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Espectroscopia cerebral em candidatos a transplante hepático

Cerebral magnetic resonance spectroscopy in patients with hepatic encephalopathy: analysis before and after liver transplantation

Resumos

OBJETIVOS: Determinar os níveis dos metabólitos (mio-inositol [MI], colina [Cho], glutamina [Glx], creatina [Cr] e N-acetilaspartato [NAA]) por meio da espectroscopia por ressonância magnética em portadores de hepatopatia crônica, antes e após o transplante hepático, correlacionando com a avaliação clínica. MÉTODOS: Foram estudados prospectivamente 25 pacientes portadores de hepatopatia crônica do Serviço de Transplante Hepático da Universidade Federal do Paraná por meio de avaliação clínica e espectroscópica. Trinta voluntários sadios formaram o grupo controle, sendo submetidos às mesmas avaliações. Dezesseis dos 25 pacientes também foram avaliados após o transplante. RESULTADOS: Antes do transplante hepático reduções significativas nos índices de MI/Cr e Cho/Cr e aumento significativo no índice de Glx/Cr foram observadas nos pacientes portadores de encefalopatia hepática comparados ao grupo controle. Os critérios quantitativos de Ross para diagnóstico espectroscópico da encefalopatia hepática (MI/Cr e Cho/Cr < média + 2 desvios padrão do grupo controle) demonstraram uma sensibilidade de 61,54%, especificidade de 91,67% e precisão de 76%, sendo que a Cho/Cr foi o melhor parâmetro isolado. A espectroscopia após o transplante mostrou mudanças nos índices metabólicos comparados com o status pré-transplante. CONCLUSÃO: A espectroscopia permite um diagnóstico preciso da encefalopatia hepática. A melhora dos níveis metabólicos após o transplante hepático sugere um importante papel do MI e da Cho no desenvolvimento da encefalopatia hepática.

Análise espectral; Encefalopatia; Transplante de fígado; Espectroscopia de ressonância magnética


OBJECTIVES: To determine the metabolite levels (myo-inositol [MI], choline [Cho], glutamate [Glx], creatine [Cr] and N-acetylaspartate [NAA]) visible on magnetic resonance spectroscopy in patients with chronic hepatic failure, before and after liver transplantation and to correlate these data with results of neuropsychiatric tests and clinical findings. METHODS: Twenty five patients with chronic hepatic failure from the Liver Transplantation Unit of the Federal University of Parana were prospectively studied. Patients were submitted to clinical evaluation and magnetic resonance spectroscopy. Thirty healthy volunteers also submitted to the same evaluations. Sixteen of the 25 patients were evaluated after liver transplantation. RESULTS: Before liver transplantation, significant reductions in MI/Cr and Cho/Cr and a significant increase in Glx/Cr were observed in patients with hepatic encephalopathy compared with healthy subjects. The Ross's criteria for spectroscopic diagnosis of the hepatic encephalopathy (MI/Cr and Cho/Cr lower than 2 SD of controls) demonstrated a sensitivity of 61.54%, specificity of 91.67% and accuracy of 76%, further Cho/Cr was the best parameter. Spectroscopy after liver transplantation showed changes in the metabolite ratios compared with the pretransplantation status. CONCLUSION: Magnetic resonance spectroscopy permits an accurate diagnosis of hepatic encephalopathy. Improvement of metabolic ratios after liver transplantation suggests an important role of MI and Cho in the development of hepatic encephalopathy.

Spectrum analysis; Brain disease; Liver transplantation; Magnetic resonance spectroscopy


ARTIGO ORIGINAL

Espectroscopia cerebral em candidatos a transplante hepático

Cerebral magnetic resonance spectroscopy in patients with hepatic encephalopathy: analysis before and after liver transplantation

Gustavo Justo Schulz* * Correspondência: Rua Professor Pedro Viriato Parigot de Souza, 1900 apto 604 bloco 6, CEP 81200-100 - Curitiba - PR, e-mail: gjschulz@hotmail.com ; Julio Cézar Uili Coelho; Jorge Eduardo Fouto Matias; Antônio Carlos Ligocki Campos; Danielle Duck Schulz; Guilherme Augusto Bertoldi

Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, PR, Brasil

RESUMO

OBJETIVOS: Determinar os níveis dos metabólitos (mio-inositol [MI], colina [Cho], glutamina [Glx], creatina [Cr] e N-acetilaspartato [NAA]) por meio da espectroscopia por ressonância magnética em portadores de hepatopatia crônica, antes e após o transplante hepático, correlacionando com a avaliação clínica.

MÉTODOS: Foram estudados prospectivamente 25 pacientes portadores de hepatopatia crônica do Serviço de Transplante Hepático da Universidade Federal do Paraná por meio de avaliação clínica e espectroscópica. Trinta voluntários sadios formaram o grupo controle, sendo submetidos às mesmas avaliações. Dezesseis dos 25 pacientes também foram avaliados após o transplante.

RESULTADOS: Antes do transplante hepático reduções significativas nos índices de MI/Cr e Cho/Cr e aumento significativo no índice de Glx/Cr foram observadas nos pacientes portadores de encefalopatia hepática comparados ao grupo controle. Os critérios quantitativos de Ross para diagnóstico espectroscópico da encefalopatia hepática (MI/Cr e Cho/Cr < média + 2 desvios padrão do grupo controle) demonstraram uma sensibilidade de 61,54%, especificidade de 91,67% e precisão de 76%, sendo que a Cho/Cr foi o melhor parâmetro isolado. A espectroscopia após o transplante mostrou mudanças nos índices metabólicos comparados com o status pré-transplante.

CONCLUSÃO: A espectroscopia permite um diagnóstico preciso da encefalopatia hepática. A melhora dos níveis metabólicos após o transplante hepático sugere um importante papel do MI e da Cho no desenvolvimento da encefalopatia hepática.

Unitermos: Análise espectral. Encefalopatia. Transplante de fígado. Espectroscopia de ressonância magnética.

SUMMARY

OBJECTIVES: To determine the metabolite levels (myo-inositol [MI], choline [Cho], glutamate [Glx], creatine [Cr] and N-acetylaspartate [NAA]) visible on magnetic resonance spectroscopy in patients with chronic hepatic failure, before and after liver transplantation and to correlate these data with results of neuropsychiatric tests and clinical findings.

METHODS: Twenty five patients with chronic hepatic failure from the Liver Transplantation Unit of the Federal University of Parana were prospectively studied. Patients were submitted to clinical evaluation and magnetic resonance spectroscopy. Thirty healthy volunteers also submitted to the same evaluations. Sixteen of the 25 patients were evaluated after liver transplantation.

RESULTS: Before liver transplantation, significant reductions in MI/Cr and Cho/Cr and a significant increase in Glx/Cr were observed in patients with hepatic encephalopathy compared with healthy subjects. The Ross's criteria for spectroscopic diagnosis of the hepatic encephalopathy (MI/Cr and Cho/Cr lower than 2 SD of controls) demonstrated a sensitivity of 61.54%, specificity of 91.67% and accuracy of 76%, further Cho/Cr was the best parameter. Spectroscopy after liver transplantation showed changes in the metabolite ratios compared with the pretransplantation status.

CONCLUSION: Magnetic resonance spectroscopy permits an accurate diagnosis of hepatic encephalopathy. Improvement of metabolic ratios after liver transplantation suggests an important role of MI and Cho in the development of hepatic encephalopathy.

Key words: Spectrum analysis. Brain disease. Liver transplantation. Magnetic resonance spectroscopy.

Introdução

A encefalopatia hepática (EH) é uma disfunção neuropsiquiátrica reversível, secundária à insuficiência hepática1,2,cuja prevalência é variável. É comumente subestimada em virtude da preservação das habilidades verbais dos pacientes em estágios iniciais da doença. Os testes neuropsicométricos são considerados padrão-ouro no diagnóstico da encefalopatia hepática, porém a sua utilização isolada pode ocasionar erros de interpretação, já que não são específicos dessa doença, além de sofrerem influências da idade e nível de instrução dos pacientes e revelarem pouco sobre o processo neuroquímico envolvido na encefalopatia3.

Evidências crescentes na literatura apontam a importância do diagnóstico e da instituição precoce do tratamento da encefalopatia, de preferência antes do aparecimento de sinais clínicos, visando à preservação das funções cerebrais. Recentemente, refinamentos técnicos na espectroscopia por ressonância magnética (RM) tornaram possível o estudo bioquímico do cérebro humano in vivo, com a identificação e quantificação dos metabólitos cerebrais em regiões específicas4,8,22,29. A encefalopatia hepática é caracterizada por depleção do mio-inositol (MI) e da colina (Cho) associada a um aumento do complexo glutamino-glutamato (Glx). Estas alterações não são encontradas em outras encefalopatias4,5,28.

O transplante hepático é o único tratamento capaz de reverter as disfunções neurológicas verificadas na encefalopatia hepática, evitando o desenvolvimento da degeneração hepatocerebral. A reversibilidade da encefalopatia hepática com o transplante pode ser demonstrada, bioquimicamente, pela espectroscopia3,4,6. O objetivo do presente estudo é determinar as alterações dos níveis dos metabólitos cerebrais por meio da espectroscopia em candidatos a transplante hepático, antes e após o procedimento cirúrgico.

Métodos

Entre outubro de 2002 e novembro de 2003, realizou-se um estudo prospectivo com portadores de doença hepática crônica, candidatos a transplante no Serviço de Transplante Hepático do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Os pacientes foram avaliados por meio de testes neuropsicométricos e espectroscopia.

O grupo de estudo foi formado por 25 pacientes, sendo 19 76%) do sexo masculino e seis (24%) do sexo feminino. A média de idade foi de 51,1±10,27 anos (variando de 31 a 70 anos). A principal causa de disfunção hepática foi hepatite C (44%). A maioria dos pacientes (72%) eram Child-Pugh B.

O grupo controle foi constituído por 30 voluntários sadios. A média de idade do grupo controle foi de 36,43±12,41 anos (variando de 14 a 61 anos). Dezesseis (53,33%) eram do sexo masculino e 14 (46,67%) do sexo feminino.

A encefalopatia hepática foi diagnosticada observando-se os dados do exame clínico, exame neurológico e dos testes neuropsicométricos (TNPS). Para graduação da encefalopatia hepática clínica utilizou-se os critérios de Parsons-Smith7 e para a disfunção hepática, a classificação de Child e Pugh. A avaliação das funções cognitivas foi realizada por meio de TNPS, que incluíram: miniexame do estado mental8,9, teste de trilhas A e B10, subteste de dígitos da bateria Wais-R11, teste de fluência verbal (FAR) e categorias10 e teste do desenho do relógio10.

Para fins de comparação, os indivíduos avaliados foram divididos em três grupos distintos, de acordo com exame clínico e TNPS:

• Grupo 1 (GR1): pacientes com EH (n=13);

• Grupo 2 (GR2): pacientes sem EH (n=12);

• Grupo 3 (GRC): grupo controle - voluntários sadios (n=30)

Dezesseis pacientes do grupo de estudo foram submetidos a transplante hepático e às mesmas avaliações (clínicas e espectroscópicas) no primeiro mês de pós-operatório. Destes, 14 puderam ser reavaliados com 90 dias de pós-operatório.

A espectroscopia foi realizada com um aparelho de ressonância com 1,5T (Magnetom Vision; Siemens, Erlanger, Germany) utilizando-se uma bobina polarizada circular posicionada junto à cabeça dos examinados. Para os exames de controle pós-operatório, a exata reprodução da localização espectral foi conseguida mediante a

aquisição prévia de três cortes (sagital, transversal e coronal) na RM em T2 (tempo de relaxamento transversal dos núcleos) utilizando-se a técnica de fast spin echo para posicionamento tridimensional do volume de interesse (voxel) na parte medial do lobo occipital (substância branca e cinzenta) com 2 X 3 X 2 cm8,12.

Para detecção e quantificação do MI e Glx, foram utilizadas sequências espectroscópicas com tempo de eco (TE) curto, ou seja, 20mseg. O tempo de repetição (TR) escolhido foi de 1500mseg associado a uma supressão do sinal dominante da água18. Para sequência de pulso, optou-se pela técnica PRESS ("point-resolved spectroscopy"). A análise da curva espectral foi feita por meio de um software específico desenvolvido pela GE/Siemens, mediante o qual se consegue localizar os picos de cada metabólito conforme a frequência espectral correspondente3,13-19.

Em virtude da intensa sobreposição de Glx com o pico dos radicais metileno (amino-butirato, NAA e aspartato), uma integração manual foi processada entre 2,15 e 2,45ppm para o pico de Glx, com o objetivo de representar fielmente o nível de glutamina18. Este foi o único metabólito em que se avaliou a área envolvida abaixo da curva e não o pico, tendo em vista não formar um pico único como os outros metabólitos analisados.

Após a determinação de cada pico a ser estudado e seus respectivos valores em Unidades de Ressonância (UR), fornecidos pelo software da GE/Siemens, foram calculados os índices absolutos para MI, Cho e Glx em relação a Cr, usada como padrão de comparação, conforme proposto por Kreis, em 1992,4 e Ross, em 19943. O grupo controle foi usado como referência da normalidade em função da técnica de RM utilizada neste estudo.

O diagnóstico espectroscópico da encefalopatia hepática foi estabelecido segundo os Critérios de Ross3, ou seja, quando os pacientes apresentavam o MI/Cr e Cho/Cr dois desvios padrão abaixo dos controles (MI/Cr e Cho/Cr < média - 2 desvios padrão do grupo controle) com ou sem Glx/Cr um desvio padrão acima dos controles (Glx/Cr > média + 1 desvio padrão do grupo controle). Esses critérios foram comparados com o teste padrão (TNPS) para avaliação dos índices de qualidade da espectroscopia no diagnóstico da encefalopatia hepática. Repetiram-se os critérios em cada reavaliação dos pacientes transplantados com 30 e 90 dias da cirurgia. Considerou-se como melhora clínica no pós-transplante a normalização de pelo menos um dos TNPS alterados no pré-transplante.

Foram testadas as diferenças significativas entre os grupos por meio do teste não-paramétrico de Kruskal-Wallis. Aplicaram-se os mesmos critérios em cada reavaliação.

Resultados

Antes do transplante hepático

Dos 25 pacientes avaliados, 13 apresentavam encefalopatia hepática (EH), sendo clinicamente aparente em apenas um paciente (4%).

O índice médio de NAA/Cr nos pacientes do GR1 (com EH) foi 1,92±0,24, não apresentando diferença estatística em relação aos pacientes do GR2 (sem EH) e GRC, cujos índices foram 1,91±0,22 e 1,89±0,28, respectivamente (teste de Kruskal-Wallis, p=0,9126). Em relação ao MI/Cr, o índice médio nos pacientes do GR1 foi 0,49±0,10 e nos pacientes do GR2 foi 0,56±0,17, sendo em ambos os grupos inferior a dois desvios padrão do índice médio do GRC, 0,83±0,13 (teste de Kruskal-Wallis, p<0,0001). Resultados similares foram observados para o índice médio de Cho/Cr: 0,54±0,15 nos pacientes do GR1; 0,67±0,13 nos pacientes do GR2 e 0,77±0,09 no GRC (teste de Kruskal-Wallis, p=0,0001). A diferença no índice médio do Glx/Cr entre os grupos foi menor, porém igualmente significativa: 1,12±0,26 no GR1; 1,00±0,28 no GR2 e 0,89±0,19 no GRC (teste de Kruskal-Wallis, p=0,0146).

Em uma análise geral, o índice MI/Cr encontrava-se depletado em 64% dos pacientes, o índice Cho/Cr em 48%, enquanto a Glx/Cr encontrava-se acima dos controles em 52% dos pacientes.

Dos 13 pacientes com EH pelos TNPS, a espectroscopia foi positiva em oito (61,5%) e negativa em 11 dos 12 pacientes sem EH (91,6%). Um paciente apresentava critérios espectroscópicos para diagnóstico de EH, apesar de não apresentar alterações nos TNPS. Cinco pacientes apresentavam espectroscopia falso-negativa, acarretando um valor preditivo negativo (VPN) baixo. Quando se utilizaram os critérios de Ross para diagnóstico espectroscópico da EH, a sensibilidade (S) foi de 61,54%, a especificidade (E) de 91,67%, o valor preditivo positivo (VPP) de 88,89%, o valor preditivo negativo (VPN) de 68,75% e a precisão de 76%.

Quando se analisou apenas a Cho/Cr como critério diagnóstico da EH na espectroscopia, observaram-se resultados mais parecidos aos obtidos com a utilização dos critérios de Ross, porém com maior sensibilidade e menor especificidade. Nesse caso, a sensibilidade foi de 76,92%, especificidade de 83,33% e precisão de 80%.

Dos 16 pacientes transplantados com seguimento pós-operatório, os índices de MI/Cr, Cho/Cr e Glx/Cr encontravam-se em níveis patológicos em seis pacientes. O exame clínico e os TNPS revelaram sinais de EH em cinco dos seis pacientes. Os cinco pacientes preenchiam os critérios espectroscópicos para diagnóstico de EH definidos por Ross et al3.

Após o transplante hepático

Avaliação em 30 dias de pós-operatório

Houve acréscimo dos valores de MI/Cr e Cho/Cr e decréscimo dos valores de Glx/Cr, não existindo mais diferença estatística em relação ao grupo controle. Valores patológicos de Glx/Cr ainda persistiam em alguns pacientes. Não houve diferença estatística em relação aos índices de NAA/Cr com 30 dias de pós-operatório.

Avaliação em 90 dias de pós-operatório

A avaliação envolveu nove pacientes do grupo com EH e cinco pacientes do grupo sem EH.

Houve melhora clínica (exame clínico e TNPS) em sete dos nove pacientes do grupo com EH; e nenhum deles, à avaliação espectroscópica cerebral, preenchia os critérios de Ross para diagnóstico de EH. Dos dois pacientes que não obtiveram melhora clínica, o MI/Cr encontrava-se em níveis patológicos em um deles.

Ao analisar-se a espectroscopia isoladamente, nota-se um acréscimo de MI/Cr e Cho/Cr acima dos controles em ambos os grupos. O índice de Glx/Cr praticamente equiparou-se aos controles. Não houve diferença estatística em relação ao índice de NAA/Cr.

Comparação dos índices espectroscópicos nos diferentes momentos da avaliação

Para o MI/Cr, percebeu-se uma melhora significativa (p< 0,05) nos valores absolutos após 30 dias da realização do transplante hepático, chegando a suplantar os controles com 90 dias de pós-operatório em ambos os grupos.

Na avaliação do índice de Cho/Cr, verificou-se um acréscimonos valores absolutos, suplantando os controles com 30 e 90 dias de pós-operatório. Para esta variável a diferença não foi significativa no grupo sem EH em nenhum momento.

Quanto ao índice de Glx/Cr, houve um decréscimo mais tardio, ou seja, após 90 dias de pós-operatório para os pacientes com EH. Portanto, com a utilização dos critérios de Ross ou dos índices MI/Cr e Cho/Cr isoladamente atingiu-se 100% de especificidade.

O índice que atingiu a maior sensibilidade para diagnóstico da reversão da EH foi o MI/Cr, com 50%, além de um VPP de 100%, VPN de 87,5% e precisão de 88,89%.

Discussão

No Brasil, o número de transplantes aumentou expressivamente a partir da década de 90 com a nova lei de transplante de órgãos e tecidos, quando o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a pagar os hospitais credenciados. No serviço de transplante da UFPR são realizados em média 35 transplantes hepáticos por ano.

No período pós-transplante, as alterações neurológicas são causas frequentes de morbimortalidade, podendo afetar 13,2% a 90% dos pacientes, conforme diferentes séries20.

Estudos utilizando TNPS, EEG e espectroscopia têm demonstrado que disfunções cognitivas (EH leve ou subclínica) são comuns em pacientes portadores de hepatopatia crônica com função mental aparentemente normal ao exame clínico5,15,22-25.

A prevalência de EH subclínica nesta casuística foi de 48%. Este dado coincide com a literatura, que aponta uma prevalência de EH subclínica em portadores de cirrose hepática que varia de 44% a 100% dos casos, dependendo dos testes utilizados e da população estudada3,23,24,26. As funções sabidamente afetadas nos estágios precoces da EH são as psicomotoras e funções visuo-espaciais, ambas de difícil detecção no exame neurológico habitual e, frequentemente, negligenciadas sem a utilização de testes específicos3. A importância da EH subclínica pode ser demonstrada por meio de três fatores principais. Primeiro, esses déficits neuropsicométricos podem resultar em redução da habilidade dos indivíduos em executar tarefas simples do dia-a-dia, conferindo um risco aumentado de acidentes de trabalho. Segundo, podem se traduzir em deterioração da qualidade de vida destes pacientes. Terceiro, a EH subclínica poderia ser um marcador de futuros episódios de EH clinicamente aparente, sendo que muitos estudos demonstram disfunções cerebrais progressivas em pacientes que não apresentavam evidências clínicas de EH25. Nesta casuística, 52% dos pacientes avaliados apresentaram pelo menos dois TNPS alterados.

A história natural da EH subclínica ainda não é bem conhecida. Em um artigo bastante provocativo, Krieger16 demonstrou a presença de déficits neurológicos persistentes a despeito do tratamento clínico da EH em cirróticos. Baseado nestes achados, sugeriu que a EH poderia ser uma desordem neurodegenerativa lentamente progressiva16,32. Isto vai contra o fato de a EH ser encarada como uma simples encefalopatia metabólica reversível. Contudo, o transplante hepático parece reverter as anormalidades motoras e cognitivas dos cirróticos, como demonstrado no presente estudo, e danos estruturais maiores no cérebro são incomuns. Mais estudos são necessários para confirmar a aparente resolução das disfunções corticais e subcorticais nos pacientes com EH submetidos a transplante.

As alterações metabólicas cerebrais encontradas nos cirróticos com EH clínica ou subclínica podem ser detectadas de maneira não-invasiva com a utilização da espectroscopia. Este exame apresenta especificidade próxima a 100%, uma vez que as alterações identificadas na EH (depleção do MI/Cr e Cho/Cr com ou sem alteração do Glx) não são encontradas em outras encefalopatias21. O que se defende é a utilização conjunta da espectroscopia e TNPS, o que determinaria uma alta sensibilidade (TNPS) associada a uma alta especificidade (espectroscopia) no diagnóstico da EH. Isto é particularmente importante no período pós-transplante, em que vários fatores podem ser causa de alterações neurológicas nos transplantados e de difícil discernimento clínico entre eles.

Poucos estudos na literatura descrevem os achados espectroscópicos em pacientes cirróticos submetidos a transplante3,4,12,18,19,30 . A EH é caracterizada por um decréscimo substancial no mio-inositol (MI) e colina (Cho) associado a um aumento tardio de glutamina (Glx).

A despeito dos achados espectroscópicos positivos, o papel do MI e da Cho no cérebro humano, e especialmente em EH, não está completamente esclarecido. Na disfunção hepática crônica, uma diminuição da atividade do ciclo da ureia parece ser a responsável pela elevação do nível cerebral da glutamina, cuja síntese é aumentada nos astrócitos14. Tem sido demonstrado que o MI, que está localizado quase que exclusivamente nos astrócitos, pode servir como um metabólito osmoticamente ativo e tem um importante papel na regulação do volume destas células5,14. É relatado que o MI é considerado um marcador astrocitário, tanto quanto seu mensageiro neuronal - polifosfato de inositol, admitindo-se um papel excitatório maior. Sendo assim, o edema das células da glia induzido pela amônia (não metabolizada pelo fígado cirrótico ou desviada por derivações portossistêmicas) induz uma alta concentração celular de glutamina e liberação compensatória de MI desencadeando a EH. Neste mesmo raciocínio, pode-se encaixar a Cho, que também é considerada um metabólito osmoticamente ativo presente na mielina, membranas celulares e outros complexos cerebrais lipídicos. Em condições patológicas pode sofrer alterações como ocorrem com o MI.

Conclusão

A espectroscopia permite um diagnóstico preciso da encefalopatia hepática, mesmo em seus estágios mais precoces. A melhora dos níveis metabólicos após o transplante hepático sugere um importante papel do MI e da Cho no desenvolvimento da encefalopatia hepática, porém mais estudos são necessários.

Conflito de interesse: não há

Artigo recebido: 03/05/07

Aceito para publicação: 17/08/08

Trabalho realizado no Serviço de Transplante Hepático do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR

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    Correspondência: Rua Professor Pedro Viriato Parigot de Souza, 1900 apto 604 bloco 6, CEP 81200-100 - Curitiba - PR, e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Aceito
      17 Ago 2008
    • Recebido
      03 Maio 2007
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