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Bioética e vulnerabilidade: o médico e o paciente

CORRESPONDÊNCIAS

Bioética e vulnerabilidade: o médico e o paciente

As reflexões bioéticas são abrangentes e devem sempre abordar todos os ângulos dos assuntos em foco, sejam eles de características mais emergentes, por conseguinte mais empolgantes, sejam eles mais tradicionais, portanto mais conservadores. Quando se trata da vida cotidiana, os aspectos emergentes e empolgantes cedem lugar a aspectos mais tradicionais e conservadores, mas nem por isso menos importantes ou que deixem de se constituir em dilemas a serem analisados.

O desenvolvimento dos conhecimentos científicos permitiu a aquisição de novas posturas em relação a inúmeros ângulos do comportamento entre os participantes da área de saúde. Como conseqüência ou produto dessas variações e com a introdução de análises baseadas em diversos e diferentes setores do pensamento humano, como a abordagem da doutrina bioética, a área de saúde se viu invadida por personagens cuja prioridade não é igual à preocupação dos profissionais formados nos conhecimentos teóricos e práticos das ciências da saúde. Assim, muitos aspectos do modo de agir do médico passaram a ser passíveis de discussão.

Apesar de muitos terem posições marcadas por dogmas, considerados, portanto, imutáveis, o passar do tempo com o advento de invenções e descobertas, levou o posicionamento ético a se modificar, ainda que muitas vezes sem que houvesse uma percepção acentuada. Isso se realça com a dificuldade que se tem de observar as ocorrências da rotina diária.

É sempre de hábito em cada situação considerar que a evolução do seu tempo é sempre mais rápida e mais profunda do que em tempos anteriores. Com isso, cada novidade traz a atenção para o novo, negligenciando-se o que ocorre no transcorrer da rotina diária. Como o novo é o emergente que modifica a rotina a vida cotidiana, mais conservadora e menos atraente tem dificuldades de receber atenção e muito mais ainda, com essa falta de atenção, receber uma contribuição para seu aperfeiçoamento e melhoria. A vida na Terra transformou-se em espinhosa à observação, contraditória em relação ao progresso das ciências e conflitante para quem distingue moral pregada e moral praticada1. A relação do médico com o seu paciente, antiga e tradicional rotina que ocorre todos os dias vem vivendo esses dilemas.

O desenvolvimento das tecnologias, a complexidade das aparelhagens, a dificuldade em ter o conhecimento dos seus manejos e o tempo necessário para adquirir a capacitação de como aplicá-los corretamente no que seja necessário, estabeleceram uma distância entre o médico e o seu paciente que vai aumentando quanto mais especializada é a capacitação do profissional. Muitas vezes escondido atrás da sua aparelhagem, o médico não se apresenta ao paciente.

Na realidade, a relação entre o médico e o seu paciente se faz por um processo de interação social, o qual ocorre dentro da sociedade através de um sistema que define o papel dos participantes, especifica o padrão de comportamento e fornece um conjunto de valores e orientação, em termos dos quais os membros interatuantes são motivados para ação. O êxito dessa situação interativa traduz-se na eficiência da atenção médica e está diretamente relacionado com as atividades, valores, conhecimentos e expectativas dos participantes. Isso porque, apesar de leiga nos aspectos científicos da saúde, a população não é passiva e completamente receptiva às determinações médicas. Tem a população seus próprios valores e seus padrões, que inúmeras vezes, mesmo não atendendo o que, seria desejável em uma análise racional ditada pelos conhecimentos técnicos científicos da medicina, são por ela, população, reconhecidos como corretos e válidos2.

Esses valores e padrões sobre a saúde pertencentes à cultura é que são os determinantes da ação que leva ao início do contato médico-cliente. Esse início é sempre provocado pelo paciente que toma a decisão de procurar o facultativo. Essa decisão não é simples, não só pelo reconhecimento de ter sua saúde abalada, como também por razões econômicas, não só em termos monetários, como também pela perturbação em sua rotina de vida diária e pela preocupação que esse fato causa. O paciente, ele mesmo, tem dificuldade em decidir se está ou não doente, e neste último caso qual a atitude a ser tomada2. Deve decidir se precisa de auxílio e onde procurar essa ajuda. A compreensão da doença por parte do leigo não é correta em termos científicos, pois ela depende de fatores biológicos, psicológicos, educacionais, econômicos, sociais e culturais. Todavia, qualquer que seja a percepção da condição de doente, normalmente é a pessoa, futuro paciente, que faz o primeiro diagnóstico e quem decide para solucionar seu problema2. Acontece não com pouca freqüência que esse primeiro momento, início da relação médico-paciente, seja, pelo menos para o paciente, angustiante e desagradável. Uma discussão procurando os direitos dos pacientes excluídos, forçando uma dura intervenção3, não deve ter sucesso, pois o problema não é econômico, é cultural.

Essa situação do paciente quando se encontra em vias de decidir qual o caminho a ser escolhido à procura de alívio para o seu sofrimento, seja ele da monta que for, esbarra tão logo com as dificuldades que a sociedade estabelece para que a atenção médica possa ser oferecida. De pronto a barreira de não poder exercer o direito de escolha se levanta. Sem dúvida, a não ser para uma pequena parcela da sociedade, a liberdade de decidir livremente, dentro de limites plausíveis, como e a quem se dirigir para a solução de seus problemas em nível de atenção médica não está ao alcance. A sociedade, mesmo tendo a preocupação de universalizar a atenção à saúde e oferecer atendimento nos episódios de doença, não tem se organizado para permitir que a decisão do paciente de escolher o médico que deseja possa ser realizada. Geralmente o paciente procura o médico que está ao seu alcance.

A sociedade é tolerante a essa situação, pois até os mais abnegados em procurar uma fórmula capaz de oferecer a possibilidade de escolher livremente o médico se defrontam com muitos e persistentes empecilhos. Não há dúvida de que não existe uma sociedade que possa de maneira justa oferecer a todos os seus cidadãos a mesma atenção à saúde. Por um princípio de justiça, tal fato deveria ocorrer. A relação oferta e demanda, de um lado a capacidade social de oferecer a atenção necessária e de outro a demanda cada vez mais exigente por essa atenção, em que a oferta é delimitada pela possibilidade econômica, enquanto a demanda é dependente dessa mesma oferta, não alcança um equilíbrio desejado. Em algumas ocasiões, a oferta de uma variante dessa relação se faz de modo inadequado. É o caso de quando a sociedade, ao oferecer uma quantidade de médicos acima do necessário, acirra a competição criando a comercialização da mão-de-obra. Como esse acréscimo não vem acompanhado de um mercado capacitado para absorvê-lo se produz uma injustiça com os novos profissionais. Na competição no mercado de trabalho, o profissional procura se especializar no novo, no empolgante, levando mais tempo para sua formação, onerando a sociedade e geralmente se afastando do cotidiano responsável pela maioria das necessidades de atenção. Na impossibilidade de fazer justiça, a sociedade se torna tolerante sem se preocupar em discutir essas dificuldades. Não se procura o melhor em relação aos valores humanos, mas sim o possível em termos econômicos. Suprime-se a ética se esquecendo a discussão.

Dentro dessa perspectiva, outros fatores, entretanto, acontecem produzindo uma maior deterioração na relação entre o médico e o paciente. Muitas vezes o médico procura em prazo pequeno atender um número maior de clientes, outras vezes em razão da falta de tempo ou de organização esquece algum paciente por longo tempo. Dependente de múltiplas atividades que pretende exercer ao mesmo tempo, não tem a preocupação com o horário estabelecido. Coloca-se nesses momentos acima do bem e do mal entendendo que ao paciente só resta esperar. Essa espera é agonizante. Agonia que passa a irritação, quando por razões várias, seja de amizade ou de compromissos financeiros, o médico discrimina na escolha de quem primeiro deve ser atendido. O paciente não vai à procura do médico por vontade própria, sequer para satisfazer um desejo, vai porque tem uma necessidade premente de socorro. Nessa ânsia pelo socorro e nessa espera pelo atendimento é que acontece o contato das duas partes. A solidariedade social da espera promulgada em gabinetes políticos, também, é evidenciada nos consultórios e ambulatórios médicos de todos os níveis.

Muitos dos que se dedicam às análises feitas através da doutrina bioética, ou que se dizem a elas se dedicarem, não têm a preocupação com os assuntos do cotidiano. Poucos procuram estudar o que acontece no dia-a-dia. Fundamentalmente o que ocorre no dia a dia é a relação do médico com seu paciente. Esse dilema bioético nada tem de atrativo na sua discussão pois seus imperativos morais se distanciam não só em relação aos interesses dos participantes como, também, daqueles que por ele poderiam estar interessados e para ele dar uma participação proveitosa. Os princípios bioéticos destinados à clínica dificilmente podem ser atendidos.

No contexto do dia-a-dia, é difícil imaginar um consentimento informado para um paciente autônomo, quando falta a esse paciente o primeiro de seus direitos, o de escolher o que melhor lhe convier para tratar de seus males. Impossibilitado, se vê também constrangido a se sujeitar à rotina no atendimento que, raras vezes, é seguida com a preocupação de verificar suas dificuldades. Nada resta senão concordar com o que lhe é oferecido. Não existe nessas situações a liberdade de optar pelo que deseja, a autonomia do paciente é abandonada4. Ao paciente nada mais resta que aceitar o que lhe é oferecido.

Ambas as partes, o médico e o paciente, são vulneráveis nessa relação. E a sociedade como um todo talvez seja a maior responsável, pois mesmo com o desejo de revolver esse dilema, até agora não conseguiu atingir o seu desiderato.

Affonso Renato Meira

Professor-Emérito da Faculdade de Medicina

da Universidade São Paulo

Referências

1. Berlinguer, G. Questões de Vida: ética, ciência, saúde. Londrina: APCE-HUCITEC-CEBES; 1993.

2. Meira AR. Relação médico- paciente. O Estado de São Paulo, p.8, São Paulo, 28 jun 1976.

3. Garrafa V, Porto D. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. O Mundo da Saúde 2002; 26(1):6-15.

4. Pessini L, Barchifontaine CP. Problemas atuais de Bioética. 4° ed . São Paulo: Editora Loyola; 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2004
  • Data do Fascículo
    Set 2004
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