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Anticoagulação oral em pacientes com fibrilação atrial: das diretrizes à prática clínica

Resumos

OBJETIVO: Apesar da anticoagulação oral (ACO) ter benefício comprovado em pacientes com fibrilação atrial (FA) e fatores de risco embólico, ela vem sendo subutilizada. O objetivo desse estudo foi avaliar a adequação da terapêutica anticoagulante em pacientes com FA acompanhados em clínica especializada em cardiologia, privada, de acordo com as diretrizes das sociedades americana e europeia de cardiologia de 2006 e a diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) de 2003. MÉTODOS: No período de novembro/2005 a agosto/2006 foram avaliados 7.486 eletrocardiogramas e selecionados 53 pts com laudo de FA e informações claras relatadas em prontuário sobre fatores de risco embólico e terapêutica de ACO. RESULTADOS: Dentre os 53 pacientes incluídos (68±16 anos; 29 homens - 55%), 25 (48%) tinham HAS, 20 (38%) insuficiência cardíaca e 3 (6%) DM. Dentre os 15 pacientes com alto risco embólico, 13 (86%) estavam em uso de ACO. De acordo com a recomendação das diretrizes americana e europeia: 32 (60%) pacientes tinham indicação Classe I, 17 (32%) Classe IIa, 1 (2%) Classe IIb e 3 (6%) Classe III. Estavam adequadamente tratados 21 (66%) pacientes da Classe I e 13 (76%) pacientes Classe IIa. Nesse subgrupo, 7/19 (37%) pacientes com idade >75 anos estavam sendo anticoagulados, comparado a 22/30 (73%) daqueles com idade inferior (p=0,016). Dentre os três pacientes com indicação Classe III, um estava incorretamente com prescrição de anticoagulante. Pela diretriz da SBC, 33 (62%) recebiam terapêutica antitrombótica adequada. Não houve diferença na utilização correta de ACO, comparando-se a diretriz brasileira e diretrizes americana e europeia (55% vs. 55%). CONCLUSÃO: A terapêutica anticoagulante está sendo prescrita adequadamente na maioria dos pacientes com FA, embora esse índice ainda esteja muito aquém do ideal, principalmente no contexto de uma clínica especializada em cardiologia. Isso é ainda mais grave no grupo de idosos.

Fibrilação atrial; Anticoagulantes; Guia de prática clínica


OBJECTIVE: Although oral anticoagulation has proved beneficial for patients with atrial fibrillation (AF) and embolic risk factors, it is still underused. The objective of this study was to evaluate the adequacy of anticoagulation therapy in patients with AF followed in a private clinic specialized in cardiology, in accordance with the American and European societies of cardiology guidelines/2006 and with the Brazilian Guidelines/2003. METHODS: Between November 2005 and August 2006, we evaluated 7,486 electrocardiograms and selected 53 patients with AF and complete chart records. Clinical characteristics, including embolic risk factor, echocardiographic data and medical treatment were reviewed. RESULTS: Among the 53 patients (68±16 years; 29 men), 25 (48%) had hypertension, 20 (38%) heart failure and 3 (6%) diabetes. Among the 15 patients with high embolic risk, 13 (86%) were on oral anticoagulation. In accordance with the American and European guidelines: 32 (60%) patients were Class I, 17 (32%) Class IIa, 1 (2%) Class IIb and 3 (6%) Class III. Treatment was adequate in 21 (66%) Class I patients and 13 (76%) Class IIa. In these, anticoagulation therapy was used in 7/19 (37%) patients > 75 years compared to 22/30 (73%) younger. Among the 3 patients within Class III, 1 was incorrectly on OAC. According to Brazilian guidelines, 33 (62%) were on correctly indicated antithrombotic therapy. There was no difference in the appropriate prescription of oral anticoagulants, comparing the international and Brazilian guidelines (55% vs. 55%). CONCLUSION: According to recent guidelines, anticoagulant therapy has been adequately prescribed for the majority of AF patients, although this is still far from ideal, especially in a cardiology clinic. It is even more critical in the group of older patients.

Atrial Fibrillation; Anticoagulants; Practice guideline


ARTIGO ORIGINAL

Anticoagulação oral em pacientes com fibrilação atrial: das diretrizes à prática clínica

Oral anticoagulation in patients with atrial fibrillation: from guidelines to bedside

Paula Gonçalves MacedoI, * * Correspondência: SQS 213 - Bloco A. apto. 106. Asa Sul. Brasília - DF. CEP: 70292-010 ; Eustáquio Ferreira NetoII; Bruno Toscani da SilvaIII; José Roberto Barreto FilhoIV; Henrique MaiaV; Clarissa NovakoskiVI; André ZanattaVII; Edna Marques de OliveiraVIII; Jairo Macedo da RochaVIII; Tamer Najar SeixasIX; Ayrton Klier PeresX; Luiz LeiteXI

IEspecialização em Arritmias Cardíacas e Médica Assistente do Hospital de Base do Distrito Federal, Brasília, DF

IIEspecialização em Cardiologia - Médico Assistente do Hospital do Coração de Brasília, Brasília, DF

IIIEstudante de Medicina Escola Superior de Ciências da Saúde/ESCS/FEPECS/SES/DF e Membro do Centro de Fibrilação Atrial/Hospital de Base do Distrito Federal, Brasília, DF

IVEspecialização em Arritmias Cardíacas - Médico Assistente do Hospital de Base do Distrito Federal, Brasília, DF

VEspecialização em Eletrofisiologia - Médico Assistente do Hospital de Base do Distrito Federal - Brasília, DF

VICurso Superior de Enfermagem - Membro do Centro de Fibrilação Atrial/Hospital de Base do Distrito Federal, Brasília, DF

VIIEspecialização em Arritmias Cardíacas - Médico assistente do Centro de Tratamento Cardiovascular, Brasília, DF

VIIIEspecialização em Arritmias Cardíacas - Médica assistente da Clínica Biocárdios, Brasília, DF

IXEspecialização em Eletrofisiologia - Médico assistente da Ritmocárdio, Brasília, DF

XPós-Doutorado pela University Of Limburg Academic Hospital Maastricht, Holanda - Presidente da Ritmocárdio, Brasília, DF

XIPós-Doutorado pelo Mayo Clinic - Rochester MN - USA, Estados Unidos - Diretor do Centro de Fibrilação Atrial/Hospital de Base do Distrito Federal, Brasília, DF

RESUMO

OBJETIVO: Apesar da anticoagulação oral (ACO) ter benefício comprovado em pacientes com fibrilação atrial (FA) e fatores de risco embólico, ela vem sendo subutilizada. O objetivo desse estudo foi avaliar a adequação da terapêutica anticoagulante em pacientes com FA acompanhados em clínica especializada em cardiologia, privada, de acordo com as diretrizes das sociedades americana e europeia de cardiologia de 2006 e a diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) de 2003.

MÉTODOS: No período de novembro/2005 a agosto/2006 foram avaliados 7.486 eletrocardiogramas e selecionados 53 pts com laudo de FA e informações claras relatadas em prontuário sobre fatores de risco embólico e terapêutica de ACO.

RESULTADOS: Dentre os 53 pacientes incluídos (68±16 anos; 29 homens - 55%), 25 (48%) tinham HAS, 20 (38%) insuficiência cardíaca e 3 (6%) DM. Dentre os 15 pacientes com alto risco embólico, 13 (86%) estavam em uso de ACO. De acordo com a recomendação das diretrizes americana e europeia: 32 (60%) pacientes tinham indicação Classe I, 17 (32%) Classe IIa, 1 (2%) Classe IIb e 3 (6%) Classe III. Estavam adequadamente tratados 21 (66%) pacientes da Classe I e 13 (76%) pacientes Classe IIa. Nesse subgrupo, 7/19 (37%) pacientes com idade >75 anos estavam sendo anticoagulados, comparado a 22/30 (73%) daqueles com idade inferior (p=0,016). Dentre os três pacientes com indicação Classe III, um estava incorretamente com prescrição de anticoagulante. Pela diretriz da SBC, 33 (62%) recebiam terapêutica antitrombótica adequada. Não houve diferença na utilização correta de ACO, comparando-se a diretriz brasileira e diretrizes americana e europeia (55% vs. 55%).

CONCLUSÃO: A terapêutica anticoagulante está sendo prescrita adequadamente na maioria dos pacientes com FA, embora esse índice ainda esteja muito aquém do ideal, principalmente no contexto de uma clínica especializada em cardiologia. Isso é ainda mais grave no grupo de idosos.

Unitermos: Fibrilação atrial. Anticoagulantes. Guia de prática clínica.

SUMMARY

OBJECTIVE: Although oral anticoagulation has proved beneficial for patients with atrial fibrillation (AF) and embolic risk factors, it is still underused. The objective of this study was to evaluate the adequacy of anticoagulation therapy in patients with AF followed in a private clinic specialized in cardiology, in accordance with the American and European societies of cardiology guidelines/2006 and with the Brazilian Guidelines/2003.

METHODS: Between November 2005 and August 2006, we evaluated 7,486 electrocardiograms and selected 53 patients with AF and complete chart records. Clinical characteristics, including embolic risk factor, echocardiographic data and medical treatment were reviewed.

RESULTS: Among the 53 patients (68±16 years; 29 men), 25 (48%) had hypertension, 20 (38%) heart failure and 3 (6%) diabetes. Among the 15 patients with high embolic risk, 13 (86%) were on oral anticoagulation. In accordance with the American and European guidelines: 32 (60%) patients were Class I, 17 (32%) Class IIa, 1 (2%) Class IIb and 3 (6%) Class III. Treatment was adequate in 21 (66%) Class I patients and 13 (76%) Class IIa. In these, anticoagulation therapy was used in 7/19 (37%) patients > 75 years compared to 22/30 (73%) younger. Among the 3 patients within Class III, 1 was incorrectly on OAC. According to Brazilian guidelines, 33 (62%) were on correctly indicated antithrombotic therapy. There was no difference in the appropriate prescription of oral anticoagulants, comparing the international and Brazilian guidelines (55% vs. 55%).

CONCLUSION: According to recent guidelines, anticoagulant therapy has been adequately prescribed for the majority of AF patients, although this is still far from ideal, especially in a cardiology clinic. It is even more critical in the group of older patients.

Key words: Atrial Fibrillation. Anticoagulants. Practice guideline

INTRODUÇÃO

A prevalência de fibrilação atrial (FA) está aumentando consideravelmente em decorrência do envelhecimento da população e do aumento na ocorrência dos fatores de risco associados, como a obesidade, hipertensão arterial sistêmica (HAS) e diabetes mellitus (DM)1,2. A FA é uma doença relacionada a acidente vascular cerebral (AVC), insuficiência cardíaca (IC) e mortalidade por todas as causas, sendo atualmente um problema de saúde pública3,4. A taxa de AVC isquêmico em pacientes com FA não-valvar é de cerca de 5% ao ano, sendo cinco a sete vezes maior que a de pacientes sem FA. Já em portadores de doença valvar reumática, o estudo de Framingham mostrou que o risco é 17 vezes maior1.

A anticoagulação oral é capaz de prevenir os eventos embólicos cerebrais. Uma metanálise sob o princípio de "intenção de tratar" concluiu que essa terapia é altamente eficaz na prevenção do AVC, apresentando uma redução do risco relativo de 62%, redução do risco absoluto de 2,7% ao ano para prevenção primária e de 8,4% ao ano para prevenção secundária5. No entanto, o uso de anticoagulantes orais (ACO) está associado a efeitos adversos potencialmente fatais, como o AVC hemorrágico. A análise de cinco ensaios clínicos mostrou taxa de eventos hemorrágicos graves de 1,3% ao ano6.

Desse modo, a terapia anticoagulante deve ser indicada quando o risco embólico é elevado e se sobrepõe ao risco de sangramento. Nesse sentido, há diretrizes e consensos sobre o tema que orientam a utilização de terapia antitrombótica.

A diretriz brasileira de FA, publicada em 2003 pela Sociedade Brasileira de Cardiologia, pauta a indicação de ACO pela idade do paciente e presença de fatores de risco tromboembólicos7. As recomendações são semelhantes na diretriz de FA das sociedades americana e europeia de cardiologia, publicada em 20068. Apesar da existência de publicações específicas sobre o tema, estudos mostram que a anticoagulação é subutilizada mesmo em centros de referência no Brasil e em países desenvolvidos9-11.

O objetivo deste estudo é avaliar a frequência e adequação da terapia anticoagulante em pacientes com FA atendidos em uma clínica especializada em cardiologia no Distrito Federal.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo observacional e retrospectivo, realizado na Biocárdios - uma clínica privada que atende pacientes referenciados de todo o Distrito Federal para atendimento cardiológico. Os ECGs realizados no período de novembro/2005 a agosto/2006 foram avaliados por arritmologistas do próprio serviço, sendo selecionados aqueles com laudo de FA. Os dados clínicos e de outros exames complementares foram coletados nos prontuários. Não foi obtido consentimento informado dos pacientes.

A segunda etapa foi de análise dos dados coletados, e foi realizada por outro grupo de pesquisadores que não recebia a identificação dos pacientes nem dos médicos-cuidadores, e tinha acesso apenas ao banco de dados. As variáveis analisadas foram: sexo, idade, comorbidades, uso de medicação antitrombótica e presença de fatores que contraindicassem a anticoagulação (portadores de discrasias sanguíneas, cirurgia ou sangramento de grande porte recentes, neoplasias, dissecção de aorta, gravidez, entre outros). A presença de fatores de contraindicação à terapia antitrombótica não configurava critério de exclusão da análise.

Diretrizes de FA

Neste estudo, foi avaliada a adequação da prescrição de ACO de acordo com duas diretrizes de FA: uma publicada pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e a outra pelas sociedades norte-americana e europeia de cardiologia. A SBC publicou em 2003 a diretriz brasileira de FA, que orienta as condutas mais adequadas frente a um paciente com essa arritmia. Quanto à indicação do uso de ACO, a diretriz recomenda que seja indicado sempre que houver um dos seguintes fatores de risco embólico: paciente com idade acima de 75 anos, portador de insuficiência cardíaca congestiva, fração de ejeção do ventrículo esquerdo menor que 35%, HAS, DM, tireotoxicose, evento embólico prévio, estenose de valva mitral, prótese valvar ou trombo atrial persistente. O uso de AAS é recomendado para pacientes com idade inferior a 60 anos e sem cardiopatias ou fatores de risco embólico, e também para pacientes com contraindicação ao uso de ACO.

A diretriz norte-americana/europeia de condutas em pacientes com FA foi publicada em 2006 pelo Colégio Americano de Cardiologia, Associação Americana de Cardiologia e pela Sociedade Europeia de Cardiologia. Nesse texto, as condutas diagnósticas e terapêuticas foram orientadas de acordo com as seguintes classes de recomendação: Classe I, Classe IIa, Classe IIb e Classe III. Para indicação de terapia antitrombótica os fatores de risco embólico foram assim classificados:

- Baixo risco: sexo feminino, idade entre 65 e 74 anos e doença arterial coronária;

- Risco intermediário: idade > 75 anos, HAS, IC, função ventricular esquerda deprimida e DM;

- Alto risco: AVC ou ataque isquêmico transitório ou embolia prévios, estenose mitral ou prótese valvar.

A recomendação Classe I para o uso de ACO aplica-se a pacientes com ao menos um fator de alto risco ou com dois ou mais fatores de risco intermediário. A recomendação Classe IIa orienta o uso de ACO ou de AAS, em pacientes com apenas um fator de risco intermediário e em pacientes apenas com fatores de baixo risco. Estão inclusos na Classe IIb, pacientes coronariopatas submetidos a revascularização miocárdica que são tratados com ACO, AAS e clopidogrel, e também pacientes com idade inferior a 60 anos e sem cardiopatia que não recebem nenhum tratamento antitrombótico. A Classe III refere-se ao uso de ACO em pacientes sem fatores de risco.

Definições do estudo

Após a revisão e análise dos prontuários, os pacientes foram classificados quanto à adequação da terapia utilizada conforme recomendações das duas diretrizes. Considerando-se a diretriz da SBC, os pacientes foram considerados adequados quando estavam em uso de AAS ou ACO ou sem terapia antitrombótica conforme orientado pela presença dos fatores de risco já descritos.

Em relação à diretriz americana/europeia, os pacientes eram primeiramente divididos nas Classes de recomendação I, IIa, IIb ou III, levando-se em conta a presença de fatores de risco baixo, intermediário ou alto. Em seguida, a terapia vigente era classificada em adequada ou inadequada, de acordo com a orientação de cada Classe.

Por fim, com base em ambos os consensos, a terapia utilizada em cada paciente foi subdividida em: uso correto ou incorreto de ACO e uso correto ou incorreto de AAS. A ausência de terapia antitrombótica - ACO ou AAS - também era classificada em correta ou incorreta.

Análise estatística

As variáveis contínuas foram apresentadas como média ± 1 desvio padrão. As variáveis categóricas foram comparadas pelo teste do Qui-quadrado. Os intervalos de confiança foram calculados com probabilidade de 95% e para rejeição da hipótese nula considerou-se valores de p menor que 0,05.

RESULTADOS

No período de novembro/2005 a agosto/2006 foram avaliados 7.486 eletrocardiogramas (ECG) e selecionados aqueles com laudo de FA, que representaram 62 (0,83%) pacientes. Nove (15%) foram excluídos por insuficiência de dados. Dentre os 53 pacientes incluídos (68±16 anos; 29 homens - 55%), 20 (38%) tinham idade > 75 anos, 25 (48%) hipertensão arterial, 20 (38%) insuficiência cardíaca, três (6%) diabetes mellitus e quatro (8%) fração de ejeção < 35%. Trinta e um (58%) pacientes estavam em uso de ACO, 13 (25%) em uso AAS e oito (15%) sem terapia antitrombótica (Tabela 1). Em dois pacientes a terapia anticoagulante foi considerada inapropriada: o primeiro, de 90 anos, era portador de câncer de próstata metastático, e o segundo morava no interior de Goiás e não teria condições de fazer controle seriado do RNI. Ambos estavam em uso de AAS. (Tabela 1)

De acordo com a recomendação da diretriz americana/europeia para a terapia antitrombótica, 32 (60%) pacientes tinham indicação Classe I, 17 (32%) Classe IIa, um (2%) Classe IIb e três (6%) Classe III. Em relação aos fatores de risco embólico caracterizados na mesma diretriz, 15 (28%) pacientes tinham ao menos um fator de alto risco, 33 (62%) fator de risco intermediário e dois (4%) apenas fator de baixo risco. Três (6%) pacientes não tinham qualquer fator de risco embólico. Dado relevante é que oito (89%) dos nove pacientes com embolia cerebral prévia e nove (90%) dos 10 pacientes com valvopatia estavam sob terapia anticoagulante. Assim, dentre os 15 pacientes com alto risco embólico (quatro eram valvopatas com AVC prévio), 13 (86%) estavam em uso de ACO.

Dentre os pacientes Classe I, 21/32 (66%) foram considerados adequados (19 estavam em uso de anticoagulante e dois em uso de AAS por apresentarem contraindicação ao ACO). Dentre os pacientes Classe IIa, 13/17 (76%) estavam corretamente tratados, sendo 10 com prescrição de anticoagulante e três com prescrição de AAS. Um paciente foi caracterizado como Classe IIb porque estava em uso de ACO, clopidogrel e AAS na dose de 200 mg, mesmo após um ano de revascularização percutânea. Dos três pacientes com indicação Classe III, apenas um (33%) estava em uso de ACO, ou seja, incorretamente tratado (Figura 1). - Adequação da terapia antitrombótica de acordo com a diretriz de FA das sociedades americana e europeia de cardiologia

Considerando-se todos os pacientes com indicação Classe I e IIa, não houve diferença em relação ao índice de anticoagulação entre homens e mulheres (60% vs 58.3%, p=NS). Ainda analisando esse subgrupo, apenas 7/19 (37%) dos pacientes com idade > 75 anos estavam sendo anticoagulados, contra 22/30 (73%) daqueles com idade inferior esta (p=0,016).

Considerando-se a diretriz brasileira, 47 pacientes tinham ao menos um fator de risco e assim eram candidatos à prescrição de ACO. Após análise da terapêutica prescrita, 33 (62%) pacientes foram considerados adequados, sendo 29 em uso correto de ACO, três em uso de correto de AAS e um paciente sem qualquer terapia antitrombótica.

Dentre todos os pacientes, 29 (55%) estavam recebendo ACO corretamente indicado, tanto pela diretriz da SBC quanto pela diretriz das sociedades americana e europeia de cardiologia. Dentre os pacientes com indicação de terapia anticoagulante pela diretriz brasileira (n=47/53), 29 (61,7%) estavam em uso de ACO; enquanto dos 44/53 pacientes com indicação pela diretriz americana/européia, 29 estavam utilizando ACO (65,9%) (Tabela 2).

Houve diferença apenas no subgrupo Classe IIa (n=17/53), em que o uso de AAS é considerado correto pela diretriz americana/europeia e incorreto pela diretriz brasileira. Três pacientes (18%) estavam em uso de AAS nesse subgrupo.

DISCUSSÃO

Uma revisão da literatura em 2000, incluindo aproximadamente 6.500 pacientes, mostrou que a warfarina era utilizada em apenas 15% a 44% dos pacientes sem contraindicação à terapia anticoagulante12. Publicações posteriores revelam que esse índice vem aumentando, mas ainda está muito aquém do desejado9-11,13. A frequência do uso de ACO na amostra aqui apresentada (55%) é semelhante à relatada nos estudos com os melhores resultados9-11. Em recente análise do banco de dados do Reino Unido, que abrange 12.267 portadores de FA, 53% dos homens e 40% das mulheres estavam em uso de ACO, sendo que apenas 56,5% daqueles com alto risco embólico recebiam anticoagulante9. Um grupo do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo relatou que, após um ano de seguimento no serviço, 57,8% de todos os pacientes com FA e apenas 60,4% dos pacientes com AVC isquêmico prévio estavam recebendo ACO11. No presente estudo, 86% dos pacientes com alto risco embólico recebiam prescrição de anticoagulante. O estudo britânico supracitado9 relata menor frequência de anticoagulação em pacientes do sexo feminino, o que não foi observado na nossa amostra (60% dos homens vs 58.3% das mulheres, p=NS).

Vários trabalhos mostram que a idade avançada é um fator associado à menor taxa de anticoagulação9,12,14,15, o que se confirmou nesse estudo, com apenas 37% dos pacientes com idade > 75 anos sendo anticoagulados, comparado com 73% daqueles com idade inferior.

Os pacientes com valvopatias reumáticas são mais frequentemente tratados com ACO, provavelmente por serem mais jovens, e assim com menor risco de sangramento, e possuírem elevado risco embólico16. Esse subgrupo em geral é excluído dos estudos randomizados, por sabidamente se beneficiarem da anticoagulação17. Um estudo realizado no Japão mostrou que 81,6% dos pacientes reumáticos recebiam anticoagulantes, enquanto no presente estudo 90% desses pacientes eram anticoagulados18.

Considerando-se as indicações da diretriz brasileira de FA de 2003 e da diretriz das sociedades americana e europeia de cardiologia, não houve diferença no uso correto de ACO (61,7% vs 65,9%). No entanto, a diretriz americana/europeia é mais condescendente quanto à utilização de AAS em pacientes com apenas um fator de risco intermediário (Classe IIa). Além disso, existem algumas disparidades em relação aos fatores de risco considerados nos consensos supracitados. A diretriz brasileira não identifica a doença arterial coronária como marcador de risco embólico enquanto aquela não considera a tireotoxicose. No entanto, para ambas as variáveis não há concordância na literatura quanto à associação de risco independente17.

Alguns estudos avaliaram as causas de subutilização da ACO em pacientes com FA12,14. Foi identificado, entre outras, que os médicos subestimavam o benefício da terapia, ou não estavam a par da literatura atual, ou estavam cientes, mas não aceitavam os resultados, ou ainda, não acreditavam que as características de seus pacientes se aplicassem aos estudos prévios. Outras causas apontadas foram: pacientes com idade avançada, risco de sangramento elevado ou com incapacidade física ou psíquica, alcoolismo, doença ulcerosa péptica, anemia, má aderência à medicação, uso de AAS ou anti-inflamatórios não-esteroidais e dificuldade de comunicação médico-paciente9,10,12,14. Outra limitação para a instituição da terapia é a carência de estrutura física e de recursos humanos que garantam um atendimento adequado, principalmente, em hospitais públicos19. Os pacientes que recebem anticoagulação devem ter facilidade de acesso ao profissional de saúde e ao laboratório para garantir a eficácia e segurança do tratamento. Como isso não é possível em muitos locais, o médico prefere não expor o paciente ao risco de sangramento associado à medicação.

A adequação da terapia anticoagulante, conforme as recomendações de diretrizes, consensos ou escores de risco embólico, já foi publicada anteriormente, porém, sem o grau de detalhamento aqui apresentado20,21. Tal enfoque é importante na medida em que reflete não apenas a atualização dos médicos, mas principalmente, a aplicação desse conhecimento na prática clínica. Esse tipo de estudo pode auxiliar na detecção e mapeamento da prática clínica específica de cada local. Com esse conhecimento é possível criar programas de orientação e educação continuada e desenvolver condições logísticas que facilitem a prática da anticoagulação. Observou-se aqui a discrepância entre as recomendações de diretrizes e a realidade da prática clínica, mesmo no contexto de uma clínica privada e especializada, onde teoricamente a facilidade de acesso ao médico favoreceria a utilização dessa terapêutica. Esse distanciamente teórico-prático foi também relatado no âmbito da anticoagulação para profilaxia de tromboembolismo. Um estudo multicêntrico nacional mostrou que 29% dos pacientes com alto risco não recebiam prescrição de anticoagulantes22.

As limitações do presente estudo foram principalmente o pequeno número da amostra, a ausência de análise do nível de anticoagulação - medido pela relação normatizada internacional (RNI) - e a falta de busca ativa dos motivos que impediam os médicos de utilizar a terapia anticoagulante. Era esperado que a avaliação de 7.468 ECGs realizados em clínica especializada de cardiologia pudesse revelar maior proporção de pacientes com FA. Uma possível explicação para esse baixo índice é o número crescente de autorreferenciamento ao cardiologista para realização de "check-up", o que resulta na inclusão de muitos indivíduos saudáveis nessa população. Outro fator que pode ter contribuído foi a seleção apenas de pacientes com FA presente no momento da realização do ECG. Assim, provavelmente não foram incluídos pacientes com FA paroxística, que têm as mesmas indicações de ACO de pacientes com FA persistente ou permanente. Talvez um processo de seleção que incluísse, por exemplo, avaliação do Holter, teste de esforço e análise das arritmias gravadas por dispositivos implantáveis pudesse ampliar o numero de pacientes incluídos. Em relação ao seguimento da anticoagulação, a falta do registro mensal do valor do RNI na maioria dos prontuários impossibilitou a avaliação desse dado. Apesar disso, foi possível avaliar a intenção do médico-assistente em "anticoagular" o paciente, e assim analisar se os cardiologistas estão atentos à necessidade de prevenir eventos embólicos nos pacientes com FA. A última limitação é própria do delineamento do estudo, que não previa a abordagem direta dos médicos-assistentes do serviço para qualquer tipo de esclarecimento.

CONCLUSÃO

A terapia anticoagulante está sendo utilizada corretamente em um pouco mais da metade dos pacientes com FA estudados nesta amostra, mas esse número ainda está muito distante do ideal considerando-se as indicações dos consensos atuais. Nos pacientes com alto risco embólico, a proporção de tratamento com ACO foi maior do que a relatada em outros estudos, mesmo se realizados em centros de referência. Por fim, os pacientes com idade superior a 75 anos são os que menos recebem prescrição de anticoagulantes, apesar do risco de embolia aumentar diretamente com a idade.

Conflito de interesse: não há

Artigo recebido: 09/06/09

Aceito para publicação: 17/09/09

Trabalho realizado na Biocárdios Centro de Fibrilação Atrial, Brasília, DF

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Aceito
      17 Set 2009
    • Recebido
      09 Jun 2009
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