Acessibilidade / Reportar erro

Controvérsias em medicina fetal: a cirurgia fetal endoscópica deve ser realizada em todos os casos de hérnia diafragmática congênita grave isolada?

PANORAMA INTERNACIONAL

OBSTRETRÍCIA

Controvérsias em medicina fetal: a cirurgia fetal endoscópica deve ser realizada em todos os casos de hérnia diafragmática congênita grave isolada?

Rodrigo RuanoI; Marcos Marques SilvaII; Uenis TannuriIII; Marcelo ZugaibIV

IProfessor doutor da Disciplina de Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

IIMedico assistente da Disciplina de Cirurgia Pediátrica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

IIIProfessor titular da Disciplina de Cirurgia Pediátrica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

IVProfessor titular da Disciplina de Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

Em janeiro deste ano, foi publicado em uma das principais revistas de medicina fetal no meio cientifico um debate entre dois experts em diagnóstico e terapia fetais: J. A. Deprest e A. W. Flake1. Esse debate ocorreu em um encontro internacional sobre Hérnia Diafragmática Congênita (HDC), realizado em Houston, Texas, EUA, em 2007 e transcrito por ambos para discussão. Sobre o controvertido tema, o primeiro autor, J. A. Deprest, defende a indicação da cirurgia fetal endoscópica para todos os casos de HDC graves baseando-se em alguns princípios fundamentais. O primeiro princípio se refere ao grande avanço dos métodos de imagem utilizados na propedêutica fetal. A ultrassonografia morfológica fetal, segundo um estudo realizado na Europa em 20022, permite o diagnóstico pré-natal de 60% dos casos de HDC. O segundo princípio firma-se na premissa que esses casos devam ser seguidos em centros terciários e especializados na malformação com o intuito de se aprimorar o tratamento perinatal e, assim, oferecer a melhor assistência a essas crianças (e suas mães). Nesse sentido, o centro especializado terá a oportunidade de desenvolver métodos mais confiáveis para predizer os riscos de hipoplasia pulmonar grave e os resultados perinatais. E, por último, o desenvolvimento de técnicas fetoscópicas, reprodutíveis e com menores riscos obstétricos e maternos. Esse autor, com vasta experiência no assunto, defende seu ponto de vista pela da argumentação de que seria possível predizer o prognóstico perinatal por meio da estimativa do tamanho/volume pulmonar fetal. Inúmeros estudos demonstram que quando o tamanho/volume pulmonar estiver extremamente reduzido (<35%), a mortalidade se torna muito alta (cerca de 100% na Europa)3. Além disso, a cirurgia fetal endoscópica proposta tem como objetivo estimular o crescimento pulmonar do feto pela oclusão temporária da traquéia fetal, fato este bem demonstrado em estudos experimentais e em humanos. Seus resultados apontam para sobrevida neonatal geral de 57%(maior daquela observada em controles na Europa), mas que depende do grau de hipoplasia pulmonar anteriormente ao procedimento4. No entanto, próprio autor menciona que há necessidade de se realizar um estudo randomizado para confirmar a superioridade da intervenção antenatal.

Em contraposição, A. W. Flake questiona a indicação da intervenção fetal para todos os casos graves de HDC. Seu ponto de vista respalda-se na experiência norte-americana. Segundo ele, a "história natural" da HDC poderia ser considerada como "o resultado esperado de uma população de recém-nascidos tratados com a melhor terapia contemporânea onde ocorrer o nascimento". Diferenças na população (características da malformação), treinamento/preparo da equipe neonatal e condições de parto tornam a "história natural" da HDC extremamente variável e dinâmica. Portanto, a "história natural" da HDC necessita ser atualizada constantemente em um serviço de referência, buscando melhorar cada vez mais o tratamento neonatal intensivista. Esse fato foi claramente demonstrado por Harrison et al, em 20035, que realizaram o único estudo randomizado sobre o assunto, observando melhoria da sobrevida neonatal nos casos sem tratamento pré-natal, de 67% (casuística histórica) para 75%. Atualmente, nos EUA, a mortalidade neonatal dos casos com HDC caiu de 40% para 10%, nas duas últimas décadas, devido à melhoria no tratamento neonatal, utilizando-se da hipercapnia permissiva, controle da hipertensão arterial pulmonar e prevenção do barotrauma iatrogênico. Além disso, segundo a experiência norte-americana, utilizando-se os mesmos critérios de gravidade como a herniação hepática e a redução do tamanho/volume pulmonar, 50% dos fetos com essas características sobreviveram, o que torna o poder de predição de apenas 50% 6. Por último, esse autor menciona que a oclusão da traquéia fetal promove de fato um excelente crescimento dos pulmões fetais, mas com funções inadequadas.

Comentário

O presente artigo descreve uma discussão fundamental sobre o assunto com vários pontos controversos a serem avaliados. Dois motivos básicos estão presentes nessa discussão que influenciam drasticamente a mortalidade por uma malformação grave. A discussão envolve dois centros com características completamente diferentes, apesar de serem terciários e muito especializados no assunto. O primeiro representa o Continente Europeu, encabeçado por obstetras, que privilegiam não apenas a sobrevida, mas também a morbidade dos sobreviventes. Assim, nesse centro, encontram-se os casos avaliados durante o período pré-natal e não somente aqueles que são referidos para o tratamento neonatal. Geralmente, nesses centros não são utilizados ECMO (Oxigenação Extra Corpórea por Membrana), que aumenta a sobrevida, mas também está associada a maior morbidade (casos mais graves sobrevivem dependentes de oxigênio). O segundo centro representa os EUA com sobrevida neonatal fantástica não observada no Continente Europeu. No centro norte-americano, os casos são referidos ao serviço de cirurgia pediátrica, com possível viés de seleção, pois os casos mais graves não chegam para terapia neonatal (pela interrupção da gestação ou pelos óbitos fetais). Além disso, os norte-americanos indicam ECMO para grande parte dos casos tornando a "história natural" da HDC, obviamente, variável e completamente dependente do local do estudo.

Outro aspecto importante na discussão seria quanto à característica da população estudada, pois nota-se que esses pesquisadores não consideram os mesmos critérios de inclusão para cirurgia fetal, isto é, para definir a gravidade da HDC. Enquanto o primeiro, na Europa, usa a relação tamanho/volume pulmonar reduzido (pulmão contralateral/circunferência cefálica (LHR) <1,0 ou volume pulmonar relativo < 35% e fígado herniado), o americano considera uma relação maior (LHR<1,4 ou fígado herniado). Dessa forma, nesse debate, conclui-se que cada um dos debatedores, provavelmente, lida com casos diferentes em gravidade. Ademais, desconsideram, também, em ambos os Serviços as gestações que foram interrompidas as quais, obviamente, são as de maior gravidade. Entretanto, deve-se ressaltar que ambos concordam que há necessidade de estudos randomizados ("fetoscopia" x "controle") em grandes centros de pesquisa com critérios de seleção mais apurados para definir melhor a gravidade na HDC. Fazem menção à inclusão da análise da vascularização pulmonar fetal, além do tamanho/ volume pulmonar e da presença de fígado herniado.

Esse debate dá coerência e respaldo a um estudo iniciado em 2005, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – São Paulo, no qual propomos uma investigação randomizada considerando rigorosamente os critérios de inclusão (tamanho/ volume pulmonar muito reduzido, fígado herniado e índices vasculares muito baixos). Resultados preliminares, com 21 casos randomizados, são animadores, pois demonstram sobrevida neonatal superior no grupo submetido à cirurgia fetal endoscópica (oclusão da traquéia fetal por introdução de balão inflável) em relação ao controle com tratamento pós-natal exclusivo. Além de propiciar aumento da sobrevida desses RN, a grande motivação da equipe é agregar conhecimentos sobre algumas questões fisiopatológicas pertinentes a essa malformação fetal. Como perspectiva, existe a convicção da melhoria na "história natural" da HDC, em consequência direta do estudo. Para tanto, a equipe multidisciplinar, formada por obstetras, neonatologistas e cirurgiões pediatras, implantou protocolos de tratamento pósnatal com inclusão de novas estratégias de reanimação na sala de parto e ventilação do RN – "gentle ventilation", hipercapnia permissiva, ventilação de alta frequência, ventilação com óxido nítrico e futura reimplantação do programa de ECMO. Embora existam evidentes avanços tecnológicos na esfera obstétrica, neonatal e cirúrgica, o estado de evolução no Brasil é de uma realidade aquém dos EUA e da Europa. Mesmo assim, admite-se que a cirurgia fetal endoscópica se torne interessante para todos os fetos com HDC grave e factível neste País. Trabalhamos com o propósito de tratar, por via endoscópica, fetos com HDC selecionados por meio de protocolo com rigorosidade que o permeie desde a inclusão, o tratamento antenatal até o atendimento neonatal (clínico e cirúrgico) devendo ocorrer em centros universitários de excelência. Assim, com a dedicação conjunta das especialidades envolvidas, poderemos, quiçá, atingir as taxas norte-americanas a despeito de estes não praticarem intervenção antenatal.

  • 1. Deprest JA, Hyett JA, Flake AW, Nicolaides K, Gratacos E. Current controversies in prenatal diagnosis 4: Should fetal surgery be done in all cases of severe diaphragmatic hernia? Prenat Diagn. 2009;29(1):15-9.
  • 2.Garne E, Haeusler M, Barisic I, Gjergja R, StollC, Clementi M; Euroscan Study Group. Congenital diaphragmatic hernia: evaluation of prenatal diagnosis in 20 European regions. Ultrasound Obstet Gynecol. 2002;19(4):329-33.
  • 3.Ruano R, Aubry MC, Dumez Y, Zugaib M, Benachi A. Predicting neonatal deaths and pulmonary hypoplasia in isolated congenital diaphragmatic hernia using the sonographic fetal lung volume-body weight ratio. AJR Am J Roentgenol. 2008;190(5):1216-9.
  • 4.Deprest J, Gratacos E, Nicolaides KH; FETO Task Group. Fetoscopic tracheal occlusion (FETO) for severe congenital diaphragmatic hernia: evolution of a technique and preliminary results. Ultrasound Obstet Gynecol. 2004;24(2):121-6.
  • 5.Harrison MR, Keller RL, Hawgood SB, Kitterman JA, Sandberg PL, Farmer DL, et al. A randomized trial of fetal endoscopic tracheal occlusion for severe fetal congenital diaphragmatic hernia. N EnglJ Med. 2003;349(20):1916-24.
  • 6.Hedrick HL, Danzer E, Merchant A, Bebbington MW, Zhao H, Flake AW, et al. Liver position and lung-to-head ratio for prediction of extracorporeal membrane oxygenation and survival in isolated left congenital diaphragmatic hernia. Am J Obstet Gynecol. 2007;197(4):422.e1-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2009
  • Data do Fascículo
    2009
Associação Médica Brasileira R. São Carlos do Pinhal, 324, 01333-903 São Paulo SP - Brazil, Tel: +55 11 3178-6800, Fax: +55 11 3178-6816 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ramb@amb.org.br