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Limitação e suspensão de tratamento: é hora de agir

EDITORIAL

Limitação e suspensão de tratamento. É hora de agir

Está em trâmite no Conselho Federal de Medicina uma minuta de resolução que permite ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos de prolongamento da vida do doente em fase terminal.

Talvez em nenhum outro cenário da prática médica esta resolução seja tão importante como na UTI. Para uma idéia, a limitação ou suspensão de tratamentos ocorreu em 76% dos óbitos em 37 UTIs de 17 países da Europa1, chegando a mais de 80% dos óbitos no Estados Unidos2.

No Brasil, embora até o momento esta prática não esteja regulamentada, ocorre em UTIs, mas a freqüência reportada é mais baixa, menos de um terço dos casos3,4. Interessante que, provavelmente em função desta falta de regulamentação, a maioria dos intensivistas do Brasil participantes de um estudo internacional aplicaria ordens verbais num cenário hipotético de suspensão do tratamento5.

Esta situação de ordem verbal pode conflitar com um ponto muito importante da resolução, que é o respeito à vontade do paciente ou, na impossibilidade, à do seu representante legal. Neste momento é fundamental esclarecer ao paciente e/ou aos seus representantes legais as modalidades terapêuticas disponíveis para a situação e registrar a decisão em prontuário. Recentemente, demonstramos que as famílias têm uma compreensão inadequada do prognóstico e que o grau de insatisfação com a UTI aumenta na medida em que familiares ou acompanhantes têm uma expectativa errada do prognóstico do paciente em tratamento6.

É certo que nenhum escore prognóstico dos comumente usados em UTI mostrou-se calibrado o bastante para predizer com exatidão o que vai ocorrer com o paciente. E mais, mesmo em situações clínicas extremas, como um paciente com câncer metástico e com uma complicação clínica que necessite cuidados intensivos, pode-se esperar uma sobrevida de um ano em um a cada seis pacientes7. Este achado não é surpreendente visto que prognosticar é diferente de prever.

Prognosticar um paciente na admissão à UTI é muito díficil. O impacto de triagem na entrada da UTI é evidente. Pacientes cuja internação na UTI é negada têm uma mortalidade maior, notadamente com quadros de gravidade intermediária8. No entanto, após três a quatro dias, a concordância sobre o prognóstico é quase total entre membros da equipe cuidadora e mesmo familiares9. Nesta hora, a decisão sobre a suspensão ou limitação do tratamento fica muito mais fácil.

Num país com a necessidade de leitos de UTI como o nosso, a proposta em discussão no Conselho Federal de Medicina é fundamental. A priori, limitar o acesso de um paciente à UTI com base somente na primeira impressão prognóstica é incorreto. No entanto, sabe-se que pacientes sem prognóstico acabam tendo um tempo de permanência maior e consumindo mais recursos9. A presente proposta abre a possibilidade de um "teste terapêutico", que deve ser previamente discutido com familiares, representantes e médicos. Certamente ao cabo de um teste assim é possível definir melhor o prognóstico e então discutir a limitação ou suspensão de tratamento.

Este tipo de regulação é fundamental e bem-vindo. Nos últimos dez anos, vários países da Europa modificaram suas leis por entender que a questão de cuidados terminais é fundamental para a sociedade10. É preciso ter claro que esta resolução permite a transição para um plano de cuidados paliativos. Novamente num cenário hipotético, a forma de tratamento que teria menor indicação de limitação ou suspensão na visão de participantes num Congresso Brasileiro de Terapia Intensiva seria a sedação e analgesia11.

Esta resolução abre espaço para decisões que nem sempre são claras e bem definidas. Nesta era de evidências, é importante citar que a possibilidade de uma consulta ética sobre interrupção de tratamento, avaliada de forma randomizada em diferentes UTIs americanas, não gerou diferenças na mortalidade global, mas sim uma redução significativa no tempo de terapia intensiva e na utilização de ventilação mecânica como suporte12.

Outras especialidades se deparam com este problema freqüentemente, não sendo um privilégio dos intensivistas. Para o bem de nossos pacientes, está na hora de toda a classe médica discutir e apoiar o Conselho Federal de Medicina na aprovação desta resolução.

Daniel Deheinzelin

Referências

1. Sprung CL, Cohen SL, Sjokvist P, Baras M, Bulow HH, Hovilehto S, et al. For the Ethicus Study Group. End-of-life practices in european intensive care units. The Ethicus Study. JAMA. 2003;290:790-7.

2. Prendergast TJ, Claessens MT, Luce JM. A national survey of end-of-life care for critically ill patients. Am J Respir Crit Care Med. 1998,158:1163-7.

3. Moritz RD, Pamplona F. Avaliação da recusa ou suspenção de tratamentos considerados fúteis ou inúteis em UTI . Rev Bras Ter Intensiva 2003;15:40-4.

4. Carvalho PRA, Rocha TS, Santo AE, Lago P. Modos de morrer na UTI pediátrica de um hospital terciário. Rev Assoc Med Bras. 2001;47:325-31.

5. Yaguchi A, Truog RD, Curtis JR, Luce JM, Levy MM, Mélot C, Vincent JL. International differences in end-of-life attitudes in the intensive care unit results of a survey. Arch Intern Med. 2005;165:1970-5.

6. Fumis RLL, Nishimoto IN, Deheinzelin D. Measuring satisfaction in family members of critically ill cancer patients in Brazil. Intensive Care Med. 2006;32:124–8.

7. Caruso P, Ferreira AC, Titton LN, Laurienzo CF, Maia DS, Carnieli DS, et al. ICU and one-year survival of patients with metastático solid cancer admitted to the intensive care unit. Proc Am Thorac Soc. 2006;3:A299.

8. Joynt GM, Gomersall CD, Tan P, Lee A, Cheng CA, Wong EL. Prospective evaluation of patients refused admission to an intensive care unit: triage, futility and outcome. Intensive Care Med. 2001;27:1459-65.

9. A controlled trial to improve care for seriously ill hospitalized patients. The study to understand prognoses and preferences for outcomes and risks of treatments (SUPPORT). The SUPPORT Principal Investigators. JAMA. 1995;274:1591-8.

10. Fassier T, Lautrette A, Ciroldi M, Azoulay E. Care at the end of life in critically ill patients: the European perspective. Curr Opin Crit Care. 2005;11:616-23.

11. Moritz RD, Dantas A, Matos JD, Machado FO. The attitudes of brazilian intensive care physicians towards the decision of withdrawal or withholding of treatments. Rev Bras Ter. Intens. 2001;13:21-7.

12. Schneiderman LJ, Gilmer T, Teetzel HD, Dugan DO, Blustein J, Cranford R, et al. Effect of ethics consultations on nonbeneficial life-sustaining treatments in the intensive care setting: a randomized controlled trial. JAMA. 2003;290:1166-72.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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