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Heparinas: momento atual

EDITORIAL

Heparinas - momento atual

Cyrillo Cavalheiro FilhoI; Dalton de Alencar Fischer ChamoneII; Roberto Abi RachedIII; Francisco Humberto MaffeiIV

IProfessor Colaborador Médico em Hematologia e Hemoterapia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Responsável do Serviço de Hemostasia e Trombose do Instituto do Coração - Hospital das Clinicas - USP, Médico da Fundação Pró-Sangue/Hemocentro de São Paulo, Coordenador das Comissões de Farmacologia em Medicamentos Anticoagulantes e Hemostáticos do Hospital das Clínicas - USP

IIProfessor Titular de Hematologia e Hemoterapia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Presidente da Fundação Pró-Sangue Hemocentro de São Paulo

IIIProfessor Colaborador Médico em Hematologia e Hemoterapia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Chefe do Ambulatório de Hemostasia e Trombose do Instituto do Coração - Hospital das Clinicas - USP, Médico da Fundação Pró-Sangue/Hemocentro de São Paulo

IVProfessor Emérito em Cirurgia Vascular da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista, Chefe do Serviço de Pesquisa em Trombose do Instituto de Pesquisa e Ensino do Hospital Sírio-Libanês, São Paulo, SP

Há pouco mais de um ano, a Associação Médica Brasileira e o Conselho Federal de Medicina, em colaboração com o Grupo de Estudo em Trombose e Hemostasia - GETH, em seu projeto diretrizes, publicou a diretriz brasileira para Profilaxia de Tromboembolismo Venoso em Pacientes Clínicos, na qual a indicação do uso de heparina é fator primordial1,2.

A finalidade da diretriz é o uso da heparina de maneira racional e a fim de minimizar a ocorrência do tromboembolismo venoso, considerado atualmente uma das principais causas de morbi-mortalidade1,2.

Em vista do grande impacto socioeconômico e de saúde publica gerado pelas doenças trombóticas, a utilização das heparinas apresentou aumento exponencial em seu consumo e produção com repercussões econômicas globais3.

Descoberta há mais de 90 anos por McLean, ao perceber que o extrato de tecido canino tinha a capacidade de prolongar o tempo de coagulação do plasma e denominada de heparina por Howell e Holt, em virtude de ser originária de tecido hepático, passou a ser usada no tratamento e profilaxia de fenômenos trombóticos a partir dos anos 50 do século passado. Seu emprego permitiu o desenvolvimento e se tornou indispensável na cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea, vascular, hemodiálise e procedimentos endovasculares. Nestes casos, além do benefício da anticoagulação imediata, possui a qualidade única, entre os anticoagulantes injetáveis, de ter um antídoto que permite sua reversão total, a protamina4,5,6.

As heparinas denominadas não-fracionadas (HNF) são misturas heterogêneas com peso molecular médio de 15000 daltons e as heparinas de baixo peso molecular (HBPM) são preparadas por intermédio da despolimerização da HNF por meios químicos ou enzimáticos. O peso molecular médio está entre 3000 a 6000 daltons6.

Comercialmente, são extraídas de mucosa intestinal ou de pulmões de origem suína ou bovina. Como resultado dos recentes relatos do risco de contaminação por prions causadores da encefalopatia espongiforme de bovinos, a extração originária de porcinos é cada vez mais utilizada7.

Estima-se que no mundo aproximadamente 20 milhões de pacientes recebam o fármaco para tratamento ou profilaxia de tromboses venosas ou arteriais e, para isto, é estimada a necessidade de aproximadamente 200 milhões de porcos para produzir as heparinas necessárias para esse consumo. Atualmente, grande parte da heparina é produzida na China, pela grande criação de suínos e pela política de rebaixamento dos custos de sua produção8,9,10.

Estado atual da questão

Em 11 de fevereiro de 2008, o Departamento Americano de Fiscalização de Alimentos e Medicamento (FDA - Food and Drug Administration) e o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), após relatos de reações adversas ao fármaco quando utilizado em circuitos extracorpóreos, fez informe mundial quanto aos cuidados e instruções no uso de heparina não-fracionada (HNF), em decorrência de sérias reações alérgicas, distúrbios hemodinâmicos e hemostáticos com sintomas que incluem angioedema, náuseas, vômitos, intensa sudorese, dificuldade respiratória e morte9,10,11.

A maioria dos relatos foram relacionados à heparina produzida pela Baxter Heathcare Corporation e principalmente quando utilizada em "bolus" em cirurgias cardíacas ou hemodiálise 9,10,11.

Após a retirada do medicamento do mercado, a empresa por sua vez, declarou que, acidentalmente, a heparina produzida na China com as plantas industriais de Changzhou havia sido contaminada com sulfato de condroitina hipersulfatado. Esta substância apresenta estrutura química semelhante à heparina e ao sulfato de dextrana possuindo densidade de carga negativa com potencial para ativação do Fator XII. "In vivo", o sulfato de condroitina e o sulfato de dextran ativam o Fator XII no plasma, resultando em ativação do sistema complemento e da pré-calicreína, com geração de bradicininas importantes na gênese do choque hemodinâmico. A explicação da falta desse tipo de ativação no plasma pela heparina é que esta forma complexos com a antitrombina III, atenuando a ativação do Fator XII 9,10,11.

De acordo com notícias publicadas no jornal "The New York Times", a contaminação pode ter sido deliberada e a história teria início em 2006, na província de Guangdong, China, região industrializada, onde porcos, criados para a produção de heparina, teriam sido acometidos por uma gripe porcina com grande mortalidade entre o plantel, com conseqüente queda da produção e elevação dos preços do produto12,13.

O que despertou a curiosidade nas autoridades em relação à contaminação da matéria prima da heparina, é que tanto o sulfato de condroitina como o sulfato de dextran são obtidos de cartilagens de porcos12,13.

Os dados, que foram comunicados pelas agências de vigilância sanitária no mundo, apontam para 149 casos de morte relacionados à contaminação da heparinas originárias da China11,12,13.

Outro problema mundial, mas com importante reflexo no Brasil, foi a retirada do mercado, de maneira inexplicável, do produto "Liquemine®" de uso endovenoso do laboratório Roche, coincidindo com notificações oriundas de vários centros, de elevação das taxas de re-operações por sangramento após cirurgias cardíacas com auxílio da circulação extracorpórea.

Estudo de Melo et al., verificou diferenças significativas da atividade anticoagulante e significativa alteração do peso molecular de quatro heparinas comercializadas no território brasileiro, quando comparadas ao Liquemine®. Observou ainda a presença de contaminação com dermatam sulfato nas amostras. Para realização do estudo, utilizou o tempo de tromboplastina parcial ativada, ressonância magnética nuclear, cromatografia de filtração em gel e dosagem do ácido hexurônico e concluiu que nenhuma marca disponível para o estudo apresentou qualidade semelhante ao Liquemine®.

As indústrias nacionais e a Anvisa-MS, preocupadas com o problema no controle de qualidade de seus produtos, enquanto não conseguem resolver a situação, estão recomendando maior vigilância e cuidados rigorosos, principalmente aos pacientes submetidos às cirurgias cardíacas, vascular, hemodiálise, ou tratados com injeção intra-venosa em "bolus" de heparina, visando uma conduta precoce na correção de qualquer alteração que possa ser devida a esse fármaco14.

No entender de muitos, em futuro próximo, os fármacos de origem animal, assim como ocorreu com a insulina, não mais vão fazer parte do arsenal terapêutico com o desenvolvimento de novos fármacos produzidos por síntese, que possam ter as mesmas qualidades da heparina, tornado a anticoagulação mais segura, eficiente e de mais fácil controle.

  • 1. Rocha AT, Paiva EF, Lichtenstein A, Milani-Jr R, Cavalheiro-Filho C, Maffei FH, et al. Tromboembolismo venoso: profilaxia partes I, II, III. In: Jatene FB, Nobre MRC, Bernardo WM. Projetos diretrizes. São Paulo: Associação Médica Brasileira; Brasília: Conselho Federal de Medicina; 2006. v.4, p.363-407.
  • 2. Rocha AT, Paiva EF, Lichtenstein A, Milani-Jr M, Cavalheiro-Filho C, Maffei FH. Risk-assessment algorithm and recommendations for venous thromboembolism prophylaxis in medical patients. Vasc Health Risk Manage. 2007;3:533-53.
  • 3
    U.S. Department of Health and Human Services. The Surgeon general's call to action to prevent deep vein thrombosis and pulmonary embolism [cited aug 2008]. Available from: http://www.surgeongeneral.gov/topics/deepvein/callto-action/call-to-action-on-dvt-2008.pdf
  • 4. McLean J. The discovery of heparin cephalin. Circulation. 1959;19:75-8.
  • 5. Howell W, Holt E. Two new factors in blood coagulation: heparin and pro-antithrombin. Am J Physiol. 1918;47:328.
  • 6. Kearon C, Kahn SR, Agnelli G, Goldhaber S, Raskob GE, Comerota AJ. Antithrombotic therapy for venous thromboembolic disease. American College of Chest Physicians Evidence-Based Clinical Practice Guidelines (8th Edition). Chest. 2008;133(6):S454-S545.
  • 7. Fareed J, Hoppensteadt DA, Bick RL. An update on heparins at the beginning of the new millennium. Semin Thromb Hemost. 2000;26(Suppl 1):5-21.
  • 8. Melo ElI, Pereira MS, Cunha RS, Sá MPL, Mourão PAS. Controle da qualidade das preparações de heparina disponíveis no Brasil: implicações na cirurgia cardiovascular. Rev Cir Cardiovasc. 2008; 23:169-74.
  • 9. Kishimoto TK, Viswanathan K, Ganguly T, Elankumaran S, Smith S, Pelzer K, Lansing JC, et al. Contaminated heparin associated with adverse clinical events and activation of the contact system. N Engl J Med. 2008;358:2457-67.
  • 10. Schwartz LB. Heparin comes clean. N Engl J Med. 2008;358:2505-9.
  • 11
    U.S. Food and Drug Administration. The food and drug administration is issuning this alert. [cited 2008 sept 30]. Available from: http://www.fda.gov/cder/drug/advisory/heparin.htm
  • 12. Harris G. The New York Times. Heparin Contamination may have been Deliberate, F.D.A . Says, April 30, 2008. [cited 2008 sept 30]. Available from: http://www.nytimes.com/2008/04/30/health/policy/30heparin.html?scp=2&sq=heparin&st=cse
  • 13. Moffet JR. Who´s protecting America´s drug supply. mar 17, 2008. [citado 30 set 2008]. Disponível em: http://www.fleshandstone.net/healthandsciencenews/heparin.txt
  • 14
    Alertas Federais de Farmacovigilância. Heparina: suspeitas de reação alérgica e de inefetividade terapêutica. Brasília (DF). SNVS/Anvisa. Nuvig/Ufarm. 2008; n. 2. 29 ago 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jan 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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