulsivos hipocalcêmicos e em apenas um caso estava abaixo dos níveis normais (0,45mmol/L; normal: 0,78 a 1,29mmol/L). Os níveis de PTH sérico, os testes de função hepática, a fosfatemia e a amilasemia estavam dentro dos limites da normalidade em todos os pacientes testados.

DISCUSSÃO

A hipocalcemia, assim como o etanol, diminui o limiar excitatório para convulsões tornando o paciente mais susceptível à epilepsia. Em nosso estudo encontramos hipocalcemia em 32 % da população convulsiva alcoólatra (7 de 22) num estudo de rastreamento de 78 pacientes consecutivos admitidos no serviço de emergência de nosso hospital devido à crise convulsiva. Convulsões devidas à retirada do álcool puderam ser vistas nas primeiras 36 horas de abstinência, porém não estão rela-cionadas a nenhum distúrbio metabólico12. Muitos estudos têm demonstrado a associação entre hipocalcemia e a ingestão de álcool, sendo explicada pela inibição aguda mediada pelo etanol do efluxo de cálcio do osso para o plasma3,4,7,8,9. Outros mecanismos que têm sido propostos para explicar a hipocalcemia associada ao etanol seriam: a dimi-nuição da resposta óssea ao PTH e/ou um hipopa-ratiroidismo transitório; hipomagnesemia; pan-creatite aguda e anormalidades no metabolismo do cálcio como a diminuição da absorção intestinal de cálcio ou aumento de sua excreção renal6,13. Nossos pacientes não se apresentavam na vigência de um episódio de intoxicação aguda pelo álcool; pan-creatite aguda foi excluída e apenas um paciente apresentava hipomagnesemia, fator que pode ter contribuído para a hipocalcemia especificamente neste caso. Os níveis de PTH estavam dentro da faixa da normalidade, embora possam ser considerados inapropriadamente baixos para os níveis de cálcio. A hipocalcemia e o hipoparatiroidismo transitórios, demonstrados por Laitinen et al.6 até 16 horas após uma ingestão aguda de álcool, podem ser o fator desencadeante para o fenômeno por nós observado, associados a outras anormalidades características deste grupo de pacientes como a desnutrição e má-absorção.

Em resumo, uma alta prevalência de hipocalcemia foi encontrada numa população de alcoólatras convulsivos. A importância da hipocalcemia na etiologia das convulsões é sugerida pela ausência de hipocalcemia em alcoólatras não-convulsivos. O estudo demonstra a importância da dosagem de cálcio ionizado em pacientes alcoólatras que se apresentem com síndrome convulsiva e in-dica a possibilidade de que a correção do distúrbio metabólico possa ser uma medida terapêutica útil nesses casos.

SUMMARY

Hypocalcemia and convulsive syndrome in alcoholics: an association frequently not diagnosed

Hypocalcemia can be a contributory factor for epilepsy and previous studies showed that ethanol decreases plasma calcium.

PURPOSE. To establish the prevalence of hypocalcemia in the general convulsive population and to ascertain if there was a specific group of risk for hypocalcemia.

METHODS. A prospective study of plasma ionized calcium measurement in 78 consecutive patients admitted owing to seizures at the Emergency Department of Escola Paulista de Medicina was performed. 22% of these patients were alcoholics. The plasma ionized calcium in 44 ambulatory non-convulsive alcoholics was also measured.

RESULTS. A high prevalence of hypocalcemia was found in the alcoholic convulsive population (32%), in contrast with the non-alcoholic convulsive group and the alcoholic non-convulsive group (no calcium disturbance in both groups). The alcoholic convulsive group had values of ionized calcium statistically lower than the non-alcoholic convulsive group using the Mann-Whitney test (p<0.05) [median value= 1.20mmol/L; range= 1.04 - 1.32mmol/L/ median value= 1.24mmol/L; range= 1.16-1.29mmol/L respectively]. The alcoholic non-convulsive group had values of ionized calcium between 1.17 and 1.32mmol/L with median value of 1.26 mmol/L; these values were not different from those obtained with the non-alcoholic convulsive patients, however they were higher than the calcium levels in the alcoholic convulsive group (p<0.05). PTH levels, liver function tests, phosphatemia and amylasemia were normal in all patients.

CONCLUSION. This study emphasizes the importance of serum calcium measurement in alcoholic patients presenting seizures and suggests that hypocalcemia correction might be important in these patients. [Rev Ass Med Brasil 1999; 45(1): 24-6.]

KEY WORDS: Hypocalcemia. Alcoholism. Epilepsy.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2000
  • Data do Fascículo
    Mar 1999
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