Acessibilidade / Reportar erro

Lançamento oficial da Terminologia Anatomica em São Paulo: um marco histórico para a medicina brasileira

Editorial

Lançamento oficial da Terminologia Anatomica em São Paulo: um marco histórico para a medicina brasileira

É muito facil contar a história enquanto ela está acontecendo...

O exercício da medicina é, pela sua própria natureza, dificil, complexo e, às vezes, imprevisível. É um desafio contínuo e permanente.

O médico usa o poder do seu saber, dentro da ética, no seu nível mais elevado, só equivalente à sua responsabilidade. Trata e soluciona problemas entre a vida e a morte. No seu benéfico fanatismo (eu prefiro chamar de entusiasmo* * Etimologicamente significa "ter um Deus dentro". ) profissional, por vezes, o médico pensa (não "se sente") como um semi-Deus e, não raramente, dá a impressão de sê-lo. Não é infundada a idéia do médico ser (ou ter sido) um sacerdote nem deixa de ter base, como se apregoa, a íntima relação da medicina com a Teologia. Felizmente para os médicos, principalmente para aqueles que praticam sua profissão como uma religião, "milagres" às vezes os ajudam.

Houve um tempo em que a Ciência em geral, e a medicina em particular, usavam o Latim (e não só "os noviços em conventos" no dizer de um pseudo-humorista) como ocorre ainda com certas religiões. Hoje, pelo menos a Terminologia Anatomica oficial, base da Terminologia Médica, é publicada em Latim, acompanhada não pela tradução inglesa** ** A tradução da Terminologia Anatomica para o inglês será feita pelas associações de anatomistas anglofônicas para dirimir naturais dúvidas e eliminar discrepâncias entre os povos que falam inglês. , mas por termos "equivalentes" em inglês, como orientação para os que não sabem ou não se lembram do Latim.

Apesar disso, não faz muito tempo, a linguagem da anatomia, tanto em Latim quanto em outra língua, se prestava a gerar confusão, devido ao uso de termos eponímicos, como no caso que se segue:

A terminação do intestino delgado no intestino grosso foi descrita por Varolius*** *** Varolio em italiano (1573) e por ele denominada opérculo do íleo (operculum ilii): A transcrição do seu texto é a seguinte: " ... Ergo, ubi ilium jungitur colo, protuberat ex parte interna hujus membrana quaedam, quae est ultimus finis ilii eo usque producti quam ego ejusdem inventor operculum ilii apello". A tradução livre correspondente é: "...Onde o íleo se junta ao cólon, há uma membrana que proemina na cavidade deste. Desta membrana, que é a verdadeira extremidade do íleo estendendo-se a esta junção, eu que sou o inventor, chamo-a opérculo do íleo".

Seis anos mais tarde, suas frases foram copiadas por Bauhin (1579), que também substituiu o nome opérculo do íleo pelo valvula ileocaecalis, como foi demonstrado pelo tratadista Sappey (1876). Este autor rotulou o plágio "um ato de pirataria científica que a história jamais perdoaria".

Mas a história não acabou aí: enquanto os anatomistas italianos atribuíram a primazia da descoberta não a Varolio, porém ao seu compatriota Achillini (de acordo com Garibaldi, 1882, contra o parecer de Bomba), ou a Falloppio, que teria descrito a "válvula" no macaco, os franceses indicaram que a prioridade deveria caber ao seu patrício Rondelet, da Universidade de Montpellier, que a observara sem tê-la descrito (Seckendorf, 1933) antes de todos. Como se não bastassem esses esclarecimentos e essas reivindicações históricas, os anglofônicos a chamavam "válvula de Posthius" (Bryant, 1916) ou válvula de Vidius (Wallace, 1929), enquanto que os holandeses denominavam a mesma estrutura "válvula de Tulp" (Plesch, 1928). A seguir, verificou-se que na transição intestinal delgado-grosso há uma formação que "não é válvula, não é de Bauhin nem é íleocecal": trata-se da papila ileal, contendo um dispositivo que funciona como um "piloro ileo-ceco-cólico" (Di Dio, 1952). Este foi, e continua a ser, estudado experimentalmente e, atualmente, utilizado em anastomoses terminolaterais ou implantes do íleo terminal e da sua papila ileal no colon (Bastos et al., 1950) ou no reto (Safatle e Almeida, 1984, Lázaro-da-Silva, 1997) e até na porção distal da ampola retal (Trindade-Soares, 2000).

São apenas alguns dos muitos exemplos que poderiam ser citados. Com a atual redução dos currículos médicos, não há mais tempo para exposições, como a que acaba de ser mencionada para alunos de cursos de graduação e, com isso, o professor de anatomia perde um bom recurso para ensinar e educar. Cabe, pois, aos professores de história da medicina ou de ética aproveitá-lo.

Para evitar confusões, a solução, proposta reiteradas vezes, só agora foi oficialmente aprovada e adotada pelas associações de anatomistas de todo o mundo: eliminar os epônimos, escolher um termo significativo para cada estrutura, simplificar, atualizar e uniformizar a terminologia. Naturalmente, a importância dos termos eponímicos continua a ser fundamental para a história da medicina e para estudiosos e pesquisadores de seus problemas e projetos, publicados ou em publicação.

Lembro-me, desde 1940, do cuidado científico com o qual o meu saudoso mestre, Prof. Renato Locchi, pupilo dileto e sucessor do renomado Prof. Alfonso Bovero, como catedrático de anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, usava a terminologia anatômica ao ministrar suas aulas ou orientar as teses de seus discípulos.

Certa ocasião, cheguei a mencionar a necessidade ou, pelo menos, a possibilidade de se realizar uma reunião da Comissão Internacional de Nomenclatura no Brasil. Ele respondeu que, embora desejável, era muito cedo para que tal evento acontecesse entre nós. O assunto morreu por aí, mas permaneceu em minha memória, à espera que a oportunidade se apresentasse.

Mais de meio século depois, passados precisamente 59 anos, ao encerrar meu mandato como presidente da IFAA (1989), a "oportunidade se apresentou". Minha última sugestão foi a de fazer um esforço especial para resolver democraticamente o problema terminológico: que a Assembléia Geral elegesse uma comissão, formada por anatomistas genuinamente interessados em terminologia e que representasse todo o mundo, para conseguir a colaboração de todas as sociedades de anatomia com o objetivo de preparar listas de termos suscetíveis de serem adotadas universalmente.

A proposta foi aprovada por unanimidade, a Terminologia Anatomica foi completada depois de quase uma década e lançada oficialmente em São Paulo. Como se chegou a alcançar o almejado objetivo?

A terminologia anatômica (cerca de 6 mil nomes) foi selecionada (dentre aproximadamente 10 mil nomes) e estudada durante oito anos pela comissão eleita democraticamente. Foi revista por todas as associações de anatomistas e foi por estas aprovada. Em síntese, foi preparada, graças aos esforços e à colaboração mundiais, uma Terminologia Anatomica simplificada, uniforme e atualizada.

O Federative Committee on the Anatomical Terminology (FCAT), órgão oficial da Federação que trata da nomenclatura da anatomia humana, tem representantes dos cinco continentes, eleitos em Assembléia Geral da International Federation of Associations of Anatomists (IFAA), o que lhe confere, geográfica e autenticamente, características mundiais e, assim, o privilégio de ser um instrumento natural, democrático e de globalização.

Os 20 membros do FCAT atual estão distribuídos em 16 países: três dos Estados Unidos, dois do Reino Unido, e um de cada um dos seguintes países: - África do Sul, Alemanha, Austrália, Bélgica, Brasil, Canadá, Costa Rica, Espanha, França, Holanda, Itália, Japão, Rússia, Suiça. A Assembléia Geral do XV Federative International Congress of Anatomy, realizada em Roma (1999), aprovou a eleição de três membros adicionais do FCAT para representar os anatomistas de língua árabe, chinesa e indiana.

O FCAT está preparando as listas de termos de antropologia, citologia, embriologia e histologia enquanto faz a revisão da primeira edição da nomenclatura anatômica humana macroscópica. As próximas reuniões já estão programadas para Rússia, Japão, Holanda, Costa Rica e República da África do Sul.

A era ou o século das múltiplas listas de nomenclatura das ciências anatômicas terminou em 1997, quando a terminologia anatômica universal foi completada e oficialmente anunciada.

Aos 28 de Agosto de 1997, depois de séculos e, talvez milênios, de discussões pouco produtivas, o "milagre" de ter uma nomenclatura oficial universal para a anatomia humana, à semelhança da que existe em outros campos das ciências, como o da química, aconteceu em São Paulo. Foi um sonho que se transformou em realidade. Um sonho acalentado por anatomistas de todo o mundo que se viam tolhidos e frustrados por objeções e obstáculos de toda a sorte, desde a política conservadora e ultranacionalista até pecados veniais e/ou mortais como a inveja, o ciúme, a vaidade, sem contar a ignorância, o dogmatismo com sua arrogância de "não ter dúvidas", os ditames do "magister dixit" e a nem sempre santa ingenuidade dos que pensam que sabem tudo.

A Terminologia Anatomica, parte da Terminologia da Biomorfologia (que engloba todas as ciências biomorfológicas, desde a macroscópica até a subcelular) passou, como era de se esperar, a estimular a atualização da Terminologia Médica e com mais esse mérito seu lançamento constituiu autêntico marco histórico da medicina brasileira e, provavelmente, da medicina mundial.

Prof. Dr. Liberato J.A. Di Dio

Professor Emérito e Diretor Emérito do Medical College of Ohio, USA, Professor de Anatomia Cirúrgica e Metodologia Científica, UNISA, Pesquisador Senior do CNPq, Instituto do Coração-USP, UMC, UNIMES

  • *
    Etimologicamente significa "ter um Deus dentro".
  • **
    A tradução da
    Terminologia Anatomica para o inglês será feita pelas associações de anatomistas anglofônicas para dirimir naturais dúvidas e eliminar discrepâncias entre os povos que falam inglês.
  • ***
    Varolio em italiano
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Nov 2000
    • Data do Fascículo
      Set 2000
    Associação Médica Brasileira R. São Carlos do Pinhal, 324, 01333-903 São Paulo SP - Brazil, Tel: +55 11 3178-6800, Fax: +55 11 3178-6816 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: ramb@amb.org.br