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Screening faz bem à saúde?

Atualização

Saúde Pública

SCREENING FAZ BEM À SAÚDE?

O exame de indivíduos assintomáticos para a identificação presuntiva de doença não reconhecida anteriormente é denominado rastreamento (screening). Por meio de exames clínicos ou laboratoriais, em geral de realização rápida, os indivíduos são classificados em suspeitos ou não de ter determinada doença. Aqueles classificados como suspeitos devem se submeter a outros exames para um diagnóstico final. Os casos confirmados seriam então tratados.

Screening é uma extensão lógica do princípio de que o prognóstico de uma doença é quase sempre melhor quando o paciente procura assistência logo após o surgimento dos primeiros sintomas (diagnóstico em fases menos avançadas). A detecção de doença, antes mesmo do indivíduo apresentar sintomas, permitiria instituir o tratamento em fases ainda mais iniciais, diminuindo a morbidade e a mortalidade devidas à doença.

O conhecimento de que exames de laboratório são capazes de revelar a existência de doença não reconhecida e assintomática vem sendo difundido para parcelas cada vez maiores da população. A crença de que o rastreamento automaticamente reduziria a chance de desenvolver determinadas doenças, ou suas conseqüências mais graves, provavelmente explica grande parte do aumento do número de pessoas saudáveis que realizam atualmente exames de screening.

O intenso desenvolvimento científico e tecnológico tem propiciado o surgimento de inúmeros testes, utilizando as mais variadas técnicas laboratoriais. Muitos desses testes mostram alterações em fase pré-clínica de doença; outros, em geral por meio de técnicas de biologia molecular, permitem identificar indivíduos com maior suscetibilidade de desenvolver determinada doença (por exemplo, portadores de alterações genéticas). Alguns desses novos testes têm sido propostos para rastreamento, aumentando o número de exames laboratoriais realizados em screening.

Apesar da ampla disseminação destes testes, sua efetividade para o controle de doenças é relativamente pouco conhecida. Muitos testes de screening tornaram-se rotineiros na prática médica antes de uma clara evidência de seus benefícios. A avaliação de vários destes procedimentos por estudos utilizando metodologia adequada tem mostrado resultados de certo modo surpreendentes. Para diversos testes laboratoriais, não houve demonstração de benefício; mais que isso, a realização de alguns exames parece ser até mesmo prejudicial. Esses resultados foram independentes da análise de custo dos exames. O título de um editorial do British Medical Journal alertou para esta possibilidade: "Screening could seriously damage your health".

A não demonstração de benefícios advindos da realização de diversos exames e, especialmente, a sugestão de que certos procedimentos seriam deletérios para a saúde de pessoas assintomáticas, contrariam o senso comum. Parece inconcebível que possa não haver vantagem quando a doença é descoberta antes de produzir sintomas. As razões dessa aparente incoerência são abordadas sucintamente a seguir.

Os exames de rastreamento são freqüentemente aplicáveis a uma única doença. Na população, a prevalência específica de quase todas as doenças é baixa, em geral menor que 5%. Portanto, em relação ao número de pessoas testadas em programas de screening, o número de indivíduos que potencialmente se beneficiaria é pequeno. Esta característica inerente ao rastreamento é muitas vezes esquecida.

Os exames de rastreamento costumam ser simples e raramente causam complicações. Contudo, devido à grande quantidade de indivíduos testados, o número de pessoas com efeitos adversos pode não ser desprezível. Na maioria dos testes laboratoriais utilizados como screening, o valor preditivo positivo é baixo. Para neoplasias, esse valor situa-se em geral entre 10 e 20%. Isto significa que 80 a 90% dos indivíduos com resultado positivo ficarão ansiosos, e serão submetidos a outros exames, às vezes invasivos, sem necessidade. Os efeitos colaterais desses exames adicionais devem também ser considerados na avaliação de uma proposta de rastreamento. É importante salientar que, apesar do diagnóstico precoce e da instituição de terapêutica apropriada, em muitos indivíduos não se conseguirá evitar a morte (ou outras graves conseqüências) pela doença. Quanto à sobrevida, o aumento observado em pessoas rastreadas pode ser apenas aparente.

A baixa proporção de indivíduos que desenvolverão doença (comum em investigações "preventivas") dificulta a realização de estudos epidemiológicos experimentais. A maioria das investigações que procuram avaliar a efetividade de procedimentos de screening utilizam desenhos observacionais (por exemplo, caso-controle e coorte). Como alguns viéses são muito comuns em estudos observacionais de rastreamento, e quase sempre superestimam o benefício dos testes, a validade da avaliação fica comprometida.

Em 1976 no Canadá, e em 1984 nos Estados Unidos foram criadas forças-tarefas para avaliar procedimentos utilizados na detecção de doenças em indivíduos assintomáticos. As avaliações desses dois grupos se basearam principalmente na análise cuidadosa dos estudos mais importantes, pertinentes a cada procedimento, publicados na literatura científica. De acordo com as recomendações destes grupos, somente para três neoplasias malignas há evidências de benefícios do rastreamento: colo de útero (Papanicolaou), mama (mamografia) e colo-retal (pesquisa de sangue oculto nas fezes e reto-sigmoidoscopia). Consideraram não haver evidências suficientes para recomendar a inclusão ou exclusão dos seguintes procedimentos como rastreamento: auto-exame - câncer de mama e de pele; exame por profissional de saúde - câncer de pele e oral; toque retal - câncer de reto. Em relação à ultra-sonografia de abdômen para câncer de ovário, R-X de tórax para câncer de pulmão, dosagem sorológica de PSA (antígeno prostático específico) e ultra-sonografia transretal para câncer de próstata, as evidências indicam a não inclusão em rastreamentos.

Não obstante tais recomendações, parcelas crescentes da população vêm realizando exames para rastreamento de câncer e o número de exames realizados por cada indivíduo também tem aumentado de maneira significativa. Fenômeno semelhante tem ocorrido quanto a exames de rastreamento para outras doenças, como por exemplo teste ergométrico para insuficiência coronária, ultra-sonografia para aneurisma de aorta abdominal, densitometria óssea para osteoporose.

Como explicar o aumento da prática de screening, apesar de evidências tão limitadas de benefício? Uma das razões é o senso comum. Para pessoas leigas, e para a maioria dos médicos não estudiosos do tema, é difícil entender a ausência de benefício e, mais ainda, a possibilidade de que a realização de certos procedimentos seja deletéria para a saúde de pessoas assintomáticas. Por outro lado, interesses vinculados à indústria de equipamentos e aos grandes laboratórios farmacêuticos devem também contribuir para estimular a realização de exames por algumas técnicas. Indivíduos em geral são mais permeáveis a tais influências. Os médicos, entretanto, devem buscar maior clareza sobre os benefícios e as limitações da aplicação de determinados procedimentos e desta forma aconselhar adequadamente seus pacientes.

José Eluf-Neto

Victor Wünsch-Filho

Referências

• Last JM. A dictionary of epidemiology (3rd edition). New York: Oxford University Press, 1995.

• Stewart-Brown S. Screening could seriously damage your health (editorial). BMJ 1997; 314: 533-4.

• Morrison AS. Screening in chronic disease (2nd edition). New York: Oxford University Press, 1992.

• Canadian Task Force on the Periodic Health Examination. The periodic health examination. Can Med Assoc J 1979; 121: 1193-254.

• US Preventive Services Task force. Guide to clinical preventive services (2nd edition). Baltimore: Williams & Wilkins, 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jan 2001
  • Data do Fascículo
    Out 2000
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