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A verdade científica e o mito dogmático

PANORAMA INTERNACIONAL

PSIQUIATRIA

A verdade científica e o mito dogmático

Cláudio CohenI; Reinaldo Ayer de OliveiraII; Tadeu Roberto de AbreuIII; Rogério L'abbatte KelianIV

ILivre-Docência - Professor Associado do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Coordenador do CEARAS / Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP, São Paulo, SP

IIDoutorado - Professor Doutor de Bioética do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, SP

IIIPós-Graduação em Bioética - Psicólogo do CEARAS - Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP, São Paulo, SP

IVPós-Graduação em Bioética - Psicólogo do CEARAS - Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP, São Paulo, SP

O The Journal of the American Medical Association (JAMA) publicou o artigo Effectiveness of Long-term Psychodynamic Psychotherapy: a meta-analysis dos Drs. Falk Leichsenring e Sven Rabung. Os autores realizaram uma metanálise sumarizando artigos científicos publicados nas últimas décadas (1960-2008), estudando os efeitos da Psicoterapia Psicodinâmica de Longa Duração (LTPP - Long-term Psychodynamic Psychotherapy) relacionada a transtornos mentais complexos. Segundo os achados neste estudo, a LTPP mostrou resultados significativamente superiores nos itens eficácia global, foco nos problemas e no funcionamento da personalidade em relação a outras formas de psicoterapia. No que diz respeito à eficácia global, a abrangência dos efeitos em um grupo-intermediário foi de 1,8 (95% de intervalo de confiança [CI], 0.7-3.4) indicando que após o tratamento com LTPP pacientes com complexos transtornos mentais, em média, eram mais bem-sucedidos do que 96% dos doentes na comparação dos grupos (P = .002).

Comentários

Apesar de o artigo ter sido publicado em uma revista de alto impacto como o JAMA, na qual o material e método foram aceitos como eticamente válidos, foram publicadas críticas em torno da verdade científica do método empregado pelos Drs. Leichsenring e Rabung. Dentro de nossa visão, estas trouxeram à tona a preocupação sobre qual seria a atitude ética de nosso século diante de diferentes postulados científicos: dogmatismo ou dialética.

Aaron Beck e Sunil S. Bhar colocam que há múltiplos problemas com a meta-análise realizada, entre eles, que há uma arbitrariedade na inclusão de estudos em favor da LTPP. Brett D. Thombs, Marielle Bassel e Lisa Jewett dizem que a coleção de estudos utilizados não é adequada para a metanálise. Levente Kriston, Lars Hölzel e Martin Härter referem que há várias limitações nos achados, destacando que a questão formulada pelos pesquisadores é muito ampla, como, por exemplo, a população a ser incluída ser definida como pacientes adultos com transtornos mentais.

A sacralização de um ordenamento, como o dogmatismo religioso, e a refutação a priori de alguma teoria, como o ceticismo, sugere a impossibilidade do diálogo, exercício imprescindível para o progresso científico e a tomada de decisões éticas. O que vai distinguir o indivíduo dogmático do cético é, segundo Lessa, o modo de lidar com os axiomas, sendo que os primeiros os descrevem e a eles se aderem, e os últimos têm como missão distintiva a sua reconfiguração.

A ciência atual tem como paradigma somente aceitar os fatos de suas teorias após a realização de testes precisos para tentar refutar as hipóteses. Observando as críticas tecidas em torno da metodologia científica desta metanálise das LTPP, a impressão passada é de que ela foi refutada de uma forma dogmática sem uma análise científica.

A Bioética surge na tentativa de discutir conflitos de valores que envolvem a vida e a saúde humana frente a evolução científica, sugerido que nenhuma área do saber ou nenhuma argumentação pode se sobrepor à outra indefinidamente. Desde que respeitadas as questões éticas nas investigações científicas, acredita-se que existam liberdade e autonomia no exercício destas, postura que confere pluralismo ao conhecimento humano. No caso específico das psicoterapias, esse pluralismo atenderá às necessidades humanas em momentos e situações diferentes, não podendo existir uma verdade absoluta para todas as demandas psicoterápicas.

Ainda que a ciência não nos apresente o conhecimento da verdade absoluta, o conhecimento que ela nos traz não poderia ser usado politicamente. Portanto, quando se refuta outras verdades científicas, não deveríamos abandonar o princípio ético da neutralidade, condição fundamental para o conhecimento. O que observamos é que, alguns cientistas, muitas vezes, fazem um uso político ou ideológico da ciência vinculado a interesses pessoais, o que pode trazer consequências sociais que mereceriam entrar na pauta desse tipo de discussão.

Entendemos que enquanto houver essa competição entre as diferentes áreas do saber (como as existentes na Saúde Mental) no afã de provarem sua superioridade sobre as demais, será desvantajoso para todos os envolvidos, principalmente para a população que espera usufruir dos avanços provenientes da pesquisa científica. O início deste exercício dialético poderia ser através de um ceticismo saudável que venha a agregar as diferentes correntes do pensamento humano.

Percebemos que a possibilidade da convivência entre a ética e a ciência não dependerá simplesmente de um grupo ou outro de pesquisadores, pois essa requer uma mudança de paradigma na sociedade, propostos pela bioética, que vem para lidar com as diferenças sobre a compreensão do que venha a ser a verdade. Entendemos que um caminho para solucionar o problema da falta de integração entre subjetividade e objetividade nas ciências tenha sido proposto no modelo da lógica difusa da técnica que é um modelo probabilístico que admite valores lógicos intermediários para se alcançar o conhecimento sobre um determinado fenômeno.

Frente às questões levantadas, a contribuição do estudo dos Drs. Leichsenring e Rabung nos mobiliza a pensar na necessidade de encontrar outros caminhos para a análise científica das contribuições das Psicoterapias Psicodinâmicas de Longa Duração.

Correspondência: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Instituto Oscar Freire. Av. Dr. Arnaldo, 455 - Pacaembu - São Paulo - SP Cep: 01246-903. Tel. (11) 3061-8429 - E-mail: ccohen@usp.br

  • 1.  Leichsenring F, Rabung S. Effectiveness of long-term psychodynamic psychotherapy: a meta-analysis. JAMA. 2008;300(13):1551-65.
  • 2.  Beck AT, Bhar SS. Analyzing effectiveness of long-term psychodynamic psychotherapy. JAMA. 2009;301(9):931.
  • 3.  Thombs BD, Bassel M, Jewett, LR. Analyzing effectiveness of long-term psychodynamic psychotherapy. JAMA. 2009;301(9):930.
  • 4.  Kriston L, Hölzel L, Härter M. Analyzing effectiveness of long-term psychodynamic psychotherapy. JAMA. 2009;301(9):930-1.
  • 5.  Lessa R. Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1997.
  • 6.  Popper apud Gewandsznajder F. O que é o método científico. São Paulo: Pioneira; 1989.
  • 7.  Massad E,Menezes RX, Silveira PP, Ortega NRS. Métodos quantitativos em medicina. Barueri: Manole; 2004.

Publication Dates

  • Publication in this collection
    25 Feb 2010
  • Date of issue
    2009
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