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A prevenção da distanásia nas legislações brasileira e francesa

Preventive measures against medical futility in brazilian and french legislations

Resumos

O texto pretende trazer uma breve reflexão bioética sobre as legislações brasileira e francesa incidentes sobre a distanásia.

Bioética; Distanásia; Consentimento esclarecido


The text intends to encourage a brief bioethical discussion about medical futility as currently found in Brazilian and French legislations.

Bioethics; Medical futility; Informed consent


PONTO DE VISTA

A prevenção da distanásia nas legislações brasileira e francesa

Preventive measures against medical futility in brazilian and french legislations

Paulo Antonio de Carvalho Fortes* * Correspondência: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Av. Dr. Arnaldo, 715 - Cerqueira César São Paulo/SP Cep: 01246-904 pacfusp@usp.br

Trabalho realizado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo

RESUMO

O texto pretende trazer uma breve reflexão bioética sobre as legislações brasileira e francesa incidentes sobre a distanásia.

Unitermos: Bioética. Distanásia. Consentimento esclarecido.

Summary

The text intends to encourage a brief bioethical discussion about medical futility as currently found in Brazilian and French legislations.

Key words: Bioethics. Medical futility. Informed consent.

INTRODUÇÃO

No final de 2006, o Conselho Federal de Medicina emitiu a Resolução 1.805/2006, que permite ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, respeitando a vontade da pessoa ou de seu representante legal. A Resolução vem contribuir para a reflexão sobre uma futura normatização legislativa sobre o tema, importante tanto para a atividade médica como para a sociedade brasileira.

A bioética, nas últimas décadas, vem discutindo sobre quais devem ser os limites de intervenção necessária e prudente sobre o indivíduo para se evitar a distanásia, lembrando-se que o avanço tecnológico e científico na medicina e nas ciências da saúde aumentou o poder de intervenção sobre o ser humano e possibilitou o adiamento da morte, à custa, muitas vezes, de prolongado e desnecessário sofrimento para os indivíduos e suas famílias.

Há uma tendência marcante na literatura bioética que se contrapõe a práticas distanásicas na fase da terminalidade da vida humana. Compreende-se a distanásia, conforme nos ensina PESSINI (2003)1, como ação, procedimento ou intervenção por parte da medicina que não consegue atingir seus objetivos, isto é, beneficiar o paciente, acabando, ao contrário, por prolongar de forma desnecessária seu processo de morte, levando sofrimento a ele e aos familiares. A distanásia é, portanto, a morte lenta, prolongada, com sofrimento e agonia.

Uma tendência a ver a vida de forma quantitativa e biologizada, investindo todos os recursos possíveis para estendê-la ao máximo, minimizando a qualidade dessa vida e negando a finitude da vida humana.

Sendo assim, as legislações brasileira e francesa vêm se colocando em relação a questões relacionadas à terminalidade da vida e às práticas distanásicas.

A LEGISLAÇÃO FRANCESA

O Código de Saúde Pública francês afirma que "toda pessoa doente tem o direito ao respeito de sua dignidade" (art. L1.110-2), não o perdendo por sua condição transitória ou permanente enquanto pessoa necessitada de cuidados de saúde.

A norma legal ainda expressa que "quando uma pessoa, em fase avançada ou terminal de uma afecção grave e incurável, qualquer que seja a causa, decide limitar ou parar todo o tratamento, o médico deve respeitar sua vontade após informá-la das conseqüências de sua escolha" (art.L1.111-10) e ainda, "quando o hospitalizado está no final de vida, ele é transferido ao seu domicílio se for vontade dele ou de sua família" (art. R1.112-63).

Torna-se claro o direito do paciente em fase terminal de se manifestar autonomamente, tendo sido devidamente esclarecido das conseqüências de sua decisão, impondo limites ou sendo contra o prolongamento de tratamentos, mesmo se opondo à opinião dos profissionais de saúde. Assim, contraria-se a tradicional postura médica paternalista, proclamando o direito ao respeito da vontade autônoma da pessoa em tomar decisões sobre sua vida e sobre o processo de morrer e o local de sua morte.

Medidas diagnósticas, terapêuticas ou preventivas devem ser utilizadas de forma a garantir o princípio da razoabilidade, não cabendo ação desproporcional que seja julgada inútil ou que vise somente a manter artificialmente a vida. Ações desta natureza podem ser suspensas ou não iniciadas, observando a qualidade de vida do doente. O art. L1.110-5 afirma que "os atos de prevenção, de investigação ou de cuidados não devem, de acordo ao estado dos conhecimentos médicos, levar a riscos desproporcionados em relação aos benefícios esperados. Estes atos não devem ser devidos a uma obstinação não razoável. Quando parecem inúteis, desproporcionais ou não tendo outro efeito que a manutenção artificial da vida, eles podem ser suspensos ou não ser empregados".

A norma assim valida que os médicos não sejam obrigados a sempre lançar mão de todos os meios científicos existentes, pois utilizar medidas extraordinárias, desproporcionais, que levam a mais sofrimentos do que benefícios potenciais, pode constituir-se em prática distanásica. E isto não significa que se esteja omitindo socorro ou cuidado aos pacientes, ou que se esteja desejando um fim eutanásico.

Quando a pessoa não estiver em condições de exprimir sua vontade, salvo em situação de urgência, nenhuma investigação ou tratamento pode ser realizado sem que a pessoa de confiança ou a família seja consultada.

Uma inovação aportada em 2002, pela lei sobre os "Direitos dos Doentes e a Qualidade do Sistema de Saúde", cujas normas foram incorporadas no Código de Saúde Pública, foi a aceitação do princípio da "pessoa de confiança" que pode ser designada por todos os adultos que venham a ser hospitalizados, sendo que esta será responsável, em caso de impossibilidade do titular, pelo julgamento substituto durante o período da estadia no estabelecimento.

Esta "pessoa de confiança" pode ser tanto um familiar como uma pessoa próxima ou seu médico de referência, devendo ser consultada no caso que a pessoa não esteja possibilitada de manifestar sua vontade ou de receber informação sobre seu estado. Esta designação deve ser feita por escrito e é revogável a todo momento2-3.

Fato importante, no sentido de ampliar a noção do cuidar, foi a inclusão na lei, como base da política francesa de saúde pública, da obrigatoriedade dos estabelecimentos de saúde incorporarem os cuidados paliativos no rol de suas atividades. O art. L1.110-9 afirma que "Toda pessoa doente cujo estado o requer tem direito a cuidados paliativos e a acompanhamento".

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cuidados paliativos constituem uma abordagem que objetiva a melhoria na qualidade de vida do paciente e de seus familiares diante de uma doença que ameaça a vida, mediante a prevenção e o alívio de sofrimento, a identificação precoce, a avaliação impecável e o tratamento da dor, assim como de problemas físicos, psicológicos e espirituais. São compreendidos como cuidados totais e ativos que objetivam melhorar a qualidade de vida dos pacientes em fase terminal, cuja doença não responde a propostas curativas. Devem ser realizados por equipes multidisciplinares, tanto em ambiente hospitalar como nos domicílios4.

Incentivando uma política de cuidados paliativos, a França se aproxima do que ocorre em outros países, como Inglaterra e EUA, que desde os anos 80 vêm desenvolvendo instituições fundamentadas no conceito hospice, atendendo pessoas em fase de terminalidade de vida, nas dimensões física, psíquica, social e espiritual5.

Ainda, no sentido de respeito à autonomia da pessoa, evitando a possibilidade de se lançar mão de decisões substitutivas feitas por terceiros, a norma prevê a possibilidade de que toda pessoa adulta possa redigir diretivas antecipadas para quando estiver fora de condições de exprimir sua vontade. Estas diretivas antecipadas indicam os desejos da pessoa relativos ao fim de sua vida, sendo concernentes às condições da limitação ou da parada de tratamento. As diretivas podem ser modificadas ou revogadas a qualquer momento por decisão do titular. Porém, quando estabelecidas e válidas por um prazo de três anos, ante um estado de inconsciência do paciente, devem ser levadas em conta pelos médicos. Podem ser conservadas pelo médico de referência ou, em caso de hospitalização, inseridas no prontuário (art. L1.111-11, R1.111-18 e R1.111-19).

A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

A norma constitucional brasileira afirma que "ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante" (art.5º, III). O novo Código Civil, em seu art.13, expressa que "Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes". Essa assertiva ainda é carregada de um viés paternalista, pois cabe aos profissionais médicos definirem o que é exigido, o que geralmente terá razões preponderantemente técnicas. Isto pode ser conflituoso com o disposto no art. 15, ao afirmar que "ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica".

Com relação à legislação existente no Estado de São Paulo (lei nº 10.241/99, que dispõe sobre "Direitos dos Usuários de Serviços de Saúde"), pode-se dizer que, se avançada com relação às normas nacionais e de outros estados da federação, ainda é bastante concisa com relação aos direitos dos pacientes na fase da terminalidade da vida. No Código de Saúde do Estado de São Paulo já encontramos disposição legal referente ao direito dos indivíduos poderem decidir livremente sobre a aceitação ou a recusa da prestação da assistência à saúde (art.3º, IV, b). Contudo, é com a lei 10.241/99 (art.2º) que se avança no sentido de garantir que o paciente possa evitar condutas distanásicas e decidir-se pelo local de sua morte:

XXIII - recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida;

XXIV - optar pelo local de morte.

Lembrando que a maioria das pessoas falece em ambiente hospitalar, e que nem sempre isto se dá pela vontade do paciente ou de sua família, o fato de dar garantia a elas de escolher onde querem morrer se torna muito significativo. Pois, isto tende a resgatar a reflexão sobre a morte e o processo de morrer, que, infelizmente, são temas omitidos não somente pelos profissionais de saúde como também pela sociedade atual.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

O conhecimento das normas legislativas francesas leva-nos à reflexão de possibilidades a serem futuramente incorporadas na legislação brasileira. Uma delas é a de que cada pessoa ao ser hospitalizada possa indicar um representante que seja de sua confiança para tomar decisões em seu lugar, realizando decisões substitutas, caso não esteja em condições de exercer sua vontade. Esta pessoa de confiança poderia se distinguir do representante legal aventado nas normas civis brasileiras, sendo, por exemplo, um médico, um parente distante ou mesmo um amigo.

Também nos parece interessante refletir sobre o direito à emissão de diretivas antecipadas, o que poderia ser um instrumento importante para se garantir a livre e esclarecida manifestação da vontade pessoal para situações de terminalidade de vida e para a utilização de procedimentos e tratamentos dolorosos, desproporcionais e custosos.

Fato também importante que deve ser considerado em nosso país é a introdução da obrigatoriedade de política de cuidados paliativos nos estabelecimentos de saúde. O Brasil ainda não possui uma política de saúde pública que reforce a importância dos cuidados paliativos, que sequer são mencionados em nossa legislação.

Finalizando, entendemos que a legislação possa refletir o estágio de discussão da sociedade sobre determinados temas e espelhar valores e princípios morais nela prevalentes, evitando que os pacientes sofram práticas distanásicas. Essas práticas muitas vezes se dão por receio dos profissionais de saúde de estarem infringindo normas legais, de medo de cometerem omissão de socorro ou eutanásia passiva, resultando em ações que causam dor e sofrimento indevido às pessoas e às famílias.

  • 1. Pessini L. Distanásia: até quando prolongar a vida. São Paulo: CUSC/Loyola; 2003.
  • 2. Ministère de la Sante et des solidarités. Médecin référent, médecin traitant: ce qui va changer. http://www.sante.gouv.fr/assurance_maladie (acessado em 23/Mar/2006).
  • 3. Ministère de la Santé et des solidarités. Comprendre la réforme/point par point. http://www.sante.gouv.fr/assurance_maladie (acessado em 23/Mar/2006).
  • 4. Guerra MAT. Bioética e cuidados paliativos na assistência à saúde. In Fortes PAC, Zoboli ELCP, organizadores. Bioética e saúde pública. São Paulo: Loyola, 2003. p.149-60.
  • *
    Correspondência: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Av. Dr. Arnaldo, 715 - Cerqueira César São Paulo/SP Cep: 01246-904
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007
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