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Complicações do parto e resultados perinatais em gestantes portadoras da doença de von Willebrand

Delivery complications and perinatal results in pregnant women with von Willebrand disease

Resumos

OBJETIVO: Analisar as complicações maternas associadas ao parto e puerpério, bem como os resultados perinatais, em gestantes portadoras da doença de von Willebrand. MÉTODOS: Foram analisados os prontuários de todas as gestantes com diagnóstico de doença de von Willebrand, cujo parto foi realizado nesta instituição no período compreendido entre março de 2001 e agosto de 2007. Foram investigadas características relativas à via de parto, incidência de complicações hemorrágicas no parto e no puerpério imediato, perfil dos exames laboratoriais maternos e resultados perinatais. As variáveis foram estudadas descritivamente, calculando-se freqüências absolutas e relativas, médias, medianas e desvios padrão. RESULTADOS: Foram revisadas 13 gestações em oito pacientes portadoras da doença. No período ocorreram 13.037 partos na instituição, perfazendo incidência de 0,1%. Seis pacientes (75%) apresentavam o tipo 1 da doença, e duas (25%) o tipo 2. No terceiro trimestre, a média da atividade do fator VIIIc foi de 98,5%. A cesárea foi realizada em nove casos (69%), cuja anestesia foi do tipo raquidiana em sete casos. Como complicação do parto, um caso evoluiu com descolamento prematuro da placenta e foi realizada a cesárea. Um caso apresentou sangramento no primeiro pós-parto, necessitando reposição do fator VIII. Em dois casos foi realizada a reposição profilática do fator VIII antes da cesárea. A restrição do crescimento fetal ocorreu em cinco casos (38,5%). O peso dos RNs apresentou média de 2676 gramas e um caso (7,8%) apresentou Apgar de 1º minuto inferior a sete. CONCLUSÃO: O parto em gestantes com diagnóstico de doença de von Willebrand tem evolução favorável quando cuidados são tomados procurando oferecer assistência específica. O crescimento fetal deve ser monitorizado nessas gestantes.

Doença de von Willebrand; Parto; Cesárea; Hemorragia pós-parto; Gestação; Assistência perinatal


OBJECTIVE: To study maternal complication associated to delivery and the puerperium period in pregnancies affected by von Willebrand's disease. METHODS: Chart data of all the pregnant women with diagnosis of von Willebrand disease were retrospectively reviewed. All cases with von Willebrand's disease that had given birth at this institution, between March 2001 and August 2007, were analyzed. The following variables were investigated: mode of delivery, hemorrhage complications during delivery and postpartum, maternal blood exams and perinatal results. Variables were studied descriptively, using absolute and relative frequencies, means, medians and standard deviations. RESULTS: 13 pregnancies of eight women with the disease were reviewed. During this sane period, there were 13,037 deliveries in the institution, resulting in an incidence of 0.1%. Six women (75%) were type 1 disease and, two (25%) were type 2. The last Factor VIIIc activity presented a mean value of 98.5%. A Cesarean section was performed in nine pregnancies, with epidural anesthesia in seven. Delivery complication occurred in two cases: one presented placental abruption and a Cesarean was performed. The other, presented postpartum hemorrhage in the first day and required reposition with factor VIII. Two cases received factor VIII before Cesarean section. Fetal growth restriction was detected in five pregnancies (38.5%). Mean birth weight was of 2676 grams and one case presented 1st minute Apgar score below seven. CONCLUSION: Delivery in patients with von Willebrand disease has a favorable evolution when specific assistance is provided. In these pregnancies,fetal growth should be monitored.

von Willebrand disease; Parturition; Cesarean section; Postpartum hemorrhage; Pregnancy; Perinatal care


ARTIGO ORIGINAL

Complicações do parto e resultados perinatais em gestantes portadoras da doença de von Willebrand

Delivery complications and perinatal results in pregnant women with von Willebrand disease

Roseli Mieko Yamamoto Nomura* * Correspondência: Rua General Canavarro, 280 – Bairro Campestre, CEP 09070440 - Santo André - SP, Tel: (11) 4991-2481 (11) 4221-8778, roseli.nomura@terra.com.br ; Ana Maria Kondo Igai; Marcelo Zugaib

RESUMO

OBJETIVO: Analisar as complicações maternas associadas ao parto e puerpério, bem como os resultados perinatais, em gestantes portadoras da doença de von Willebrand.

MÉTODOS: Foram analisados os prontuários de todas as gestantes com diagnóstico de doença de von Willebrand, cujo parto foi realizado nesta instituição no período compreendido entre março de 2001 e agosto de 2007. Foram investigadas características relativas à via de parto, incidência de complicações hemorrágicas no parto e no puerpério imediato, perfil dos exames laboratoriais maternos e resultados perinatais. As variáveis foram estudadas descritivamente, calculando-se freqüências absolutas e relativas, médias, medianas e desvios padrão.

RESULTADOS: Foram revisadas 13 gestações em oito pacientes portadoras da doença. No período ocorreram 13.037 partos na instituição, perfazendo incidência de 0,1%. Seis pacientes (75%) apresentavam o tipo 1 da doença, e duas (25%) o tipo 2. No terceiro trimestre, a média da atividade do fator VIIIc foi de 98,5%. A cesárea foi realizada em nove casos (69%), cuja anestesia foi do tipo raquidiana em sete casos. Como complicação do parto, um caso evoluiu com descolamento prematuro da placenta e foi realizada a cesárea. Um caso apresentou sangramento no primeiro pós-parto, necessitando reposição do fator VIII. Em dois casos foi realizada a reposição profilática do fator VIII antes da cesárea. A restrição do crescimento fetal ocorreu em cinco casos (38,5%). O peso dos RNs apresentou média de 2676 gramas e um caso (7,8%) apresentou Apgar de 1º minuto inferior a sete.

CONCLUSÃO: O parto em gestantes com diagnóstico de doença de von Willebrand tem evolução favorável quando cuidados são tomados procurando oferecer assistência específica. O crescimento fetal deve ser monitorizado nessas gestantes.

Unitermos: Doença de von Willebrand. Parto. Cesárea. Hemorragia pós-parto. Gestação. Assistência perinatal.

SUMMARY

OBJECTIVE: To study maternal complication associated to delivery and the puerperium period in pregnancies affected by von Willebrand's disease.

METHODS: Chart data of all the pregnant women with diagnosis of von Willebrand disease were retrospectively reviewed. All cases with von Willebrand's disease that had given birth at this institution, between March 2001 and August 2007, were analyzed. The following variables were investigated: mode of delivery, hemorrhage complications during delivery and postpartum, maternal blood exams and perinatal results. Variables were studied descriptively, using absolute and relative frequencies, means, medians and standard deviations.

RESULTS: 13 pregnancies of eight women with the disease were reviewed. During this sane period, there were 13,037 deliveries in the institution, resulting in an incidence of 0.1%. Six women (75%) were type 1 disease and, two (25%) were type 2. The last Factor VIIIc activity presented a mean value of 98.5%. A Cesarean section was performed in nine pregnancies, with epidural anesthesia in seven. Delivery complication occurred in two cases: one presented placental abruption and a Cesarean was performed. The other, presented postpartum hemorrhage in the first day and required reposition with factor VIII. Two cases received factor VIII before Cesarean section. Fetal growth restriction was detected in five pregnancies (38.5%). Mean birth weight was of 2676 grams and one case presented 1st minute Apgar score below seven.

CONCLUSION: Delivery in patients with von Willebrand disease has a favorable evolution when specific assistance is provided. In these pregnancies,fetal growth should be monitored.

Key words: von Willebrand disease. Parturition. Cesarean section. Postpartum hemorrhage. Pregnancy. Perinatal care.

INTRODUÇÃO

A doença de von Willebrand é um distúrbio genético que resulta da deficiência quantitativa ou disfunção do fator de von Willebrand, uma glicoproteína necessária para a adesão plaquetária ao endotélio lesado e também para a preservação do fator VIII na circulação. A prevalência da doença na população geral, analisada com base na identificação de pessoas com sintomas de sangramento, baixas concentrações do fator de Von Willebrand e história familiar positiva, tem sido relatada entre 0,6% e 1,3%.1 A doença foi descrita inicialmente em 1926 pelo pediatra Erik von Willebrand, que observou casos com manifestações hemorrágicas envolvendo superfícies de mucosas, ao contrário do que ocorria na hemofilia que envolvia as articulações2.

O fator VIII circula no plasma na forma de um complexo formado pela porção VIIIc ligada a grandes polímeros conhecidos como fator de von Willebrand, e uma fração menor, denominada antígeno, relacionado ao fator VIII (VIII Ag). O fator de von Willebrand é sintetizado pelas plaquetas e pelo endotélio vascular, e atua como carreador do fator VIIIc, sintetizado no fígado, que desempenha importante papel na adesão plaquetária e na formação do coágulo primário.

A doença pode ser classificada em três tipos: tipo 1 é a forma mais comum, ocorre em 60% a 80% dos casos, é doença hereditária autossômica dominante e caracteriza-se por apresentar deficiência quantitativa do fator de von Willebrand; tipo 2, caracterizada pelo defeito qualitativo do fator, ocorre em 10% a 30%, e cursa com ausência dos grandes polímeros somente no plasma (tipo 2b) ou no plasma e nas plaquetas (tipo 2a); e, tipo 3, de maior gravidade, ocorre em menos de 1% dos casos, cursa com ausência do fator e tem comportamento clínico semelhante à hemofilia A3.

Nos Estados Unidos, a prevalência da doença de von Willebrand na gestação é de 1:4.000 partos4. Nesse estudo, os autores relatam elevada mortalidade materna em mulheres com a doença (0,12%). Em estudo realizado em Belgrado (Sérvia e Montenegro), três a quatro gestantes a cada cinco mil partos são portadoras da doença5.

A gestante portadora da doença de von Willebrand deve ser aconselhada antes da concepção quanto aos riscos de sangramento durante a gestação e no pós-parto. Na gravidez, os níveis do fator de von Willebrand aumentam6, geralmente mantendo valores dentro do limite da normalidade (acima de 50 UI/dL), o que torna relativamente seguro o seguimento no pré-natal7,8. No final do terceiro trimestre, a gestante passa a apresentar supressão na atividade fibrinolítica e os fatores de coagulação tendem a aumentar, em especial o fibrinogênio, o que resulta em estado de hipercoagulabilidade e melhora na atividade do fator VIII nas portadoras da doença.

Entretanto, problemas relacionados a quadros hemorrágicos são descritos na gravidez, parto e puerpério de mulheres portadoras da doença9,10,11. O sangramento excessivo durante o parto tem sido objeto de preocupação, pois a doença de Von Willebrand favorece o sangramento prolongado após cirurgias. A hemorragia primária no pós-parto (puerpério imediato) é relatada em 59% dos casos, em estudo que analisa 102 gravidezes em portadoras da doença vs 21% no grupo controle12. Após o parto, a mulher retorna ao estado pré-gravídico e os problemas da coagulação podem se manifestar no puerpério. As mulheres com a doença de von Willebrand apresentam, com maior freqüência, loquiação com sangramento prolongado no puerpério. A hemorragia secundária pós-parto (no puerpério tardio) é descrita como complicação freqüente, ocorrendo em 20% a 30 % destas mulheres13,14,15.

Poucos estudos da literatura abordam, com detalhes, os resultados perinatais em gestações de mulheres portadoras da doença de von Willebrand. Alguns estudos relatam complicações hemorrágicas no recém-nascido, quando este é também portador da doença13,16. Os avanços na área de perinatologia, com melhor atendimento aos recém-nascidos prematuros e de baixo peso, têm proporcionado melhor assistência neonatal imediata e perinatal, o que pode contribuir para a obtenção de melhores resultados perinatais na atualidade. Entretanto, pouco tem sido abordado sobre o crescimento fetal e as condições do recém-nascido nessas gestações.

Os objetivos deste estudo consistem em analisar as complicações associadas ao parto, em gestantes portadoras da doença de von Willebrand, com ênfase na via de parto, na ocorrência de complicações hemorrágicas, tanto no momento do parto como no puerpério. A investigação de fatores associados aos resultados perinatais também é aspecto relevante, objeto do presente estudo.

MÉTODOS

Este trabalho foi desenvolvido na Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). A população incluiu gestantes com diagnóstico de doença de von Willebrand, acompanhadas no setor de Hemopatias e Gravidez do ambulatório de pré-natal, no período compreendido entre março de 2001 e agosto de 2007.

Este estudo é do tipo retrospectivo, transversal e descritivo. O projeto de pesquisa foi aprovado pela comissão de ética em pesquisa do HCFMUSP (Comissão de Ética de Análise de Projetos de Pesquisa – CAPPesq) .

Foram adotados os seguintes critérios de inclusão: diagnóstico de doença de von Willebrand prévio à gravidez e parto realizado na instituição. As mulheres portadoras da doença de von Willebrand, por ser afecção de manifestação precoce na vida, quando atingem idade reprodutiva já apresentam o diagnóstico estabelecido. A história clínica com relatos de menorragia, hematomas e problemas de coagulação17 sugerem o diagnóstico que foi confirmado previamente ao parto.

As pacientes foram selecionadas e os dados coletados incluíram informações obtidas por meio de consulta aos prontuários médicos e livros de registro de partos, arquivados na Seção de Arquivo Médico da instituição, bem como informações obtidas a partir da consulta do banco de dados informatizado da Clínica Obstétrica HCFMUSP.

Um banco de dados informatizado é utilizado na Clínica Obstétrica HCFMUSP desde 1º de março de 2001 e permite a coleta dos dados de todas as pacientes internadas, bem como os dados relacionados ao parto ou outros procedimentos cirúrgicos realizados no centro obstétrico. Este banco de dados armazena informações de cadastro das pacientes e os dados clínicos da parturiente e do recém-nascido. Os diagnósticos clínicos e obstétricos de todas as pacientes internadas estão armazenados, bem como as indicações para a realização dos procedimentos cirúrgicos.

As gestantes foram acompanhadas no pré-natal especializado da instituição até o final da gravidez. De acordo com a rotina assistencial da Clínica Obstétrica, o parto é evento geralmente programado, em que é permitido o parto vaginal, na ausência de contra-indicações obstétricas, para os casos leves da doença de von Willebrand, geralmente do tipo 1 ou 2. Nos casos de maior gravidade, ou com risco de comprometimento fetal, a cesárea é a via de parto de escolha. No dia do parto, conforme a conduta assistencial, programou-se a reserva de fator VIII, para reposição caso demonstrasse ser clinicamente necessário. A técnica anestésica adotada foi aquela que o anestesiologista considerou como mais apropriada para cada paciente, considerando-se a doença, as condições clínicas e laboratoriais de cada gestante.

Foram investigadas as seguintes variáveis: mortalidade materna e perinatal, morbidade materna (anemia, reposição de crioprecipitado, necessidade de transfusão de sangue, complicações hemorrágicas associadas ao parto, infecção puerperal), morbidade perinatal (índices de Apgar no nascimento, peso do recém-nascido, idade gestacional, crescimento fetal) e as seguintes variáveis demográficas: idade materna, cor, paridade, antecedente de cesárea, antecedente de abortamento e história de complicações da coagulopatia em gestação atual.

O coagulograma foi solicitado na rotina pré-natal dessas pacientes, bem como os demais exames da rotina pré-natal. Os tempos de protrombina (TP) e de tromboplastina parcial ativado (TTPA) foram avaliados no plasma materno, conforme padrões adotados na instituição. Para interpretação do TP foi analisado o índice INR, e para o TTPA foi analisada a relação R. A confirmação diagnóstica e definição do tipo de doença de von Willebrand foram baseadas nos exames efetuados antes da gestação: dosagem do fator VIII coagulante, normal ou discretamente reduzido nos pacientes com doença dos tipos 1 ou 2, e, muito reduzido na doença do tipo 3 (inferior a 5%) e quantificação do antígeno do fator von Willebrand, que avalia a quantidade do fator presente na circulação18.

Todas as pacientes apresentavam o diagnóstico prévio de doença de Von Willebrand e habitualmente iniciaram o pré-natal no primeiro trimestre da gravidez. Foram acompanhadas de acordo com a rotina assistencial estabelecida para as pacientes com este tipo de hemopatia. O crescimento fetal foi verificado pela realização de ultra-sonografias seriadas, bem como pela aferição da altura uterina. A idade gestacional foi calculada a partir da data da última menstruação (DUM), quando era compatível com a idade gestacional estimada pela ultra-sonografia realizada, no máximo, até a vigésima semana de gestação. Nos casos em que não foi observada tal concordância, a idade gestacional foi calculada pelos dados da primeira ultra-sonografia.

O peso do recém-nascido foi comparado à curva de normalidade19, de forma que foram classificados como pequenos para a idade gestacional aqueles com o peso inferior ao décimo percentil da faixa correspondente.

Os resultados foram analisados através do programa STATISTICA. As variáveis foram estudadas descritivamente, calculando-se freqüências absolutas e relativas. Para as variáveis quantitativas esta análise foi feita pela observação dos valores mínimos, máximos, cálculo de médias e desvios padrão.

RESULTADOS

No período analisado, foram avaliadas 13 gestações em oito mulheres portadoras da doença de von Willebrand. Nesse mesmo período ocorreram 13.037 partos na instituição, perfazendo incidência de 0,1% dos partos realizados. Seis pacientes (75%) apresentavam diagnóstico de doença de von Willebrand do tipo 1, e duas (25%) eram do tipo 2. A média da idade materna foi de 24,1anos e o desvio padrão de 7,5 anos. Quanto à cor, seis (75%) pacientes eram brancas. Cinco pacientes foram acompanhadas em duas gestações e em três pacientes o acompanhamento pré-natal foi realizado em apenas uma gestação.

Pela análise da história obstétrica, seis gestações ocorreram em nulípara, seis em primípara, e uma em secundípara. Três pacientes apresentavam antecedente de uma operação cesariana prévia e duas apresentavam abortamento anterior. Todas realizaram o acompanhamento pré-natal na clínica obstétrica.

Os dados referentes ao parto e às complicações estão descritos na Tabela 1. Verifica-se que na maioria (69%) o parto foi realizado pela cesárea. Os dois casos de complicação do parto (um caso de descolamento prematuro da placenta e um caso de hemorragia pós-parto) ocorreram em gestantes submetidas à cesárea. Em quatro dos nove casos de cesárea (44%), as indicações dessa via de parto estiveram associadas à distocia funcional, à dificuldade de se realizar a indução do parto e às restrições para a utilização da anestesia peridural na analgesia do parto. A transfusão de fator VIII foi realizada de forma profilática em dois casos e terapeuticamente em um caso. Nenhuma paciente necessitou de transfusão de hemáceas para correção de anemia. Quanto ao procedimento anestésico, a anestesia raquidiana foi a mais freqüentemente utilizada e não se observou nenhuma complicação relacionada à punção lombar, decorrente das alterações no sistema da coagulação.

O perfil dos exames laboratoriais está apresentado na Tabela 2. Observa-se que a média da atividade do fator VIIIc, no final da gestação, aumenta, favorecendo o manejo no parto.

Os resultados perinatais estão apresentados na Tabela 3. Destaca-se a incidência de restrição do crescimento fetal, acompanhado de oligohidrâmnio, baixo peso do recém-nascido e ocorrência de sofrimento fetal em dois casos.

DISCUSSÃO

Durante a gravidez, pacientes portadoras da doença de von Willebrand raramente apresentam sintomas relacionados à doença propriamente dita. Nessas mulheres, a concentração e atividade do fator VIII e do fator de von Willebrand tendem a aumentar espontaneamente com o avanço da gravidez, freqüentemente atingindo níveis normais no termo da gravidez2,8. A atividade do fator VIII parece ser parâmetro preditor da ocorrência de sangramento intraparto e pós-parto14 e deve ser mensurado quando próximo ao termo da gravidez.

O risco de sangramento durante o parto (vaginal ou cesárea) é menor quando a atividade do fator VIII, no plasma materno, é superior a 40% dos valores normais2. Estudos preconizam o uso profilático de fator VIII, crioprecipitado, plasma fresco ou DDAVP (1-deamino-8-D-arginina vasopressina) para prevenção de quadros hemorrágicos no período intraparto ou pós parto. A DDAVP eleva temporariamente o fator VIII e o fator de von Willebrand, e é de uso seguro para a mãe e o feto2. Deve-se tomar cuidado com seu uso no momento do parto, pois a combinação de fluidos contendo ocitocina pode provocar retenção hídrica e potencializar o efeito da DDAVP, causando hiponatremia grave.

Na presente casuística, em três gestações foi necessária a transfusão de fator VIII por ocasião do procedimento cirúrgico, e em um caso foi utilizado DDAVP profilático. Duas gestantes apresentavam atividade do fator VIII inferior a 50% e receberam o fator VIII imediatamente antes do procedimento cirúrgico. A terceira que necessitou reposição teve quadro de hemorragia no primeiro pós-parto e recebeu reposição de fator VIII com controle do sangramento. Nas demais gestações não foi necessário tratamento prévio para reposição dos fatores de coagulação.

Estudos descrevem a administração profilática de fator VIII, antes do parto, para prevenção de hemorragias. Greer et al. administram crioprecipitado em 9 (64%) de 14 pacientes com a doença, por ocasião do parto, e quadros hemorrágicos no pós-parto foram constatados em 56% dessas pacientes9. Foster et al. (1995) utilizam tratamento profilático em 46% dos casos (55 gestações) em gestantes com a doença do tipo 3, 2A ou 2B. Entre as que receberam profilaxia, seis apresentaram hemorragia pós-parto20. Kadir et al. relatam uso da profilaxia anteparto em 19% das gestações, sem complicações hemorrágicas13.

No presente estudo, apenas um caso apresentou quadro de hemorragia 24 horas após o parto, momento em que foi administrado fator VIII e obteve-se o controle do sangramento. Nos demais casos, não houve complicações hemorrágicas no pós-parto. Ressalta-se que, excluindo-se as gestações em que foi administrado fator VIII no anteparto, as demais apresentavam, ao final da gestação, atividade do fator VIII acima de 50%. O coagulograma dessas pacientes também se apresentava dentro dos limites da normalidade, indicando bom prognóstico.

O descolamento prematuro da placenta (DPP) ocorreu em uma gestante do estudo que apresentava diagnóstico de restrição do crescimento fetal e oligohidrâmnio. Na 37ª semana, apresentando última dosagem da atividade do fator VIIIc de 153%, optou-se pelo preparo do colo uterino com misoprostol (25 mcg). Durante a indução com ocitocina foi diagnosticado o DPP e a parturiente foi submetida à cesárea de emergência. O recém-nascido apresentou peso de 1.900g, Apgar de 1º e 5º minutos de 3 e 9, respectivamente, e pH de artéria umbilical no valor de 7,03. Não houve problemas de sangramento excessivo e não foi necessária a reposição de fator VIII no intra-operatório, nem no pós-operatório deste caso.

É descrita na literatura a ocorrência de hemorragias pós-parto secundárias, caracterizada por sangramento duas a três semanas após o parto, no puerpério tardio. Esse período corresponde à fase em que os fatores de coagulação retornam aos valores basais pré-gestacionais. As mulheres com doença de von Willebrand são particularmente susceptíveis a sangramento nesse período, com estudos demonstrando a ocorrência em 20% dos casos13 o que torna esta complicação 15 a 20 vezes mais comum nessas pacientes17. Entretanto, na presente casuística, esse tipo de hemorragia secundária não foi observada. Esse fato pode ser explicado pela maior proporção de cesáreas neste estudo (69%), que cursam com menor loquiação devido à realização sistemática da revisão e curagem da cavidade uterina nesse tipo de parto.

Quanto ao procedimento anestésico, em gestantes portadoras da doença de von Willebrand, existe controvérsia sobre as técnicas a serem utilizadas. Na presença de distúrbios da coagulação, a anestesia peridural e subaracnóidea é contra-indicada pelo risco de hematomas na região lombar. A avaliação individualizada dos casos norteia a conduta a ser tomada. No final da gestação, as pacientes portadoras da doença apresentam aumento dos fatores de coagulação, o que favorece o manejo quanto ao procedimento anestésico e cirúrgico. Na presente casuística, a anestesia raquidiana foi realizada em sete casos, sem complicações no procedimento. O duplo bloqueio foi realizado em apenas uma gestante, e também não foram observadas complicações. Em dois casos a opção foi pela anestesia geral. Poucos estudos da literatura abordam a utilização da raquianestesia nessas pacientes, mas a punção lombar é considerada segura quando as anormalidades hematológicas estão sob controle. Em casuística de 16 parturientes com doença de von Willebrand do tipo 1, a analgesia epidural foi utilizada em nove casos, sem complicações descritas21.

Quanto aos resultados perinatais, pouco é relatado nas casuísticas descritas na literatura. O presente estudo revela elevada proporção de fetos com restrição de crescimento (38,5%) e de baixo peso no nascimento (38,5%). Estudos descrevem associação entre a relação do fator VIIIag/VIIIc com a restrição do crescimento fetal22,23, entretanto não existem estudos aprofundados em pacientes com a doença de von Willebrand. A restrição do crescimento torna o feto mais susceptível ao sofrimento fetal, exigindo vigilância intensiva do seu bem-estar, principalmente no período intraparto.

Durante o seguimento pré-natal das gestantes portadoras da doença de von Willebrand, é recomendável o acompanhamento do ritmo de crescimento fetal, tanto pela realização seriada da ultra-sonografia obstétrica, bem como pelo seguimento de parâmetros clínicos tais como o ganho de peso materno e a aferição da altura uterina. Na presente casuística, apesar da proporção de pequenos para a idade gestacional, não se verificou repercussão nos índices de Apgar dos recém-nascidos, pois todos os recém-nascidos apresentaram índices normais no quinto minuto de vida. Entretanto, ocorreu um caso de óbito neonatal tardio, associado à prematuridade, em recém-nascido de 29 semanas. Os aspectos perinatais carecem de maior investigação quanto aos fatores relacionados à restrição do crescimento fetal em gestações que cursam com a doença.

O planejamento da gestação em mulheres portadoras da doença de von Willebrand deve iniciar antes da concepção. As pacientes devem ser orientadas quanto ao risco de complicações hemorrágicas na gravidez e no parto, bem como da importância do seguimento e acompanhamento pré-natal especializado. O aconselhamento genético deve ser oferecido, com o intuito de esclarecer a herança genética da doença. Pela maior possibilidade de transfusões sangüíneas, no caso de ocorrer complicações hemorrágicas, recomenda-se a investigação do perfil sorológico prévio da mulher, bem como a vacinação prévia para hepatite A e hepatite B, quando indicado.

O parto e o puerpério imediato constituem os períodos mais críticos da gestação. Embora não existam estudos prospectivos demonstrando correlação exata entre a atividade de fator VIII e o risco de sangramento no momento do parto, este parâmetro deve ser investigado no terceiro trimestre e irá nortear a indicação da profilaxia com a administração de fator VIII no anteparto quando este apresenta atividade inferior a 50%24,25,26.

As mulheres portadoras da doença de von Willebrand necessitam seguimento especializado no ciclo gravídico-puerperal. Promover hemostasia meticulosa na cirurgia e assegurar a efetiva contração uterina são fatores que auxiliam na prevenção de quadros hemorrágicos no pós-operatório imediato dessas pacientes. O puerpério tardio deve ser monitorizado e a paciente orientada para eventuais complicações nesse período. A repercussão da doença sobre o produto conceptual carece de maiores investigações.

Conflito de interesse: não há

Artigo recebido: 25/10/07

Aceito para publicação: 19/03/08

Trabalho realizado pelo Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, SP

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Nov 2008
    • Data do Fascículo
      Out 2008

    Histórico

    • Recebido
      25 Out 2007
    • Aceito
      19 Mar 2008
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