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Fibromialgia: evidências de um substrato neurofisiológico

Atualização

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FIBROMIALGIA: EVIDÊNCIAS DE UM SUBSTRATO NEUROFISIOLÓGICO

A fibromialgia (FM) é uma síndrome crônica caracterizada por queixas dolorosas músculo-esqueléticas difusas e pela presença de pontos dolorosos em regiões anatomicamente bem determinadas. Anteriormente denominada fibrosite, a fibromialgia não era considerada uma entidade clinicamente bem definida até a década de 70, quando foram publicados os primeiros relatos sobre os distúrbios do sono, incluindo os achados polissonográficos, que deram margem a um aprofundamento na investigação etiopatogênica.

Trata-se de uma síndrome muito freqüente entre mulheres de 30 a 60 anos (há uma relação de 20 mulheres para cada homem) em que a principal característica é a amplificação dolorosa. A expressão "dói tudo" é uma constante na anamnese dessas pacientes. A característica clínica mais constante na fibromialgia é, sem dúvida, a presença de distúrbios do sono, bruxismo, sono não-reparador, interrompido, superficial. As pacientes invariavelmente referem que acordam cansadas.

Outros achados freqüentes são os estados depressivos, ansiedade, sintomas compatíveis com síndrome do pânico, fadiga (em especial pela manhã), déficit de memória, desatenção, obstipação ou diarréia (sintomas compatíveis com síndrome do cólon irritável), distúrbios funcionais da articulação temporo-mandibular (ATM) secundários ao bruxismo, boca seca, cefaléia tensional ou enxaqueca. O perfil psicológico dos pacientes está associado ao perfeccionismo, à autocrítica severa, à busca obsessiva do detalhe.

Em 1990, o Colégio Americano de Reu-matologia (ACR) definiu como critérios diagnósticos a persistência de queixas dolorosas difusas por um período maior do que três meses e a presença de dor em pelo menos 11 de 18 pontos anatomicamente padronizados1.

Considerou-se positivo um ponto quando era referido desconforto doloroso no local, após digitopressão com intensidade de força equivalente a 4 kgf/cm2 com o uso de dolorímetro. O diagnóstico fica bem definido com a positividade de 11 dos 18 chamados tender points (9 pontos de referência anatômica considerados bilateralmente):

• inserção dos músculos occipitais

• coluna cervical baixa (C5-C6)

• músculo trapézio

• borda medial da espinha da escápula

• quadrantes externos superiores das nádegas

• proeminências dos trocânteres maiores do fêmur

• segunda junção costocondral

• epicôndilo lateral do cotovelo

• coxim adiposo medial do joelho (junto ao tendão da pata de ganso)

O diagnóstico dessa síndrome é eminentemente clínico, não havendo alterações laboratoriais específicas. As provas de atividades inflamatórias são normais, bem como os exames de imagem. A polissonografia pode ser um instrumento útil em casos menos característicos, podendo detectar alterações típicas na arquitetura do sono, as chamadas intrusões alfa. Devem ser sempre excluídos, no entanto, fenômenos sistêmicos associados, como hiper ou hipotireoidismo, diabetes mellitus e outras patologias associadas a estados de fadiga e depressão. Esta pesquisa deve também ter como objetivo descartar a presença de doenças comumente associadas à fibromialgia, como lúpus erítematoso sistêmico, artrite reumatóide e síndrome de Sjögren.

Não se deve absolutamente confundir a FM com a Polimialgia Reumática, quadro de natureza inflamatória semelhante ao da arterite temporal, que ocorre em pacientes de faixa etária superior a 60 anos e que se caracteriza por dor muscular em cinturas escapular e pélvica, cursando com elevadas taxas de hemossedimentação.

O substrato neurológico funcional desta amplificação dolorosa está relacionado a um desequilíbrio entre mediadores do SNC2. Sabe-se que há uma redução relativa da atividade serotonérgica (analgésica), bem como uma hiperprodução de substância P (mediadora da dor).

Em 1978, foi demonstrado que anormalidades no metabolismo da serotonina são relevantes na fibromialgia. Observou-se uma relação entre a sintomatologia e baixos níveis séricos de triptofano. A análise do liquor em indivíduos com fibromialgia revela baixas concentrações do ácido 5-hidroxi-indol-acético (metabólito do triptofano), bem como um aumento dos níveis da substância P.

Os estudos sobre o sono em indivíduos fibromiálgicos datam de 1975, quando foi observado um padrão caracterizado pela intrusão de ondas alfa durante o estágio 4 do sono não-REM. Este padrão é referido pelos pacientes como um estado de vigília durante o sono, ou como um sono não restaurador e superficial, durante o qual ocorrem despertares freqüentes, provocados por estímulos leves. Essas alterações foram associadas à fadiga e dores generalizadas. A privação das fases profundas do sono não-REM em voluntários normais pode acarretar fadiga matinal e manifestações fibromiálgicas3.

O tratamento farmacológico da fibromialgia tem como base a indução de um sono de melhor qualidade, o que pode ser obtido com o uso de medicações como a ciclobenzaprina ou a amitriptilina em baixas doses. Inibidores da recaptação de serotonina, como a fluoxetina ou a sertralina podem ser associados ao esquema terapêutico com efeito aditivo. Analgésicos e relaxantes musculares como o carisoprodol podem ser úteis no controle dos sintomas, porém a resposta aos antiinflamatórios não-hormonais não costuma ser favorável e seu uso é desaconselhável. Os corticosteróides não fazem parte do arsenal terapêutico utilizado na FM.

O tratamento não-farmacológico não deve ser esquecido e tem papel crucial no controle dos sintomas. Exercícios aeróbicos visando um recondicionamento muscular, acupuntura, yoga e outras técnicas de relaxamento são comprovadamente eficazes. O acompanhamento psiquiátrico e eventualmente a psicoterapia podem ser úteis nos casos em que a depressão, a ansiedade ou o pânico forem proeminentes.

A principal arma para o sucesso terapêutico, entretanto, é um bom vínculo de confiança entre médico e paciente. O simples esclarecimento sobre a natureza dos distúrbios funcionais, com a conscientização de que os sintomas têm causas orgânicas e substrato neurológico, faz com que a aderência ao tratamento (medicamentoso ou não) seja completa.

WAGNER FELIPE DE SOUZA WEIDEBACH

Referências

1. Wolfe F, Smythe HA, Yunus MB, Bennett RM, Bombardier C, Goldenberg DL, et al. The American College of Rheumatology 1990 criteria for the classification of fibromyalgia: Report of the Multicenter Criteria Committee. Arthritis Rheum 1990; 33:160-72.

2. Weigent DA, Bradley LA, Blalock JE, Alarcon GA. Current concepts in the pathophysiology of abnormal pain perception in fibromyalgia. Am J Med Sci 1998; 315:405-12.

3. Roizenblatt S, Modlofsky H, Benedito-Silva AA, Tufik S. Alpha sleep characteristics in fibromyalgia. Arthritis Rheum 2001; 44:222-30.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jan 2003
  • Data do Fascículo
    Dez 2002
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