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Emprego do retalho microcirúrgico antebraquial na reconstrução em cabeça e pescoço: experiência de 11 casos

Surgical flaps; Head and neck neoplasms; Microsurgery

Retalhos cirúrgicos; Tumores na cabeça e pescoço; Microcirurgia

Artigo de Revisão

Emprego do retalho microcirúrgico antebraquial na reconstrução em cabeça e pescoço: experiência de 11 casos.

F. E. Aki, J. M. Besteiro, F. R. Pinto, M. D. Durazzo, A. dos S. Cunha, G. de B. S. Filho, A. R. Ferraz

Trabalho realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

UNITERMOS: Retalhos cirúrgicos. Tumores na cabeça e pescoço. Microcirurgia.

KEY WORDS: Surgical flaps. Head and neck neoplasms. Microsurgery.

INTRODUÇÃO

O retalho microcirúrgico antebraquial (RMA), descrito em 1981 por Yang et al.1, é um retalho fáscio-cutâneo transplantado do antebraço e que tem o seu pedículo vascular baseado na artéria radial, veias comitantes e nas veias superficiais do antebraço. O RMA é um retalho que passou a ser amplamente utilizado na reconstrução de defeitos cervicofaciais e craniofaciais.

O seu grande emprego em cirurgia de cabeça e pescoço deve-se, sobretudo, ao fato do RMA ser pouco espesso, o que permite moldá-lo para a reconstrução de defeitos complexos2,3. Outras vantagens do RMA são: a presença de um pedículo vascular constante cujos vasos, por apresentarem um grande calibre, facilitam tecnicamente as anastomoses vasculares no leito receptor; a tolerância ao tratamento radioterápico no período pós-operatório precoce quando este se fizer necessário; pelo fato de ser delgado, sofre menos efeito da gravidade que outros retalhos, mantendo sua posição na área receptora; a possibilidade da inclusão de um fragmento de osso (rádio), compondo um retalho ósteo-fáscio-cutâneo, permitindo a imediata reconstrução da mandíbula quando esta se fizer necessária; a possibilidade da ressecção tumoral e da elevação do retalho serem realizadas ao mesmo tempo por duas equipes cirúrgicas, minimizando a duração da operação.

No presente trabalho é apresentada a experiência com pacientes submetidos a ressecções de tumores malignos da cabeça e do pescoço na Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, no período de abril de 1990 a novembro de 1996, nos quais o RMA foi utilizado para a reconstrução dos defeitos resultantes. A experiência dos autores publicada previamente na literatura4,5 diz respeito ao emprego do RMA em casos de defeitos de origem oncológica e não-oncológica (traumas, afecções congênitas e outras).

CASUÍSTICA E MÉTODO

A Tabela 1 apresenta, de maneira sintética, 11 pacientes submetidos a reconstrução microcirúrgica com utilização do RMA. Todos os doentes eram portadores de tumores malignos e foram submetidos a ressecções de grande porte na região da cabeça e do pescoço. A idade dos pacientes variou de 7 a 76 anos (média de 51,8 anos). Cinco pacientes eram do sexo masculino. Os sítios dos tumores primários foram os seguintes: órbita em quatro casos, região maxilar em dois casos, cavidade oral e orofaringe em dois casos e lábio em três casos. A histopatologia revelou sete casos de carcinoma espinocelular, um caso de carcinoma sebáceo, um caso de adenocarcinoma e dois casos de carcinoma basocelular.

No pré-operatório todos pacientes foram submetidos ao teste de Allen. Tal método permite testar a suficiência da artéria ulnar no suprimento sangüíneo da mão, através dos arcos arteriais palmares na ausência da artéria radial. Quando comprovada tal suficiência (teste de Allen negativo), está o cirurgião autorizado a elevar o RMA com conseqüente ligadura da artéria radial. Todos pacientes apresentavam o teste de Allen negativo no pré-operatório.

No intra-operatório o membro superior é garroteado e, após a demarcação da superfície do retalho, prossegue-se a elevação do mesmo no sentido distal para proximal (Fig. 1). A artéria radial, identificada na metade distal da face volar do antebraço entre os músculos braquiorradial e flexor radial do carpo, é seguida até sua origem na fossa cubital, ao mesmo tempo em que a ilha de pele e a fáscia subjacente são elevadas. Em todos os retalhos uma veia superficial do antebraço foi utilizada para a drenagem venosa. Uma vez elevado o retalho, o garroteamento é liberado e a irrigação da mão é revista, com a artéria radial já ligada distalmente. Em caso de perfusão inadequada da mão, a artéria radial deve ser reconstruída com enxerto venoso. Nos 11 casos não foi verificada tal intercorrência.


O RMA, totalmente dissecado da área doadora, mantém sua irrigação pelo pedículo vascular intacto junto à fossa cubital até o momento em que o leito receptor estiver preparado para a transferência do retalho. No leito receptor várias são as possibilidades de anastomose para os vasos do retalho. Dependendo do caso, a artéria radial pode ser anastomosada à artéria tireóidea superior, à artéria carótida externa, à artéria facial, à artéria lingual ou à artéria cervical transversa. Da mesma forma, a drenagem venosa pode ser variada, conforme o caso, sendo a veia jugular externa bastante citada na literatura4, 6.

Após a transferência do retalho, a área doadora é reconstruída com a aproximação dos músculos braquiorradial e pronador redondo. Um enxerto de pele (espessura parcial) é rotineiramente utilizado para a cobertura do defeito na área doadora4. A utilização do RMA ocorreu no mesmo tempo cirúrgico que a ressecção do câncer em dez dos 11 casos.

RESULTADOS

Nos 11 doentes a evolução foi satisfatória do ponto de vista funcional e estético (Fig. 2). O tamanho do retalho variou de 5 X 5 cm a 15 X 10 cm. O tamanho do pedículo variou de 9 a 25 cm. Não foram observadas variações anatômicas da artéria radial. Em um caso o RMA foi utilizado após a perda de um retalho microcirúrgico de músculo reto abdominal. Em quatro casos, o RMA foi utilizado em associação com outros retalhos (retalho de pericrânio em um caso, retalho miocutâneo de músculo peitoral maior em um caso, retalho frontal em um caso e retalho microcirúrgico de fíbula em um caso). Em um único caso houve perda total do RMA por infecção dos tecidos moles cervicais no pós-operatório (Tabela 1). Com relação à área doadora, não foram observadas complicações.


DISCUSSÃO

Os defeitos cervicofaciais resultantes das ressecções de tumores sempre foram um grande desafio na cirurgia de cabeça e pescoço. Com relação à cavidade oral e à orofaringe, por exemplo, o fechamento primário de defeitos resultantes de ressecções oncológicas pode resultar em alterações funcionais como problemas de deglutição e articulação das palavras, além de deformidades estéticas7. Assim, durante as quatro últimas décadas, várias técnicas foram desenvolvidas para a reconstrução cervicofacial. Os enxertos de pele têm, até os dias atuais, um grande valor quando nos deparamos com pequenos defeitos, mas seu uso é limitado no caso de ressecções mais extensas. Por muito tempo, defeitos extensos da cavidade oral, ou mesmo da faringe e do esôfago cervical, passaram a ser reconstruídos com os retalhos clássicos em cirurgia de cabeça e pescoço, como o retalho frontal, o retalho delto-peitoral e o retalho de grande peitoral. O retalho frontal resulta em um defeito estético considerável na área doadora7, enquanto os retalhos delto-peitoral e de grande peitoral, em função de sua grande espessura7,8, nem sempre são adequados para as reconstruções intra-orais, principalmente no que se refere ao aspecto funcional da cavidade oral. Além disso, por esses retalhos serem pediculados, o seu emprego está limitado pela extensão e pelo arco de rotação do seu pedículo vascular8. Outra limitação desses retalhos é a necessidade, para alguns deles, da realização de mais de um tempo operatório para uma adequada reconstrução.

Descrito em 1981 por Yang1et al., o retalho microcirúgico antebraquial é um retalho livre fáscio-cutâneo que teve sua utilização popularizada por McGregor2 e Soutar & McGregor3 para as reconstruções em cabeça e pescoço, principalmente da cavidade oral e orofaringe. Seu emprego nessas regiões baseia-se no fato do RMA possuir uma pequena espessura e ser bastante maleável3,5,8,9. A escassez de pêlos na superfície volar do antebraço confere ao RMA mais uma vantagem sobre retalhos anteriormente mencionados, como o de grande peitoral, principalmente em pacientes do sexo masculino8.

A elevação do retalho é relativamente simples, podendo ser realizada no mesmo tempo cirúrgico que o da ressecção tumoral4. Na presente casuística, o emprego do RMA ocorreu no mesmo tempo cirúrgico da ressecção do câncer em dez dos 11 casos. Tal conduta é recomendada na literatura, pois reconstruções secundárias representam uma grande dificuldade técnica em função da fibrose perivascular que pode ser encontrada10. O longo e constante pedículo do RMA permite que as anastomoses sejam feitas nos vasos do pescoço, desde que estes estejam localizados até 25 cm de distância do defeito a ser reconstruído3,7,8. A indicação da utilização do RMA é limitada, por vezes, pela extensão do defeito cirúrgico, que não deve exceder 15 cm em seu maior diâmetro. Quando o defeito cirúrgico supera a área do RMA, a recontrução pode ser obtida pela utilização de um outro retalho em associação com o RMA, como ocorreu em quatro dos casos do presente estudo.

A vascularização do RMA baseia-se na artéria radial e na veia cefálica, podendo também valer-se das veias comitantes do antebraço1,7. Oretalho, geralmente elevado na superfície volar do antebraço, pode ter um pedículo proximal (próximo à fossa cubital) ou distal (próximo ao punho) pois é possível um fluxo retrógrado nos vasos do antebraço11. Apesar da anatomia constante do pedículo vascular e da técnica padronizada para a elevação do retalho, o cirurgião deve estar atento para possíveis variações anatômicas que possam dificultar o ato cirúrgico ou levar a lesões iatrogênicas do antebraço. Funk et al.12, em 1995, descreveram uma série de variações anatômicas, sendo a origem mais proximal que o habitual da artéria radial a mais comum, podendo estar presente em até 15% dos casos. Nesta anomalia, há uma relação muito próxima da artéria radial em sua origem com o nervo mediano. Desta forma, na tentativa de dissecar a origem da artéria radial, o que é desnecessário para a elevação do retalho, o cirurgião pode inadvertidamente lesar o nervo mediano. A despeito da possibilidade de existência de variações anatômicas no pedículo do RMA, a contra-indicação de elevação do retalho é de exceção. Tal situação ocorre quase que exclusivamente nos casos de teste de Allen positivo, o que é observado na hipoplasia da artéria ulnar ou nos arcos vasculares palmares dependentes da artéria radial. Nos 11 casos relatados no presente trabalho, não foram observadas quaisquer variações anatômicas arteriais como as supra mencionadas.

O RMA é um retalho potencialmente inervado quando se inclui no retalho o nervo cutâneo medial ou o nervo cutâneo lateral do antebraço, os quais podem ser anastomosados a um nervo sensitivo do leito receptor7,8. Outra variação na utilização do RMA é a inclusão de uma porção do rádio3,7,8,13 no retalho, permitindo, em um único tempo, a reconstrução de defeitos complexos resultantes da ressecção de tumores que invadem a mandíbula. Para os casos em que o defeito implique na necessidade de reconstrução óssea, o RMA pode, ainda, ser utilizado como uma ponte vascular6 entre o leito receptor e um retalho osteocutâneo como, por exemplo, um retalho de crista ilíaca. Tal propriedade só é possível em função do pedículo vascular longo do RMA, que pode ser anastomosado com vasos cervicais distantes do defeito cirúrgico, levando vascularização a outro retalho. Em alguns defeitos particulares, como os de espessura total de bochecha, o RMA pode ser empregado dobrado sobre si mesmo ("folded flap") podendo desta forma reconstruir, ao mesmo tempo, a mucosa e a pele da região da bochecha14. Nenhuma das variações no emprego do RMA supra citadas (inervado ou com segmento de rádio) foi utilizada nos 11 casos revistos no presente estudo.

Entre as complicações do emprego do RMA temos a potencial morbidade na área doadora8, principalmente naqueles pacientes onde parte do rádio é utilizada na reconstrução. Nestes pacientes, pode ocorrer fratura do hemirádio remanescente. Desta forma, recomenda-se que não mais que um terço do diâmetro do rádio seja removido na confecção do retalho, e que o paciente permaneça com o antebraço imobilizado por uma tala acima do cotovelo por 8 a 12 semanas10. A perda do enxerto de pele é outra complicação que pode ocorrer, principalmente quando o retalho é elevado na porção mais distal do antebraço, onde a grande quantidade de tendões desfavorece a integração do enxerto11. O tratamento conservador com curativos diários consegue, de um modo geral, contornar tal ocorrência. Não foram observadas complicações na área doadora na presente casuística.

Quanto à viabilidade do retalho, a literatura é unânime em apresentar baixíssimas taxas de perdas. Estas, quando ocorrem, são devidas, na maioria dos casos, à trombose venosa e, infreqüentemente, a complicações arteriais. A infecção dos tecidos moles cervicais, muitas vezes secundária a uma fístula da cavidade oral para o pescoço, é outra causa importante de perda do retalho, ocorrendo com mais freqüência no pós-operatório tardio10. A única perda observada nos 11 casos apresentados deveu-se à infecção do leito operatório.

Em suma, o RMA representa um grande avanço na cirurgia reconstrutiva em cabeça e pescoço tanto pelas vantagens citadas, como pela baixa morbidade15 e resultado estético aceitável na área doadora. Na presente casuística, assim como na literatura, o RMA mostrou ser bastante tolerante à radioterapia3, o que o torna de grande indicação para os pacientes submetidos a ressecções de tumores avançados em cabeça e pescoço responsivos ao tratamento radioterápico pós-operatório.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2000
  • Data do Fascículo
    Jun 2000
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