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Comparação entre marcadores de lesão renal em crianças gravemente doentes: necessitamos reavaliar a dosagem de creatinina?

PANORAMA INTERNACIONAL

PEDIATRIA

Comparação entre marcadores de lesão renal em crianças gravemente doentes: necessitamos reavaliar a dosagem de creatinina?

Eduardo Mekitarian FilhoI; Werther Brunow de CarvalhoII

IProfessor adjunto livre-docente do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista Medicina. Chefe das UCI's pediátricas do Hospital de São Paulo, Hospital Santa Catarina e Pronto-Socorro/Hospital Infantil Sabará, de São Paulo, São Paulo, SP

IIMédico intensivista do Pronto-Socorro/Hospital Infantil Sabará e Hospital Santa Catarina, de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Herrero-Morín et al. (2007)1 publicaram pesquisa com o objetivo de avaliar a função renal e as taxas de filtração glomerular (TFG) em crianças internadas em unidade de terapia intensiva (UTI). Foram selecionadas 25 crianças admitidas com qualquer quadro agudo em UTI de hospital terciário e que tinham necessidade do uso de sonda urinária, sendo exclusas crianças com doenças renais e tireodianas prévias e crianças com necessidade de terapia de substituição renal. Foram dosados no estudo creatinina, cistatina C, beta 2-microglobulina, clearance de creatinina e o clearance estimado pela fórmula de Schwartz. O conceito de disfunção renal aplicado no estudo foi o achado de um clearance de creatinina (dosado ou estimado pela fórmula de Schwartz) abaixo de 80 mL/minuto/1,73 m2. Para análise estatística, foram utilizados o inverso da creatinina, da cistatina C e da beta 2-microglobulina para obter-se correlação com o clearance de creatinina e, para identificar o valor diagnóstico de tais marcadores para o clearance abaixo de 80 mL/minuto/1,73 m2, foram utilizadas curvas ROC (receiver operating characteristic curve), sendo maior a área abaixo da curva correlacionada com maior sensibilidade e especificidade para o marcador preditor da filtração glomerular.

Foram utilizados os valores de clearance tanto pela dosagem através da urina de 24 horas como pela fórmula de Schwartz. No primeiro caso, a dosagem de cistatina C teve a maior área abaixo da curva ROC (com intervalo de confiança de 95%) com o valor de 0,851, seguido pela dosagem de beta 2-microglobulina (0,802) e por último a dosagem de creatinina (0,633). Considerando-se a fórmula de Schwartz, os resultados são semelhantes. A dosagem de cistatina C obteve área de 0,792 abaixo da curva ROC, a de beta 2-microglobulina 0,799 e a dosagem de creatinina obteve área de 0,625, ambas com intervalo de confiança de 95%. A cistatina C neste estudo também obteve maior sensibilidade (85%) e especificidade (63%) para detecção precoce de disfunção renal quando comparada à creatinina (sensibilidade de 42% e especificidade de 54%) e com resultados próximos à dosagem de beta 2-microglobulina (sensibilidade de 85% e especificidade de 54%).

Comentário

A associação entre sepse grave e/ou choque séptico com algum grau de lesão renal é frequente e contribui de maneira importante para o aumento da morbimortalidade dos pacientes. É estimado que 23% dos pacientes com sepse grave e 51% dos pacientes com choque séptico com hemoculturas positivas desenvolvam quadros de lesão renal aguda2. Múltiplos fatores, como a ação de citocinas pró-inflamatórias, a redistribuição de fluxo sanguíneo esplâncnico, o aumento importante da permeabilidade vascular e a potencialização da lesão renal secundária ao uso de medicamentos com toxicidade renal direta contribuem para o quadro descrito.

A determinação fidedigna da taxa de filtração glomerular (TFG) e a estimativa da função renal revestem-se de extrema importância. Os métodos universalmente disponíveis como a dosagem de ureia e creatinina possuem vários fatores que interferem em sua interpretação e comprometem a sensibilidade e especificidade das mesmas para predizer alterações da função renal, fatores tais como massa muscular e seus fatores correlatos (idade, sexo e raça), ingestão de carne e altas doses de proteínas, obesidade, desnutrição e alguns medicamentos como trimetoprim, cimetidina e fibratos que reduzem a secreção tubular de creatinina. Além disso, o método mais utilizado na dosagem da creatinina (Jaffé modificado) é um método colorimétrico e a presença de cromógenos interfere diretamente na sua leitura (como nos casos de pacientes com icterícia importante), o que consiste em fator adicional a ser analisado3.

A cistatina C, inicialmente identificada no final da década de 70, é uma proteína de baixo peso molecular com filtração livre pelos glomérulos, cuja concentração sérica é bem menos acometida por fatores extrarrenais como massa muscular, idade, sexo, utilização de medicamentos ou condições nutricionais quando comparada às dosagens de ureia e creatinina4. Recentes estudos em crianças, em diversas situações clínicas, demonstram que a dosagem desta proteína correlaciona-se à maior precocidade, sensibilidade e especificidade para detectar alterações na TFG medida por métodos convencionais ou por técnicas de medicina nuclear quando comparada à dosagem de uréia e creatinina, além de suas fórmulas correlatas para estimar a TFG. No estudo citado, foram consideradas admissões em UTI por qualquer quadro clínico e excluídas aquelas com doença tireodiana uma vez que há evidências de que doenças da tireoide interferem com a TFG e, assim, alteram os níveis de cistatina C5. O autor obteve também a dosagem de beta 2-microglobulina, outro marcador caracterizado por filtração glomerular livre e ausência de reabsorção ou secreção tubular, com bons resultados semelhantes aos encontrados com a cistatina C. Na prática clínica, a dosagem de cistatina C tem se mostrado de grande valor permitindo a ação precoce para a prevenção da lesão renal e deve ser estudada com maiores detalhes na população pediátrica, a fim de justificar sua instituição como método rotineiro, apesar do alto custo quando comparado à dosagem de creatinina.

  • 1. Herrero-Morín J, Málaga S, Fernández N, Rey C, Diéguez MA, Solís G, et al. Cystatin C and beta2-microglobulin: markers of glomerular filtration in critically ill child. Crit Care. 2007;11(3):R59.
  • 2. Schrier RW, Wang W. Acute renal failure and sepsis. N Engl J Med. 2004;351:159-69.
  • 3. Laterza OF, Price CP, Scott MG. Cystatin C: An improved estimator of glomerular filtration rate? Clin Chem. 2002;48(5):699-707.
  • 4. Stevens LA, Levey AS. Measurement of kidney function. Med Clin North Am. 2005;89:457-73.
  • 5. Fricker M, Wiesli P, Brandle M, Schwegler B, Schmid C. Impact of thyroid dysfunction on serum cystatin C. Kidney Int. 2003;63:1944-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2009
  • Data do Fascículo
    2009
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