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Cistatina C: um novo marcador de função renal em crianças

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Pediatria

CISTATINA C: UM NOVO MARCADOR DE FUNÇÃO RENAL EM CRIANÇAS

A avaliação da função renal em crianças nem sempre constitui tarefa fácil devido a dificuldades inerentes ao processo de coleta de urina e de sangue. Além disso, tanto a creatinina sérica, quanto o clearence de creatinina em urina de 24 horas apresentam inconvenientes conhecidos. A concentração de creatinina no soro depende da quantidade de proteínas existente na dieta, da massa muscular do indivíduo, e só se eleva significativamente quando o comprometimento da função renal encontra-se em estágio avançado. Desta forma, todos os parâmetros aferidos devem ser corrigidos de acordo com a massa corpórea e a estatura da criança. Um outro fator de interferência ocorre em recém-nascidos durante os primeiros dias de vida, pois os valores de creatinina da criança sofrem interferência dos valores de creatinina maternos.

Tendo em vista as dificuldades para a avaliação da função renal, principalmente em recém-nascidos e lactentes jovens, houve nos últimos anos um grande esforço para o desenvolvimento de testes cada vez mais sensíveis e específicos. A cistatina C constitui uma das substâncias mais promissoras para este fim. Trata-se de uma proteína não glicosilada de baixo peso molecular (13kda), pertencente à família das cisteinoproteases, enzimas proteolíticas envolvidas em uma série de processos patológicos, tais como os estados de inflamação, doenças neurológicas, invasão tumoral, formação de metástases. As proteases são cruciais para o bom funcionamento do metabolismo celular, para a degradação do colágeno, e a clivagem de proteínas precursoras. É produzida por lisossomos das células nucleadas do organismo, e está presente em diversos fluidos biológicos (soro, líquido seminal, líquido cefalorraquidiano). A cistatina C é livremente filtrada pelos glomérulos renais devido ao seu baixo peso molecular, sendo a seguir quase que totalmente reabsorvida e metabolizada nos túbulos proximais. Ela não sofre interferência de outras proteínas de baixo peso molecular, tais como a RBP (proteína ligada ao retinol), e a B2 microglobulina, que também são utilizadas para a avaliação da capacidade de filtração glomerular em vigência de processos de desnutrição grave, inflamatórios e infecciosos.

A quantidade de cistatina produzida pelo organismo é constante, estando a concentração periférica na dependência exclusiva do ritmo de filtração glomerular. Estas são as razões pelas quais a cistatina foi recentemente proposta como um marcador endógeno de função renal muito mais sensível que a creatinina, permitindo que se observe alterações da filtração glomerular de maneira mais precoce que o clearance de creatinina. Trata-se de um excelente teste de triagem e acompanhamento de pacientes com prejuízo da função renal, uma vez que a cistatina C encontra-se alterada tanto nas glomerulopatias, quanto nas tubulopatias. Estudos em pacientes transplantados, ou ainda em pacientes hepatopatas, comprovam esta eficácia. Com relação ao uso da cistatina C no período antenatal e neonatal, os dados de literatura sugerem que os níveis séricos de cistatina dos recém-nascidos não apresentam correlação com o nível de suas respectivas mães, podendo conseqüentemente funcionar como marcador de função renal desde o nascimento. Existe ainda a possibilidade de avaliação da cistatina urinária fetal que parece funcionar como fator preditivo de função renal pós-natal em fetos que apresentam uropatias obstrutivas bilaterais. Trata-se, portanto, de um instrumento valioso para a medicina fetal, uma vez que a cistatina urinária fetal apresenta uma maior correlação com a função renal pós-natal quando comparada à B2 microglobulina. Ainda dentro da importância perinatal da cistatina, em gestantes com quadro clínico de pré-eclâmpsia grave, a cistatina sérica materna funciona como marcador de prognóstico, pois avalia de maneira mais fidedigna a função renal materna, fator fundamental na determinação da gravidade do quadro de eclâmpsia.

Muito embora os primeiros estudos sobre a cistatina C datem de 1985, apenas recentemente o teste laboratorial foi comercializado e encontra-se disponível pelas técnicas automatizadas de imunonefelometria e imunoturbidimetria, ambas muito rápidas e sensíveis, que podem e devem ser incluídas nas rotinas dos laboratórios clínicos que atendem todos os tipos de pacientes, sobretudo crianças. A dosagem de cistatina C pode ser feita tanto em soro, quanto em plasma com volumes bastante reduzidos (25 microlitros). Este exame não sofre interferência do pigmento amarelo encontrado em soros de pacientes muito ictéricos, no entanto, a cistatina C pode sofrer alterações em vigência de lipemia e hemólise intensas. A literatura aponta que apenas a metil prednisolona aumenta os níveis de cistatina C, enquanto que a ciclosporina causa sua diminuição. Alguns estudos com casuística significativa foram conduzidos com o objetivo de estabelecer os valo res de referência para as diferentes faixas etárias e para ambos os sexos. Verificou-se que os valores da cistatina sérica distribuem-se de acordo com uma curva de Gauss, e sofrem apenas pequenas alterações de acordo com o sexo e a faixa etária, o mesmo ocorrendo em adolescentes do sexo masculino ou feminino, ou em mulheres que usam métodos contraceptivos, reposição hormonal, ou ainda que estejam em menopausa. No entanto, a partir dos 60 anos de idade, ocorre um aumento significativo da cistatina C devido a uma queda da função renal causada pelo envelhecimento.

No final da gestação a cistatina sérica fetal varia de 0,64 a 2,30 mg/l. Ao nascimento, os valores vão de 1,17 a 3,06 mg/l, valores estes que diminuem entre o terceiro e o quinto dias de vida, não existindo correlação com os níveis maternos. A seguir, a cistatina continua a cair de maneira mais acentuada até o quarto mês de vida, e mais lentamente até atingir valores estáveis aos 12 meses de idade (0,7 a 1,38 mg/l). Os valores de referência preconizados são de 0,75 +/- 0,089 mg/l de 1 a 19 anos; 0,74 +/- 0,10 mg/l para o sexo masculino na faixa etária entre 20 e 59 anos, e 0,65+/- 0,085 mg/l para o sexo feminino na faixa etária entre 20 e 59 anos. Finalmente, os valores relatados são de 0,83+/- 0,103 mg/l a partir de 60 anos.

Comentário

Existem poucos estudos na literatura que avaliam a cistatina C em crianças. No entanto, ela tem sido considerada um marcador de função renal muito promissor, uma vez que independe da idade, do sexo, de fatores maternos (no caso de recém-nascidos), fatores nutricionais, massa corpórea e estatura. Além disso, pode ser avaliada de maneira rápida, automatizada, sensível e específica, dependendo apenas de pequenos volumes de soro ou plasma, o que constitui uma indiscutível vantagem na faixa etária pediátrica.

THELMA SUELY OKAY

Referências

1. Bokenkamp A, Domanetzki M, Zinck R, Schumann G, Byrd D, Brodehl J. Cystatin C: a new marker of glomerular filtration rate in children independent of age and height. Pediatrics 1998; 101(5):875-81.

2. Bokenkamp A, Dieterich C, Dressler F, Muhlhaus K, Gembruch U, Bald R, et al. Fetal serum concentrations of cystatin C and beta-2-microglobulin as predictors of. postnatal kidney function. Am J Obstet Gynecol 2001; 185(2):468-75.

3. Cataldi L, Mussap M, Bertelli L, Ruzzante N, Fanos V, Plebani M. Cystatin C in healthy women at term pregnancy and their infant newborns: relationship between maternal and neonatal serum levels and reference values. Am J Perinatol 1999; 16(6):287-95.

4. Zitta S, Auprich M, Holzer H, Reibnegger G. Cystatin C concentration and glomerular filtration rate. Lancet 2001; 357(9256): 635.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2002
  • Data do Fascículo
    Jun 2002
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