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Competência moral do estudante de medicina

PONTO DE VISTA

Competência moral do estudante de medicina

Marcos LiboniI,* * Correspondência: Departamento de Clínica Médica, Centro de Ciências da Saúde, Hospital Universitário da Universidade Estadual de Londrina. Av. Robert Koch, 60. Vila Operária. Londrina, Paraná. Brasil. CEP - 86038-440. Fone +55 43 3371-2000. ; José Eduardo SiqueiraII

IDoutorado - Médico formado pela Universidade Estadual de Londrina. Psiquiatra pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Pós-graduado em Bioética pela Universidade Estadual de Londrina. Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Prof. Adjunto de Psiquiatria do Curso de Medicina da Universidade Estadual de Londrina

IIPós-Doutorado - Médico formado pela Universidade Católica de São Paulo. Cardiologista pela Sociedade Brasileira de Cardiologia.Mestre em Bioética pela Universidade do Chile.Doutor em Medicina pela Universidade de Londrina.Professor de Clínica Médica e Bioética da Universidade de Londrina.Assessor de Bioética da REDBIOÉTICA da UNESCO.Membro da Diretoria da International Association of Bioethics.Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética(2005-2007)

Descritores: Bioética, Educação Médica, Desenvolvimento Moral

Keywords: Bioethics, Education, Medical, Undergraduate, Moral Development

INTRODUÇÃO

A atual crise de valores da sociedade brasileira se reflete não somente no âmbito público, mas também no privado. Espera-se dos profissionais de saúde, dada a função e natureza de suas ações de cuidar, ajudar, confortar e eventualmente curar, que acolham a pessoa enferma na sua integralidade biopsicossocial e espiritual.

O modelo vigente de medicina, inaugurado no início do séc. XX por Abraham Flexner1 é fiel herdeiro da ciência cartesiana que divide para conhecer. Em 1910, o famoso Relatório Flexner impôs mudanças necessárias no sistema de ensino médico norte-americano, entronizando o modelo cartesiano como guia das transmissões de conhecimentos nas escolas médicas.

A medicina passou a assumir compromisso predominante com o biológico separando mente de corpo e fazendo prevalecer a lógica de que à cada efeito corresponderia uma única causa etiológica, e o princípio geral, segundo o qual para melhor conhecer o ser humano haveríamos de dividí-lo em partes. Conhecendo as partes conheceríamos o todo. As doenças passaram a ser compreendidas como processos individuais, naturais e biológicos, guardando relações exclusivas com determinados órgãos e agentes etiológicos específicos. Mergulhou-se na intimidade das partes, esquecendo o todo e os profissionais tornaram-se exploradores de mares profundos do conhecimento e aí permanecem até hoje.

A convicção de alguns de que a ciência tem resposta para tudo decorre de visão distorcida da realidade. É preciso estar atento para reconhecer, que juntamente com benefícios, os avanços tecnocientíficos também trazem riscos. Particularmente em medicina, riscos e benefícios constituem denominador comum de todos os extraordinários avanços da propedêutica armada e de projetos de criação de novas drogas no campo da terapêutica. Essencial será preservar sempre o espírito crítico, sabendo estagnador e inconseqüente a heurística do temor que pretende conter os avanços da biomedicina, mas reconhecendo igualmente, como inquietante e insensato, o otimismo acrítico que ignora os riscos neles contidos.

Impedir o avanço da ciência é uma insensatez, atitude inócua e rigorosamente contra a essência do ser humano, cuja aspiração sempre será a de construir a realidade histórica, desde que foi derrogado o princípio da ordem feita. O imperativo categórico kantiano libertou-nos da atitude puramente contemplativa do universo para nos entregar a responsabilidade de criar e modificar a realidade que nos cerca. A partir de então, consideramos a presumível ordem feita como passível de mudanças, e passamos a construir uma nova "ordem" universal. Imperioso, entretanto, ter sempre presente que é pouco razoável considerar o que propõem cientistas como E. Teller, um dos principais idealizadores da bomba atômica, que "o homem da era da tecnociência deve produzir todo o possível e aplicar os conhecimentos adquiridos sem qualquer limites"2.

De maneira mais sensata, Giovanni Berlinguer3, pondera que: "A velocidade com que se passa da pesquisa pura para a aplicada é, hoje, tão alta que a permanência, mesmo que por breve tempo, de erros ou fraudes pode provocar catástrofes".

Felizmente, entre o "laissez-faire" e a satanização da tecnociência nos é oferecido o sensato caminho da prudência aristotélica. Se, de um lado temos os seguidores do preceito baconiano, de que todo o possível deve ser feito, podemos ouvir vozes mais prudentes como a de Potter4 , criador do neologismo bioética, que assim se expressou: "Meu saber é limitado, mas o combinarei com os conhecimentos e opiniões de outros homens inteligentes, inspirados no sentido ético, e provenientes de várias disciplinas, para ordenar minhas convicções e ações.

Os conhecimentos científicos são cumulativos, entretanto a construção de valores éticos, não o é. Não infrequentemente somos dominados pelo fascínio das realizações da tecnociência e temos a ilusão de que o acúmulo de conhecimentos é suficiente para fazer-nos felizes e dominarmos os segredos da vida. O mais importante será entendermos que a incorporação de valores éticos que fundamentam a reflexão crítica e responsável de qualquer indivíduo depende de seu próprio desenvolvimento moral, o que tem início muito precocemente na história de cada um e que não ocorre a partir de um momento aleatório da vida pessoal, como se fora um "adorno" da personalidade.

A estruturação do juízo moral e a capacidade para tomar decisões clínicas

Impossível não considerar que toda ação em saúde deve ser ética e que só poderá se concretizar quando o profissional for detentor de capacidade de julgamento para tomar decisões amparadas em valores morais e o fizer considerando os interesses dos principais envolvidos no caso5. Neste sentido, Green6 destaca que, em conseqüência de eventuais prejuízos na capacidade de juízo ético do profissional de saúde, emergem mecanismos psíquicos de defesa de seu ego pessoal, utilizados com freqüência para diminuir o desconforto moral gerado pela maioria das situações e tensões da prática clínica cotidiana. Ao tomar decisões, os profissionais de saúde, automática ou inconscientemente se baseiam em seus interesses particulares e omiti-los, eqüivaleria a perder o pleno controle de seus atos.

Morenz e Sales7, também apontam a complexidade da tomada de decisões por parte de profissionais de saúde que fazem prevalecer condutas pragmáticas sem levar em conta os genuínos interesses das pessoas enfermas.

Colenda8 considera que os profissionais de saúde tomam decisões em situação de "incertezas e restrições do mundo real". Do ponto de vista da prática diária, avaliam riscos e benefícios e tendem a concretizar suas ações baseando-se em resultados obtidos em situações clínicas anteriormente vividas por eles.

Muitos autores já propuseram sofisticadas teorias para tentar compreender o processo de elaboração do raciocínio e capacidade de tomada de decisões morais. O que parece consensual é que a formação da moralidade depende de um complexo desenvolvimento biológico, psíquico e social de cada pessoa, sendo basicamente de origem fenotípica. Frente a uma situação de dilema moral, somente o contato com a situação real e suas múltiplas variáveis oferecerá elementos para a adequada tomada de decisão com amparo moral e, apenas aqueles profissionais dotados de percepção ética do mundo que os cerca estariam habilitados a fazê-lo.

Quais elementos da formação pessoal estariam envolvidos na elaboração de juízos revestidos de amparo moral? O ser humano não nasce psiquicamente estruturado, já que o amadurecimento de sua personalidade ocorre ao longo de toda vida. Dada a condição abstrata e utópica da perfeição psíquica, emocional e moral, conceber a ética no contexto do desenvolvimento comportamental se identifica com a tentativa de busca do ser humano pela compreensão de seu próprio universo mental.

Zimerman9 reconhece o pensamento como atributo exclusivo do ser humano e que apresentaria seu desenvolvimento evolutivo numa escala crescente de complexidade e sofisticação, de acordo com uma determinada ordenação cronológica e segundo o amadurecimento neurobiológico específico da espécie humana. Assim, a moralidade humana evoluiria desde formas primitivas, em que não se observaria obediência aos princípios da lógica, mas sim aos da magia, até o nível abstrato-simbólico, o que possibilitaria sua utilização,entre outros, para fins dedutivo-científicos.

Para nós médicos e professores de Bioética, o ser humano moralmente desenvolvido deve demonstrar além de maturidade intelectual, adequada percepção pós-convencional de valores morais para que possa ter harmônica convivência social e ser reconhecido em sua comunidade como cidadão integrado e cooperativo.

Em busca da excelência moral

Desde as primeiras lições, o estudante de medicina aprende por intermédio de método analítico que para bem compreender uma enfermidade deve dividir o objeto de seu estudo em tantas partes quanto possível. O conhecimento das partes é levado à exaustão e na seqüência, é orientado a realizar a união das mesmas para reconstruir o todo. Ocorre que, com freqüência, não se consegue concluir satisfatoriamente a derradeira parte dessa tarefa. Caminhar entre os diagnósticos etiológico, anatômico e sindrômico, guiados fundamentalmente pelo raciocínio clínico, não é tarefa fácil. Os grandes mestres da medicina, até a década de 1960, transitavam por esse caminho com extrema competência, sempre considerando que as informações oferecidas pelos equipamentos eram ,tão somente, complementares ao raciocínio clínico.

Devemos condenar os avanços da tecnologia biomédica? É óbvio que não! Fundamental é corrigir a atitude diante deles, o que significa utilizá-los com sensatez, isto é, fazendo-os dependente do raciocínio clínico, ou seja, reconduzindo-os à condição de métodos complementares de investigação.

Schraiber11 refere-se a uma equação composta por dois componentes: médico e paciente, cujo equilíbrio foi sendo modificado com o passar do tempo. Até a década de 1950 do século passado, a relação médico-paciente era 1:1, ou seja, um médico para um paciente, com o advento das especialidades foram ocorrendo alterações nessas variáveis até atingir o equivalente a relação n:1, inúmeros médicos para apenas um paciente. Como é provável que o número de sub-especialidades possa crescer até nn, é preciso recuperar o equilíbrio inicial, com a formação de profissionais generalistas. Imprescindível, portanto, será formar esse novo médico, sempre presente ao lado de seu paciente, conhecendo-o em todas as suas múltiplas e complexas variáveis. Só assim se poderá cuidar da pessoa doente, e não simplesmente tratar a doença da pessoa.

Isso representa, de fato, uma inversão perceptiva, pois significa abandonar o modelo cartesiano, que nos fez acreditar que o ser humano fosse um amontoado de orgãos limitados por um invólucro dérmico. E, ao contrário, necessitamos reconhece-lo como um sistema vivo, protagonista de um conjunto de relações complexas, em interação permanente com o meio ambiente e com os outros seres humanos. Que sentido faz, por exemplo, descrever o sistema nervoso, hormonal ou imunitário, se formos incapazes de integrar todas as relações que os organizam. Desconhecendo as conexões que os integram,como saber o que é saúde ou doença? Precisamos acolher, outrossim, a noção de "homo systemus", um ente que tem suas fronteiras alargadas por novos territórios, por interações múltiplas com outros "homo systemus", por acontecimentos, escolhas, atitudes e que, tanto sua saúde como suas enfermidades , serão completamente ininteligíveis, na ausência da integração de todas essas variáveis12.

A falta de domínio desses conhecimentos nos conduziu a atual situação de catástrofe no relacionamento inter-pessoal presente no cotidiano das profissões da área da saúde. A medicina, originalmente, rica arte de relacionamento inter-subjetivo, foi reduzida a um pobre ofício de aferição de variáveis bioquímicas. Ouve-se sem escutar, pois os profissionais são treinados para subestimar as manifestações da subjetividade humana. As visitas às enfermarias, realizadas em muitos hospitais universitários, caracterizam-se por uma seqüência monótona de leitura de interminável relação de dados vitais de pacientes, obtidos por meio de sofisticados equipamentos. Com muita freqüência, o docente responsável pela atividade, encerra a discussão fazendo alguma referência aos últimos estudos multicêntricos, alertando que, saber as verdades indiscutíveis apresentadas pela medicina baseada em evidências e desconhecer esses grandes "trials" significa grave limitação para a acertada tomada de decisões terapêuticas com base científica.

Outrossim, o paciente, que nada compreende do rebuscado dialeto médico, permanece o tempo todo calado durante o ritual da visita, tendo sua insegurança aumentada o que o faz recorrer, com freqüência, a aconselhar-se com outros profissionais que trabalham na mesma unidade de saúde para o esclarecimento de dúvidas sobre a moléstia que o aflige. Não há lugar nesse modelo de medicina para a participação do paciente como sujeito. E, assim, prossegue impassível pelos corredores dos hospitais universitários, o cortejo de docentes de refinada formação acadêmica, fiéis representantes do modelo cartesiano de ciência, seguido por uma grande legião de discípulos, acalentados projetos de futuros médicos de doenças e não de pessoas circunstancialmente enfermas.

CONCLUSÃO

Pôr-se, atualmente, a serviço de um projeto de reconstrução do conhecimento científico, supõe que pensadores de todas as áreas do saber, entre outras coisas, devam desconsiderar as visões reducionistas do modelo cartesiano de ciência e acolham a tese da elaboração complexa dos mesmos, abdiquem do papel de árbitros da verdade, criem condições para efetivo diálogo transdisciplinar, derrubem os muros dos particularismos acadêmicos, aprendam a conviver com as incertezas do conhecimento.

Embora não se disponha de modelo ideal de ensino, faz-se necessário, pelo menos, substituir a pedagogia do adestramento pela construção conjunta do conhecimento, reconhecendo no aluno capacidade crítica para compreender que as verdades científicas são sempre transitórias. Somente assim a universidade ganhará condições de formar cidadãos e não simplesmente especialistas descompromissados com valores morais imprescindíveis para uma saudável convivência social.

Em relação à medicina, o desafio que se tem pela frente é o de continuar exercendo a profissão como técnica cega e surda, tributária de um arsenal crescente de equipamentos, ou resgatar a arte da percepção, reflexão e crítica, para que os atos profissionais sejam conduzidos com adequado juízo moral. Não se pode esquecer, outrossim, que a tecnologia já seduz enorme contingente de pacientes que, com crescente freqüência, procura atendimento médico apenas para conseguir realizar o sonho de submeter-se aos últimos procedimentos gerados pela tecnociência. Cresce a confiança depositada nas informações fornecidas pelos equipamentos na mesma proporção que decresce a segurança na competência do profissional. Será que o século XXI assistirá passivo o crescimento do contingente profissionais médicos manuseados como marionetes pelas empresas de produtos biomédicos e adestrados para somente perceberem o ser humano através de olhares reduzidos ou atenderá o clamor da sociedade que pede por cuidadores solidários? [Rev Assoc Med Bras 2009; 55(2): 226-8]

Artigo recebido: 20/11/06

Aceito para publicação: 10/05/08

Trabalho elaborado na Universidade Estadual de Londrina. Centro de Ciências da Saúde. Depto. de Clínica Médica.

  • 1. Flexner A. Medical education in the United States and Canada: de report for the Carnegie Foundation for the advancement of teaching. New York: Carnegie Foundation; 1910.
  • 2. Hottois G. El paradigma bioético:una ética para la tecnociencia, Barcelona: Anthropos; 1991.
  • 3. Berlinguer G. Questões de vida: ética, ciência e saúde. São Paulo: Hucitec; 1993.
  • 4. Potter VR. Bioethics, sciences of survival. Perspect Biol Med. 1970;14:127-53.
  • 5. Freitag B. Os itinerários de Antígona. A questão da moralidade. Campinas: Papirus; 2000.
  • 6. Green B, Miller PD, Routh CP. Teaching ethics in psychiatry: a one-day workshop for clinical students. J Med Ethics. 1995;21:234-8.
  • 7. Morenz B, Sales B. Complexity of ethical decision making in psychiatry. Ethics Behav. 1997;7:1-14.
  • 8. Colenda CC. O manejo de pacientes com demência agitados: uma abordagem de análise de decisões. Demência, Programa de Educação Continuada. Buenos Aires: Waverly Hispânica, p. 1-9. 1998.
  • 9. Zimerman D. Fundamentos psicanalíticos. 1Ş ed. Porto Alegre. Artmed Editora, p. 77-87, 1999.
  • 10. Kohlberg L. From is to ought: how to commit the naturalistic fallacy and get away with it in the study of moral development. In: Th. Mischel (Ed.) Cognitive development and epistemology. New York, Academic Press, 1971.
  • 11. Schraiber,. L.B. O Médico e seu Trabalho: Limites de Liberdade. São Paulo, Hucitec, 1993.
  • 12. Gaillard, J. P. O Médico do Futuro. Lisboa. Instituto Piaget, 1995.
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    Correspondência: Departamento de Clínica Médica, Centro de Ciências da Saúde, Hospital Universitário da Universidade Estadual de Londrina. Av. Robert Koch, 60. Vila Operária. Londrina, Paraná. Brasil. CEP - 86038-440. Fone +55 43 3371-2000.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Maio 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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