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Avaliando o desempenho dos sistemas de saúde

Atualização

Economia da Saúde

AVALIANDO O DESEMPENHO DOS SISTEMAS DE SAÚDE

Esta seção da Revista normalmente relata avanços aplicáveis na prática clínica. Desta vez, o tema é bem distante daquela prática, sendo o da avaliação de um sistema de saúde como um todo, comparado com outros sistemas e com alguma estimação do que deve ser possível para o país alcançar. Dado que entre os objetivos de qualquer sistema de saúde se inclui aquele de melhorar o estado de saúde da população, e dado que a prática da medicina contribui para esse objetivo, levanta-se naturalmente a pergunta: o quê tem a ver uma avaliação sistêmica com os serviços de saúde e a prática médica?

A pergunta está em debate hoje porque no ano passado a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou, no Informe Mundial da Saúde, uma suposta avaliação dos sistemas de saúde dos 191 países membros. Sabe-se amplamente, graças às reações provocadas na imprensa no Brasil, que o ordenamento dos países foi muito questionado: somente 39% dos "dados" usados naquela avaliação foram gerados de informação detalhada obtida em nível nacional. Porém, fica a pergunta conceitual: serão os indicadores em si úteis para julgar o desempenho dos sistemas de saúde?

A OMS optou por cinco indicadores. Um é a expectativa de vida ao nascer, ajustada pelos anos vividos com incapacidade, a qual descreve o estado de saúde da população em média. Outro é uma estimação da variação ou desigualdade na probabilidade de um recém-nascido sobreviver até os cinco anos. Juntos, esses indicadores supostamente dão conta do objetivo principal de um sistema de saúde. Estima-se também um indicador composto de sete elementos, que descreve como o sistema trata os clientes que buscam atenção médica, outra vez em média. Ao lado deste, há um indicador da desigualdade no trato. Ambos definem o "trato" no sentido não-médico, quer dizer, se a dignidade e autonomia do paciente e a confidencialidade da informação obtida dele foram respeitadas, se houve atenção sem ter de esperar muito, se o local era limpo, a comida decente, etc. Finalmente, inclui-se um indicador que compara as contribuições financeiras das famílias para a saúde, considerando nestas, não somente o que elas pagam do bolso como também suas compras de seguro e suas contribuições pelos impostos destinados à saúde.

No que refere à prática médica é evidente que ela tem relações diferentes com o "sistema", segundo o tipo de indicador. Para os indicadores de "resposta" ou de trato ao paciente como consumidor e como ser humano, o sistema médico coincide exatamente com o sistema de saúde. É só no encontro entre o paciente e o prestador que tais características se mostram ou não. Portanto, a responsabilidade para esse componente de desempenho está plenamente nas mãos dos que trabalham no setor, sobretudo os profissionais de formação médica. Eles poderiam, em princípio, adotar os mesmos indicadores para avaliar seu trabalho nesses aspectos, além das outras maneiras em que eles mesmos julgam a qualidade do seu trabalho profissional.

O indicador de eqüidade no financiamento vai na outra direção. Corresponde a uma noção do "sistema de saúde" que inclui a maneira pela qual a receita pública é arrecadada, a estrutura da indústria de seguros, e os pagamentos diretos (de bolso) dos pacientes. O sistema clínico ou médico participa ao definir esses fluxos com base nos preços que cobra pela atenção e as negociações decorrentes com o governo e com as seguradoras. Porém, funciona principalmente como receptor dos recursos. Parece difícil, senão impossível, atribuir-lhe um peso específico de responsabilidade para o desempenho do sistema no sentido financeiro.

Quanto aos dois indicadores de saúde como tal, a situação é intermediária. O sistema de cuidados médicos tem uma óbvia responsabilidade para a saúde, mas está longe de determinar por si só, o estado de saúde da população. Debate-se muito o grau em que a medicina e a saúde pública contribuem para essa determinação. Há autores que acham sua participação muito limitada, frente aos enormes efeitos que se atribuem à renda e à educação. Outros defendem que se não fosse o tremendo progresso da medicina nos últimos dois séculos, o mundo não teria chegado aos níveis atuais de riqueza e de escolaridade que hoje tem. O que é aceito por todos, é que os médicos têm só uma influência parcial na saúde, em parte porque só tratam aqueles que se apresentam como pacientes. Dos que não procuram os serviços de saúde, alguns não precisam de atenção e devem sua boa saúde a outras causas. Outros não chegam porque não sabem que devem procurar o serviço ou porque não podem, sendo impedidos por barreiras de ignorância, pobreza, distância, medo ou insatisfação por encontros prévios com o sistema. Estes são simplesmente esquecidos pelos indicadores de resposta. Quanto ao indicador financeiro, não se tem idéia do que teriam gasto do bolso; só se registram suas contribuições pré-pagas através dos impostos e seguros.

Esta situação leva a duas perguntas de potencial interesse para o corpo médico. Primeiro, qual é a parte do estado de saúde (e sua desigualdade dentro da população), que é legítimo atribuir-lhes? Em outras palavras, qual a proporção explicada por fatores, tais como educação, renda, geografia, cultura etc., que caracterizam a sociedade mas não se identificam com o sistema de saúde, nem num sentido amplo? Segundo, como as medidas de desempenho, eficiência, qualidade e demais indicadores já utilizados no setor para avaliar o trabalho profissional se relacionam com os indicadores de resultado final ou aquela parte do resultado devido ao trabalho médico?

A OMS oferece uma resposta simplificada à primeira pergunta. Por métodos estatísticos, trata de separar no resultado final os efeitos da educação e do gasto per capita em saúde, e atribui o resto ao sistema de saúde. Este método de distinguir o que é e o que não é responsabilidade do sistema, vem sendo criticado por várias vias. Faltam variáveis importantes, como por exemplo a geografia, que influi muito nos riscos de saúde, por exemplo por meio das doenças tropicais. A "fronteira" ou referência com a qual se comparam os países pode descrever as possibilidades dos países ricos, com sistemas de saúde desenvolvidos e bons níveis de saúde. Nada se diz da rapidez com que um país mais atrasado pode se aproximar daquela fronteira, levando em conta não somente seus indicadores atuais como também sua história de como chegou a tal ponto. Tampouco se consideram as dificuldades políticas e culturais para efetuar mudanças profundas no sistema e na sociedade, somente as limitações financeiras. E assim por diante.

Para o sistema de saúde funcionar, não há necessidade de responder a esta pergunta. O esforço individual e a qualidade do trabalho podem ser os mesmos se os cuidados médicos dão conta de 30% do resultado em saúde, ou somente 3%. A pergunta tem importância somente para a decisão social de como dirigir os esforços para melhorar a saúde — destinar mais recursos para o sistema de saúde, ou mais para outros fatores que influem na saúde com maior impacto relativo ao gasto? Dado que esses outros fatores são múltiplos e seus resultados ainda mais difíceis de atribuir, não é de se surpreender que não haja resposta clara a esta questão, nem uma clara idéia de como proceder.

É diferente com a segunda pergunta. A profissão médica se avalia internamente de várias maneiras, e é avaliada por terceiros com respeito à qualidade, uso de recursos, satisfação dos usuários, e outros indicadores de interesse do governo, de uma empresa de seguros, ou de um grupo de pacientes. Os indicadores utilizados tendem a ser locais (um médico ou prática de grupo, um hospital, etc.) e específicos (mortalidade hospitalar, tempo de espera, cumprimento com protocolos estabelecidos, custo unitário, etc.). Um bom resultado segundo qualquer desses indicadores deve, em princípio, contribuir para um bom resultado a um nível mais alto e abstrato de desempenho. Porém, até agora há pouca pesquisa nesta área e não existe consenso sobre as supostas conexões. O método seguido pela OMS não entra neste campo por se definir a um nível de resultados finais sem vínculos com os indicadores intermediários ou de processo. Fica aberto um campo de debate e pesquisa para definir qual a relevância dos indicadores sistêmicos para os profissionais médicos, assim como estabelecer se a avaliação mais local e detalhada pode ser somada e interpretada para apreciar o sistema como um todo.

PHILIP MUSGROVE

Referência

OMS. Informe Mundial da Saúde. Sistemas de saúde - melhorando o desempenho. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2001
  • Data do Fascículo
    Set 2001
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