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Mortes por doenças infecciosas em mulheres: ocorrências no ciclo gravídico-puerperal

EDITORIAL

Mortes por doenças infecciosas em mulheres: ocorrências no ciclo gravídico-puerperal

Carlos Eduardo Pereira VejaI; Seizo MiyadahiraII; Marcelo ZugaibIII

IDoutor pelo Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da FMUSP, São Paulo, SP

IILivre-docente do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da FMUSP, São Paulo, SP

IIIProfessor titular do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da FMUSP, São Paulo, SP

A taxa de mortalidade materna é um dos melhores indicadores da qualidade de saúde ofertada a uma população1. Para quantificá-la são necessários estudos populacionais abrangentes sobre registros confiáveis e com atualizações frequentes. Isso demanda envolvimento sério e cuidadoso dos órgãos públicos, englobando todo o país. No Brasil, a última avaliação de âmbito nacional, realizada em 1986, determinava a aplicação de fatores de correção para a estimativa mais precisa dessa ocorrência, motivada pela inconsistência dos dados que os tornava de credibilidade limitada. Passados 17 anos, o assunto carecia de atualização.

Entretanto, os resultados do Projeto Gravidez, Parto e Puerpério (Projeto GPP), publicados em 20042, constituem um marco para o conhecimento atual da realidade brasileira. Estabelecem a Razão de Mortalidade Materna (RMM) de 54,3/100000 nascidos vivos (NV), para o Brasil. Em face à dimensão continental deste País, verificam-se grandes variações da RMM nas diversas regiões, sendo necessária a utilização daqueles fatores de correção, ajustados aos resultados da nova pesquisa, específicos para cada local. Para a mesma finalidade, a Organização Mundial de Saúde se vale de metodologia diferente e determina RMM de 110,0/100000 NV para o Brasil. É plausível acreditar que a RMM brasileira esteja entre os dois valores, mais próxima dos obtidos no Projeto GPP. Poder-se-ia atribuir essa disparidade na aferição da taxa desse indicador de Saúde ao fato de que, além de se observar subregistro dos óbitos maternos neste País, diversas regiões geográficas e economicamente desprivilegiadas não atingem as metas propostas para coleta de dados de mortalidade (SIM) e nascimentos (SINASC). Desse fato resulta a opção de o Ministério da Saúde omitir dados sobre o tema nas Regiões Norte e Nordeste, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás3.

Esses desajustes poderiam ser amenizados com a implantação de Comitês de Mortalidade Materna (CMM) em todas as localidades do País, dando condições para o aprimoramento da qualidade dos dados e diminuição do subregistro. Sob esse enfoque, vale enfatizar que a subnotificação de eventos assola todos os estados mórbidos, mas é na mortalidade materna que se observa a sua maior expressão.

Nessa situação de desorganização, o CMM encontra o seu papel de relevo. Pode intervir, modificando significativamente o status quo dessa grave problemática, com a possibilidade, não apenas de quantificar os casos, mas de efetuar um estudo com adequada completude. Em subsequência ao cumprimento dessas tarefas advém as condições para a correta classificação da mortalidade materna, essencial para a identificação dos problemas associados. Decerto, isso constitui uma forma decisiva para a elaboração de estratégias para a melhoria assistencial, pois ao desnudar e identificar as carências nas ações de Saúde, em cada localidade, o trabalho do CMM auxilia na eleição das melhores alternativas a serem seguidas para consolidar propostas e conduzi-las ao bom termo.

Enquanto não houver Comitês atuantes na maioria das cidades, a saúde pública, à deriva, deve se contentar com a utilização de estimativas para a realidade nacional. De qualquer forma, é inegável que a RMM brasileira situa-se na faixa dos países em desenvolvimento, com altos índices de morte materna de causa direta, cabível de prevenção em sua quase totalidade. No Projeto GPP foram identificados 39,6% a mais de casos (subnotificação) o que, por si, justifica estudo mais aprofundado visando o conhecimento apropriado dos eventos causais. Com efeito, o município de São Paulo, por meio do seu CMM, identifica a hipertensão arterial como principal causa de morte materna, responsável por 30,5% dos óbitos durante o ciclo gravídico-puerperal4, refletindo a mesma realidade encontrada em outras localidades do Brasil5, 6. Além disso, ao se agregarem todas as causas infecciosas (infecção puerperal, aborto inseguro, broncopneumonias, endocardites, etc.), verifica-se que essas enfermidades são as responsáveis pela segunda causa de óbito materno, com 21,5% das ocorrências4. Esses dados ressaltam a importância do estudo apresentado pelos autores do artigo que empresta o título a este editorial.

É pertinente a lembrança de que entre todas as causas, a morte materna decorrente de infecções é recordista em subnotificações, pois é tarefa de grande complexidade se estabelecer, com precisão, a correlação etiológica dessas doenças no ciclo gravídico-puerperal. Nessa vertente é fundamental a atuação do CMM que, por meio de visitas domiciliar e hospitalar, obtém subsídios para se estabelecer um nexo causal entre as partes ou descartá-lo de vez. Por outro lado, a afirmação dos autores de que o Ministério da Saúde orienta que todos os casos de Aids, cujos campos 43/44 da Declaração de Óbito estejam preenchidos afirmativamente (presença do ciclo gravídico-puerperal), devam ser considerados como morte materna indireta é motivo de apreensão. O estudo apresentado prova o contrário.

Assim, tendo em pauta a constatação de descuidadas incorreções na apuração da RMM, é salutar enfatizar a necessidade premente de se mobilizar esforços para a elaboração e aplicação de metodologias confiáveis de pesquisa em morte materna e que sejam capazes de agregar conhecimentos acerca do assunto. A aparente imobilidade dos órgãos públicos sugere menosprezo a esse tópico, mantendo-o fora de foco, banalizado. Todavia, não há como negar que, cada caso de morte materna mereça uma investigação completa e ampla, visto que, além de trazer riqueza ímpar de informações, é fundamental para a quantificação e qualificação dos dados apurados, imprescindíveis para a prevenção desse infausto acontecimento, de terríveis consequências sociais.

Embora ainda não se percebam medidas inovadoras para sanar as flagrantes deficiências quanto ao assunto em apreço, nutre-se de esperanças que as pesquisas contemporâneas envolvendo a morte materna e, mais recentemente, o estudo de casos de near-miss mortality7, tragam novos alentos. Por complementaridade a isso, a proposição e aplicação de novas estratégias, patrocinadas pelos organismos oficiais, incluindo ações pragmáticas reais, sem proselitismos, são bem-vindas porque compõem meios únicos e indispensáveis para alavancar este País a patamares menos sofríveis, em especial, quanto à Saúde da Mulher.

  • 1.Vega CEP, Kahhale S, Zugaib M. Maternal mortality due to arterial hypertension in Sao Paulo City (1995-1999). Clinics. 2007;62(6):679-84.
  • 2.Laurenti R, Mello Jorge MHP, Gotlieb SLD. Mortalidade de mulheres de 10 a 49 anos, com ênfase na mortalidade materna. Rev Bras Epidemiol. 2004;7(4):449-60.
  • 3.Ministério da Saúde. Indicadores e dados básicos - Brasil - 2007. [citado em 2008]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2007/c03.htm
  • 4.Vega CEP. Relatórios de Mortalidade Materna do Município de São Paulo. [citado em 2008]. Disponível em: http://portal.prefeitura.sp.gov.br/secretarias/saude/mulher/0007
  • 5.Cecatti JG, Albuquerque RM, Hardy E, Faúndes A. Mortalidade materna em Recife. Causas de óbitos maternos. Rev Bras Ginecol Obstet. 1998;20(1):7-11.
  • 6.Tanaka ACDA, Mitsuiki L. Estudo da magnitude da mortalidade materna em 15 cidades brasileiras. São Paulo: Unicef; 1999.
  • 7.Souza JP, Cecatti JG, Parpinelli MA, Sousa MHd, Serruya SJ. Revisão sistemática sobre morbidade materna near miss. Cad Saude Publica. 2006;22(2):255-64.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2009
  • Data do Fascículo
    2009
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