Acessibilidade / Reportar erro

Apesar das evidências, por que persiste a variação nos cuidados ao paciente cirúrgico?

PANORAMA INTERNACIONAL

MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS

Apesar das evidências, por que persiste a variação nos cuidados ao paciente cirúrgico?

Wanderley M. Bernardo; Fábio B. Jatene; Moacyr C. Nobre

São abundantes, por exemplo, as evidências sobre o melhor cuidado perioperatório na cirurgia colorretal. As medidas específicas que podem ser usadas na rotina incluem: nenhum preparo intestinal, analgesia/anestesia epidural por um a dois dias, nenhuma descompressão gástrica por sonda, restrição de infusão endovenosa de fluidos, e ingestão oral livre desde o primeiro dia1.

Utilizando-se dessas medidas, Survey1, envolvendo cirurgiões de vários centros de cirurgia digestiva de cinco países do norte europeu (Escócia, Holanda, Alemanha, Suécia e Noruega), pôde confrontar a prática perioperatória na cirurgia do câncer colorretal nesses locais, frente às melhores evidências disponíveis. Nesse estudo, apresentava-se aos cirurgiões um cenário clínico hipotético, de um paciente de 70 anos, com câncer de cólon, submetido à laparotomia eletiva e ressecção colônica, e perguntava-se qual a conduta com relação ao preparo intestinal, analgesia, sonda nasogástrica, infusão de fluidos e realimentação.

Como resultado verificou-se que as rotinas perioperatórias no tratamento do câncer colorretal no norte da Europa diferem substancialmente da prática baseada em evidências. Os pacientes são submetidos uniformemente à desagradável, desnecessária e prejudicial prática do preparo intestinal e a jejum com dependência exagerada de fluidos intravenosos, no perioperatório. Para muitos pacientes, a situação é ainda mais agravada quando a sonda nasogástrica e o jejum são mantidos por muito tempo, fluidos intravenosos são administrados irrestritamente e um bloqueio adequado de dor não é realizado.

Comentário

A cirurgia e a medicina baseada em evidências têm tido relações turbulentas há algum tempo. Há amplo reconhecimento que muito da prática corrente não conta com conhecimento ou educação advindos de evidências médicas sólidas2. Além disso, a aplicação de métodos de pesquisa, como ensaios clínicos randomizados e controlados, para responder questões cirúrgicas é quase sempre difícil ou impraticável. No entanto, existe uma crescente uniformidade na opinião da comunidade cirúrgica de que a qualidade da evidência que suporta os cuidados cirúrgicos necessita ser melhorada e de que necessitamos de métodos inovadores para disseminar a evidência na prática2.

A cirurgia tem algumas limitações, quando se trata da pesquisa em saúde:

  • Ao contrário dos ensaios sobre novos tratamentos com drogas, a pesquisa em procedimentos cirúrgicos não tem fonte de financiamento natural;

  • A falta de mecanismos reguladores estritos para a aprovação de procedimentos cirúrgicos e dispositivos novos, em muitos países, leva ao entendimento de que ensaios clínicos randomizados não são necessários para novas intervenções cirúrgicas serem adotadas;

  • Como os procedimentos cirúrgicos e os cuidados perioperatórios são providos por diferentes cirurgiões e hospitais, estes variam enormemente, levando a um viés de experiência, o que pode tornar um válido ensaio clínico randomizado impossível de ser realizado em várias circunstâncias, ou em outras situações limitar a generalização dos resultados para outras localidades que prestam cuidado em saúde;

  • Há ainda nos ensaios cirúrgicos tradicionais a limitação quanto ao cegamento, bem como excessiva migração de pacientes entre os grupos de intervenção, comprometendo a validade dos mesmos.

As mudanças imediatas necessárias para se melhorar a qualidade dos cuidados cirúrgicos não são oriundas da descoberta de novos conhecimentos, mas estão relacionadas com a integração do que nós já sabemos, na prática diária. Traduzir a melhor evidência na prática cirúrgica requer o envolvimento dos cirurgiões, em uma atitude centrada no contexto do cuidado à saúde do paciente, e associada à utilização de uma variedade de técnicas educativas2.

Evidências, em vários países, de intervenções educativas, com análise de resultados antes e depois, mostram que o comportamento dos cirurgiões pode ser mudado e a qualidade dos cuidados cirúrgicos pode ser melhorada. Por exemplo, intervenções educativas na Noruega no ano de 1994 levaram a um melhor resultado no tratamento do câncer de reto, com redução na recidiva local de 28% para 8%, e aumento na sobrevida de cinco anos, de 55% para 71%2. Nos EUA intervenções também de realimentação e educativas reduziram a mortalidade na cirurgia coronariana em 24%2.

O sucesso de programas para melhoria nos cuidados cirúrgicos está no engajamento individual de cirurgiões em nível local e regional, por meio do desenvolvimento e monitoramento de indicadores de qualidade em saúde, da pesquisa e da criação de comunidades regionais de prática. Essas intervenções inovadoras, unindo os cirurgiões, podem requerer investimentos substanciais, mas serão eficazes. Ao mesmo tempo, deve-se trabalhar no desenvolvimento de um conteúdo sólido da cirurgia baseada em evidências, por meio de ensaios randomizados controlados baseados na experiência3.

Referências

1. Lassen K, Hannemann P, Ljungqvist O, Fearon K, Dejong CH, Von Meyenfeldt MF, et al. Patterns in current perioperative practice: survey of colorectal surgeons in five northern European countries. BMJ 2005; 330:1420-1.

2. Urbach DR, Baxter NN. Reducing variation in surgical care. BMJ 2005; 330:1401-2.

3. Devereaux PJ, Bhandari M, Clarke M, Montori VM, Cook DJ, Yusuf S, et al. Need for expertise based randomised controlled trials. BMJ 2005; 330:88.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Ago 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2005
Associação Médica Brasileira R. São Carlos do Pinhal, 324, 01333-903 São Paulo SP - Brazil, Tel: +55 11 3178-6800, Fax: +55 11 3178-6816 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ramb@amb.org.br