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Existe evidência para tratar insuficiência cardíaca baseada na raça ou etnia?

Is there evidence to treat heart failure based on race or ethnicity?

Resumos

OBJETIVO: Avaliar se existe evidência que apóie diferentes intervenções para tratar insuficiência cardíaca baseada na raça ou etnia. MÉTODOS: Revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados que permitiram comparar negros e brancos com insuficiência cardíaca sistólica crônica quanto à eficácia de inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA), betabloqueadores e combinação hidralazina/nitrato na redução dos riscos de morte e hospitalização. A pesquisa foi baseada em artigos publicados entre 1980 e dezembro de 2006, citados no Medline ou Lilacs. RESULTADOS: Três estudos preencheram os critérios da revisão. No SOLVD, enalapril foi eficaz em reduzir similarmente o risco de morte ou hospitalização em brancos (redução relativa do risco(RRR)=18%) e negros (RRR= 17%). No US Carvedilol, carvediol foi também associado a importante redução do risco de morte ou hospitalização tanto em brancos (RRR=49%) quanto em negros (RRR=43%). No V-HeFT II, enalapril foi superior a hidralazina/nitrato em reduzir o risco de morte apenas em brancos. CONCLUSÃO: De acordo com os dados, inibidores da ECA e betabloqueadores devem ser considerados os medicamentos básicos para melhorar o prognóstico da insuficiência cardíaca tanto em negros quanto em brancos. O estudo A-HeFT não foi incluído na revisão por ser restrito a negros; contudo deve ser visto como evidência que a combinação hidralazina e nitrato é eficaz em melhorar a sobrevida de pacientes com insuficiência cardíaca avançada. Os dados apóiam o desenvolvimento de um ensaio clinico especialmente desenhado para avaliar se a combinação hidralazina/nitrato é também eficaz em pacientes com insuficiência cardíaca avançada não classificados como negros.

Insuficiência cardíaca; Tratamento; Raça; Revisão sistemática


OBJECTIVE: To assess if there is evidence to support different interventions for treatment of heart failure based upon race/ethnicity. METHODS: Systematic review of randomized clinical trials permitted comparisons between blacks and whites with systolic heart failure concerning the efficacy of angiotensin converting enzyme (ACE) inhibitors, beta blockers and a combination of hydralazine/ nitrate to reduce the risks of death and hospitalization. The literature search was based on articles published between 1980 and December 2006 cited in MEDLINE or LILACS. RESULTS: Three studies fulfilled the criteria of the reiew. In SOLVD, enalapril was efficient in reducing the risks of death or hospitalization similarly in whites (relative risk reduction (RRR) =18%) and blacks (RRR=17%). In US Carvedilol, carvediol was also associated with significant reduction in the risk of death or hospitalization both in whites (RRR=49%) and blacks (RRR=43%). In V-HeFT II, enalapril was superior to the combination hydralazine with nitrate in reducing the death risk only in whites. CONCLUSION: According to the data ACE inhibitors and beta blockers should be considered as the essential drugs to improve the prognosis of heart failure both in blacks and whites. The A-HeFT study was not included in the review because it was restricted to blacks; however, it should be viewed as evidence that the combination hydralazine/nitrate is beneficial to improve survival in patients with advanced heart failure. Data support development of a clinical trial especially designed to assess if the combination hydralazine/nitrate is also efficient in patients not classified as blacks, with advanced heart failure.

Heart failure; Therapy; Race; Systematic Review


ARTIGO ORIGINAL

Existe evidência para tratar insuficiência cardíaca baseada na raça ou etnia?

Is there evidence to treat heart failure based on race or ethnicity?

Adriana Lopes LatadoI, * * Correspondência: Rua Rosa dos Ventos, 39/1002 - Brotas. CEP 40286-040. Salvador - BA. adrianalatado@cardiol.br ; Marcelo Barreto LopesII; Luiz Carlos Santana PassosIII; Antonio Alberto LopesIV

INúcleo de Epidemiologia Clínica e Medicina Baseada em Evidências do Hospital Universitário Professor Edgard Santos, Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA

IIHospital Central Roberto Santos da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. Salvador, BA

IIIProfessor Adjunto de Medicina Interna da Faculdade de Medicina da Bahia, UFBA, Salvador, BA

IVNúcleo de Epidemiologia Clínica e Medicina Baseada em Evidências do Hospital Universitário Professor Edgard Santos e Departamento de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar se existe evidência que apóie diferentes intervenções para tratar insuficiência cardíaca baseada na raça ou etnia.

MÉTODOS: Revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados que permitiram comparar negros e brancos com insuficiência cardíaca sistólica crônica quanto à eficácia de inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA), betabloqueadores e combinação hidralazina/nitrato na redução dos riscos de morte e hospitalização. A pesquisa foi baseada em artigos publicados entre 1980 e dezembro de 2006, citados no Medline ou Lilacs.

RESULTADOS: Três estudos preencheram os critérios da revisão. No SOLVD, enalapril foi eficaz em reduzir similarmente o risco de morte ou hospitalização em brancos (redução relativa do risco(RRR)=18%) e negros (RRR= 17%). No US Carvedilol, carvediol foi também associado a importante redução do risco de morte ou hospitalização tanto em brancos (RRR=49%) quanto em negros (RRR=43%). No V-HeFT II, enalapril foi superior a hidralazina/nitrato em reduzir o risco de morte apenas em brancos.

CONCLUSÃO: De acordo com os dados, inibidores da ECA e betabloqueadores devem ser considerados os medicamentos básicos para melhorar o prognóstico da insuficiência cardíaca tanto em negros quanto em brancos. O estudo A-HeFT não foi incluído na revisão por ser restrito a negros; contudo deve ser visto como evidência que a combinação hidralazina e nitrato é eficaz em melhorar a sobrevida de pacientes com insuficiência cardíaca avançada. Os dados apóiam o desenvolvimento de um ensaio clinico especialmente desenhado para avaliar se a combinação hidralazina/nitrato é também eficaz em pacientes com insuficiência cardíaca avançada não classificados como negros.

Unitermos: Insuficiência cardíaca. Tratamento. Raça. Revisão sistemática.

SUMMARY

OBJECTIVE: To assess if there is evidence to support different interventions for treatment of heart failure based upon race/ethnicity.

METHODS: Systematic review of randomized clinical trials permitted comparisons between blacks and whites with systolic heart failure concerning the efficacy of angiotensin converting enzyme (ACE) inhibitors, beta blockers and a combination of hydralazine/ nitrate to reduce the risks of death and hospitalization. The literature search was based on articles published between 1980 and December 2006 cited in MEDLINE or LILACS.

RESULTS: Three studies fulfilled the criteria of the reiew. In SOLVD, enalapril was efficient in reducing the risks of death or hospitalization similarly in whites (relative risk reduction (RRR) =18%) and blacks (RRR=17%). In US Carvedilol, carvediol was also associated with significant reduction in the risk of death or hospitalization both in whites (RRR=49%) and blacks (RRR=43%). In V-HeFT II, enalapril was superior to the combination hydralazine with nitrate in reducing the death risk only in whites.

CONCLUSION: According to the data ACE inhibitors and beta blockers should be considered as the essential drugs to improve the prognosis of heart failure both in blacks and whites. The A-HeFT study was not included in the review because it was restricted to blacks; however, it should be viewed as evidence that the combination hydralazine/nitrate is beneficial to improve survival in patients with advanced heart failure. Data support development of a clinical trial especially designed to assess if the combination hydralazine/nitrate is also efficient in patients not classified as blacks, with advanced heart failure.

Key words:Heart failure. Therapy. Race. Systematic Review.

INTRODUÇÃO

Estudos desenvolvidos nos Estados Unidos comparando grupos étnicos ou raciais têm sido importantes para mostrar as desigualdades existentes na sociedade norte-americana e para ajudar a identificar fatores que contribuem para a menor expectativa de vida em negros do que em brancos1, 2. Uma das razões para o excesso de morte em negros (comparado com brancos) é a maior prevalência e o pior prognóstico de doença cardiovascular, particularmente a hipertensão arterial e complicações relacionadas como o acidente vascular encefálico e a insuficiência cardíaca3-5.

Diferenças raciais em indicadores de nível socioeconômico não conseguem explicar totalmente o excesso de mortes na população de raça negra, comparativamente à população de raça branca, particularmente mortes por doença cardiovascular e complicações como a insuficiência cardíaca6. Este achado tem reforçado a idéia de que parte das diferenças raciais em eventos cardiovasculares são mediadas por fatores genéticos que determinam a gravidade da doença e resposta a medicamentos específicos. Em verdade, diferenças entre negros e brancos na intensidade de resposta a certos medicamentos utilizados no tratamento da insuficiência cardíaca têm sido observadas7, 8. No entanto, estes achados isoladamente não devem ser vistos como suficientes para apoiar recomendações específicas de tratamento para negros e brancos.

O esclarecimento da questão do papel da raça no tratamento da insuficiência cardíaca é importante também para a população brasileira que tem como traço marcante a forte influência da ancestralidade africana na sua formação9. A influência da ancestralidade africana é mais notório em certas cidades do nordeste do Brasil, sendo Salvador, capital da Bahia, o melhor exemplo. Os dados indicam que os problemas cardiovasculares, em especial a hipertensão arterial e insuficiência cardíaca, também contribuem para o excesso de mortalidade em população de negros e miscigenados aqui no Brasil10. Reconhecendo o problema o Ministério de Saúde do Brasil definiu a "Política Nacional de Saúde Integral da População Negra" que inclui ações visando promoção e cuidados especiais à saúde, produção de conhecimento, formação e educação permanente de trabalhadores de saúde, visando eliminar as desigualdades em saúde da nossa população por raça ou cor11. No que diz respeito especificamente à insuficiência cardíaca, o tratamento das causas primárias como a hipertensão arterial deve ser visto como prioritário no sentido de reduzir as diferenças raciais12. É também importante estabelecer estratégias de tratamento visando reduzir morbidade e mortalidade dos que apresentam manifestações de insuficiência cardíaca quando procuram cuidados médicos.

Este trabalho tem como foco o grupo de paciente que procura cuidados médicos apresentando sintomas de insuficiência cardíaca. O estudo consiste em uma revisão sistemática da literatura visando identificar e analisar ensaios clínicos que compararam esquemas terapêuticos para a insuficiência cardíaca por disfunção sistólica em pacientes negros e brancos. Avaliamos também se existe diferença entre negros e brancos nos efeitos de tratamentos na redução de riscos de eventos adversos (hospitalização e morte) que justifique a escolha de medicamentos, tomando por base a raça do paciente.

MÉTODOS

Estratégia de pesquisa da literatura para seleção dosartigos

Foi feita uma pesquisa no Medline utilizando o Pubmed, de artigos publicados no período de 1980 até dezembro de 2006 que permitissem comparar negros e brancos com insuficiência cardíaca sistólica crônica quanto à eficácia de inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA), betabloqueadores e combinação hidralazina com nitrato. Utilizou-se a seguinte combinação das palavras chaves: race ou black ou white ou African-American ou racial combinado com o termo heart failure e as palavras treatment ou treatments. Foram inicialmente considerados todos os tipos de estudos, resultando num total de 1.251 artigos. Ao restringir a pesquisa para ensaios clínicos randomizados com grupos paralelos, o número de estudos foi reduzido para 59. Foi feita semelhante pesquisa no Lilacs, porém nenhum ensaio clínico foi localizado.

Foram incluídos apenas os artigos que abordassem como análise principal ou secundária (análise de subgrupos) possíveis diferenças entre grupos raciais no benefício de drogas vasodilatadoras (hidralazina e nitrato), inibidores da ECA e betabloqueadores no contexto de insuficiência cardíaca sistólica crônica. Foram selecionados ensaios clínicos com seguimento = 6 meses, que tiveram como desfecho clinico morte ou hospitalização.

Análise estatística

O número necessário para tratar (NNT), estratificado por grupo racial, foi calculado para cada intervenção farmacológica, tomando-se por base o risco no grupo controle (tratado com tratamento admitido como o mais adequado na época, com ou sem placebo para o tratamento testado) e aplicando-se a seguinte fórmula: NNT = 1/ (risco no controle x redução relativa do risco[RRR]). A RRR foi obtida, sempre que possível, dos RR (ou seja 1 - RR) por meio dos modelos de riscos proporcionais de Cox utilizados nos trabalhos originais ou determinados utilizando os números absolutos de pacientes com e sem determinado desfecho (ou evento) descritos nos artigos . O Statcalc do Epiinfo versão 6 foi utilizado para determinar intervalo de confiança de 95% do RR não informado na publicação original.

RESULTADOS

Dos 59 artigos iniciais, 46 foram excluídos porque não avaliaram a questão de interesse desta revisão sistemática. Dos 13 restantes, cinco estudos preencheram os critérios de inclusão, porém dois não foram incluídos nos resultados desta revisão devido a limitações para a obtenção dos dados estratificados pelos diferentes grupos raciais. Estes dois artigos, assim como os oito restantes, contribuíram para a discussão final do presente trabalho, juntamente aos estudos considerados pertinentes após avaliação das listas de referências de todos os 59 artigos da seleção inicial. Foram, então, detalhadamente avaliados três ensaios clínicos na presente revisão (Tabela 1).

As características basais dos pacientes randomizados para cada ensaio clínico estão listadas na Tabela 2. Os desfechos clínicos avaliados foram mortalidade (geral ou específica por insuficiência cardíaca) ou hospitalização por insuficiência cardíaca (Tabela 3). Nenhum dos estudos foi desenvolvido especificamente para testar se existia diferença na resposta terapêutica entre os grupos étnicos/raciais, sendo as comparações parte de análises de subgrupos que não fizeram parte do plano inicial dos estudos13-15.

O primeiro artigo desta revisão é derivado do US Carvedilol Study, uma coorte randomizada de pacientes com insuficiência cardíaca sistólica crônica, cujo objetivo principal foi avaliar a eficácia do carvedilol na redução de desfechos clínicos adversos. Yancy et al.13 estudaram uma amostra de 1094 pacientes e compararam o efeito do carvedilol (vs placebo) no subgrupo de negros (217 indivíduos) em relação aos não negros (877 indivíduos, europeus, asiáticos ou descendentes de nativos americanos). O carvedilol reduziu o risco de morte por qualquer causa em ambos os grupos raciais/étnicos (redução de 56% em negros e 68% em não negros). No desfecho combinado de mortalidade geral ou hospitalização, o carvedilol também foi significativamente superior ao placebo na redução de eventos, tanto em negros quanto em brancos (redução de 48% e 30%, respectivamente). Entres os pacientes randomizados para o grupo placebo, os negros apresentaram maiores taxas de mortalidade. Não se observou, no entanto, diferença no efeito do carvedilol na redução de desfecho clínico combinado entre negros e brancos. Conforme mostrado na Tabela 3, no US Carvedilol, carvediol foi associado a importante redução do risco combinado de morte ou hospitalização tanto em brancos (RRR=49%) quanto em negros (RRR=43%); o NNT de evento combinado foi de 15 em brancos e 16 em negros.

Usando os dados do estudo SOLVD prevenção, Dries et al.14 fizeram uma reanálise do efeito do enalapril vs placebo nos desfechos morte e surgimento de insuficiência cardíaca sintomática, comparando brancos e negros (Tabela 3). De uma forma geral, os pacientes negros (n=403), quando comparados aos brancos (n=3651), tiveram maior risco para o desenvolvimento de sintomas de insuficiência cardíaca e dos demais desfechos clínicos, mesmo após ajuste para covariáveis. O tratamento com enalapril foi, entretanto, capaz de reduzir de modo similar o risco de insuficiência cardíaca sintomática em negros (RR=0,67; IC 95% 0,49-0,92) e em brancos (RR=0,61; IC 95% 0,47-0,65), mesmo após análise multivariada. Para os desfechos primeira admissão por insuficiência cardíaca e morte ou primeira admissão por insuficiência cardíaca, a análise multivariada demonstrou um efeito benéfico e estatisticamente significante do enalapril nos pacientes brancos (RR=0,64; IC 95% 0,52-0,80 e RR=0,82; IC 95% 0,71-0,94, respectivamente). Nos negros, observou-se também uma redução no risco destes desfechos no grupo do enalapril, porém esta diferença não alcançou significância estatística (RR=0,84; IC 95%=0,53-1,31 para hospitalização por insuficiência cardíaca e RR=0,83; IC 95%=0,60-1,16 para morte ou primeira admissão por insuficiência cardíaca) (Tabela 3). A ausência de significância estatística, no entanto, pode ter ocorrido devido ao menor número de negros no estudo. No SOLVD, enalapril reduziu similarmente o risco combinado de morte ou hospitalização em brancos (redução relativa do risco (RRR)=18%) e negros (RRR=17%). O NNT do risco de evento combinado (i.e., morte ou hospitalização) foi de 29 em brancos e 38 em negros. O NNT de insuficiência cardíaca sintomática no SOLVD foi de 11 em brancos e 10 em negros (Tabela 3).

Carson et al.15 publicaram uma análise retrospectiva dos trabalhos Vasodilator-Heart Failure Trial Study Group (V-HeFT) I e II com o objetivo de comparar a resposta à terapia para insuficiência cardíaca entre pacientes negros e brancos. Os pacientes eram todos do sexo masculino. No V-HeFT I, dos 630 pacientes randomizados, 180 eram negros. Os pacientes foram alocados em três grupos de tratamento: combinação de hidralazina/nitrato, prazosin ou placebo. A mortalidade no grupo placebo foi semelhante nos pacientes negros e brancos. Nos indivíduos negros, a taxa de mortalidade anual foi significativamente menor no grupo que usou a combinação hidralazina/nitrato em comparação ao grupo placebo (9,7% e 17,3%, p=0,04). Não houve diferença nas taxas de morte dos pacientes negros que usaram placebo ou prazosin. Nos pacientes brancos (n=480), nenhum efeito estatisticamente significante em reduzir mortalidade foi demonstrado nos grupos de tratamento em comparação ao grupo placebo. Os números e a frequência de hospitalizações foram semelhantes nos dois grupos étnicos/raciais, independente do tipo de terapia utilizada. No V-HeFT II, foram avaliados 215 pacientes negros e 574 pacientes brancos, randomizados para receber enalapril ou a combinação hidralazina/nitrato. O tratamento com enalapril foi superior à combinação hidralazina/nitrato em reduzir a mortalidade anual nos pacientes de raça/etnia branca (11% e 14,9%, p=0,02). Não houve diferença na mortalidade anual de pacientes negros que utilizaram enalapril ou hidralazina/nitrato (12,8% e 12,9%, respectivamente). Em análise de subgrupo posterior, apenas os pacientes brancos com história de hipertensão arterial sistêmica tiveram uma redução significante de mortalidade com o uso de enalapril, comparado à terapia de hidralazina e nitrato. Novamente, não se demonstrou diferença nas taxas de hospitalizações entre pacientes negros ou brancos, nem entre os grupos de tratamento (Tabela 3).

DISCUSSÃO

Nesta revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados em insuficiência cardíaca publicados nos últimos 25 anos, não encontramos evidências científicas que suportem a idéia de que o tratamento farmacológico eficaz para pacientes com insuficiência cardíaca sistólica deva ser baseado na etnia dos indivíduos. Apesar disso, os dados disponíveis sugerem uma diferença de magnitude de efeito entre pacientes brancos e negros em relação ao uso comparativo isolado de inibidores da ECA vs a combinação hidralazina/nitrato. Isto é diferente do que ocorre com os betabloqueadores, cujo efeito parece muito similar para ambos os grupos raciais em seguimento clínico maior do que dois anos13.

Os indivíduos negros apresentaram maior taxa de desfechos clínicos em alguns dos estudos revisados ao compararmos os grupos placebos de indivíduos negros e brancos13, 14, porém os dados indicam que, quando adequadamente tratados, os pacientes negros com insuficiência cardíaca sistólica apresentam beneficio clínico similar ao dos pacientes brancos. É fato que, na maioria dos estudos avaliados, os negros estiveram subrepresentados. No estudo SOLVD14, pacientes negros representaram apenas 10% da amostra total e poder estatístico insuficiente pode ter sido a razão para ausência de significância estatística na prevenção de eventos clínicos em negros assintomáticos tratados com enalapril neste ensaio clínico. Esta também pode ser a explicação para a redução não estatisticamente significante de mortalidade obtida com carvedilol (vs placebo) em negros, no estudo US Carvedilol13. Todavia, o menor número de pacientes negros não é suficiente para explicar os achados da reanálise de Carson et al. sob a população do estudo V-HeFT II15. Os resultados desta análise sugerem que os inibidores da ECA são superiores em reduzir a mortalidade do que a combinação hidralazina/nitrato entre os indivíduos brancos, o que não ocorreu em negros. A despeito do menor número de negros no estudo, poderíamos supor ausência de efeitos benéficos dos inibidores da ECA entre eles.

O estudo African-American Heart Failure Trial (A-HeFT) não foi incluído na revisão por ser restrito a negros16. O A-HeFT mostrou evidência de que a combinação hidralazina/nitrato reduz a hospitalização por insuficiência cardíaca (em 33%) e morte (em 40%) em pacientes negros com insuficiência cardíaca sistólica grave, já tratados com inibidores da ECA, betabloqueadores ou antagonistas do receptor da angiotensina II. Foram 1050 pacientes negros americanos randomizados para o uso de hidralazina e nitrato em dose fixa (518 pacientes) ou placebo (532 pacientes), além da terapia convencional. O estudo foi interrompido precocemente devido a risco de morte significantemente maior no grupo placebo que no grupo que recebeu hidralazina e nitrato após seguimento médio de 10 meses (10,2% vs 6,2%, p=0,02).

Como integrar então os resultados do SOLVD14, da reanálise dos V-HeFT feita por Carson et al.15 e os recentes achados do A-HeFT16? Parece possível que, entre os negros, os efeitos benéficos de hidralazina/nitrato e dos inibidores da ECA em aumentar a sobrevida sejam semelhantes e que, numa comparação direta, a diferença no efeito de ambos seja nula, o que não parece ocorrer entre os pacientes brancos. No entanto, a ação aditiva ou sinérgica de hidralazina/nitrato com inibidores da ECA demonstrada em negros, no estudo A-HeFT16, sucinta ao menos duas questões maiores. Tal magnitude de efeito também ocorreria entre os brancos? Qual o mecanismo fisiopatológico para essa possível diferença de efeitos caso ela realmente exista? Dessa forma, reconhecemos a contribuição significativa do A-HeFT16 em identificar intervenções terapêuticas para melhorar a sobrevida e a qualidade de vida de negros com insuficiência cardíaca, embora sem comparação direta baseada na etnia. Este estudo chama atenção para a capacidade de a combinação hidralazina/nitrato aumentar a sobrevida de pacientes negros com insuficiência cardíaca já em uso de inibidores da ECA e betabloqueadores.

Quanto ao desfecho hospitalização, os resultados avaliados são mais controversos. No estudo SOLVD14, observou-se um benefício da terapia com enalapril na redução de admissões hospitalares por insuficiência cardíaca em pacientes brancos e negros, porém este efeito foi maior e estatisticamente significante apenas nos indivíduos brancos. Como os negros representaram apenas 10% da amostra deste estudo, isto deve ter influenciado tal achados. Na reanálise dos estudos V-HeFT I e II15, por outro lado, não se observou benefícios na redução de rehospitalizações a favor de nenhum grupo de tratamento, em nenhum grupo racial. Já no estudo A-HeFT16, a combinação de hidralazina/nitrato foi eficaz em reduzir hospitalização por insuficiência cardíaca em pacientes negros portadores de insuficiência cardíaca sistólica já tratados com inibidor de ECA e betabloqueador. Por fim, parte das controvérsias sobre rehospitalizações pode estar relacionada a outras variáveis que têm sido estudadas mais recentemente sobre determinantes psicossociais de morbidade, que talvez exijam a inclusão de características menos evidentes do que aquelas utilizadas quando analisamos mortalidade17.

A despeito de toda essa discussão ser relevante para o entendimento e avanço no tratamento da insuficiência cardíaca sistólica, é importante lembrar das dificuldades conceituais que envolvem a etnia/raça e o seu papel nas diferentes apresentações das doenças e da resposta a tratamentos. Diferenças étnicas no efeito de drogas podem ser consequência de diferenças genéticas e ambientais dos indivíduos, como também diferenças fundamentais na própria patogênese das doenças18. As diferenças genéticas entre grupos raciais, por sua vez, decorrem das diversidades na distribuição de traços polimórficos que estão relacionados tanto a enzimas responsáveis pelo metabolismo de fármacos bem como aos receptores dessas drogas18. Em insuficiência cardíaca, já foram descritos polimorfismos da enzima CYP2D6 (citocromo P-450), responsável pelo metabolismo do carvedilol. Negros americanos e africanos apresentam uma elevada frequência de um alelo que codifica a enzima com atividade reduzida, o que está virtualmente ausente nos indivíduos de etnia/raça branca19. Da mesma forma, polimorfismos de importantes receptores para terapia de insuficiência cardíaca (beta e alfa-receptores, receptores tipo 1 da angiotensina) têm sido descritos e, em alguns casos, relacionados à resposta terapêutica20. Isto sugere que a identificação de características fenotípicas relacionadas com os mecanismos determinantes das respostas a medicamentos específicos poderá contribuir para identificação acurada do regime terapêutico capaz de melhorar a sobrevida e a qualidade de vida de pacientes com insuficiência cardíaca, independente da raça ou etnia 18.

Por fim, algumas considerações finais são pertinentes. Inicialmente, a combinação hidralazina/nitrato parece tão indicada para tratamento da insuficiência cardíaca de pacientes negros quanto os inibidores da ECA, baseado nos estudos revisados. Se o mesmo não pode ser dito em relação aos pacientes brancos, deve-se principalmente à ausência de dados gerados diretamente de ensaios clínicos randomizados. Segundo, porém não menos importante, é que as eventuais diferenças terapêuticas detectadas em relação a traços fenotípicos relacionados à cor da pele, em países do hemisfério Norte, devem ser interpretadas com cautela, notadamente quando tomamos em consideração populações muito miscigenadas como a brasileira e a de outros povos sul-americanos, pois seria quase certo que estaríamos incorporando às nossas tomadas de decisão outras variáveis de natureza socioeconômica e cultural de difícil conceituação.

CONCLUSÃO

Baseado nos resultados dos ensaios clínicos selecionados, não há evidências que suportem um tratamento farmacológico diferenciado para insuficiência cardíaca sistólica baseada na raça/etnia. A análise conjunta dos resultados dos ensaios clínicos é consistente com efeitos benéficos dos inibidores da ECA em reduzir mortalidade e hospitalização tanto em negros quanto em brancos. Existe evidência de que a combinação hidralazina com nitrato é benéfica em reduzir eventos adversos em negros com insuficiência cardíaca. A escassez de dados em brancos limita conclusões sobre o efeito da combinação hidralazina para pacientes deste grupo. A avaliação de padrões genéticos, tanto em negros quanto em brancos, em ensaios clínicos futuros deverá ajudar a identificar grupos de pacientes com insuficiência cardíaca que apresente maior benefício com certos regimes terapêuticos para a síndrome.

Conflito de interesse: não há

Artigo recebido: 11/04/07

Aceito para publicação: 24/05/08

Trabalho realizado no Hospital Universitário Professor Edgard Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA

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    Correspondência: Rua Rosa dos Ventos, 39/1002 - Brotas. CEP 40286-040. Salvador - BA.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Maio 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Recebido
      11 Abr 2007
    • Aceito
      24 Maio 2008
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