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Fatores associados à anemia em lactentes nascidos a termo e sem baixo peso

Resumos

OBJETIVO: Investigar os fatores envolvidos na gênese da anemia ferropriva em lactentes. MÉTODOS: Trata-se de um estudo transversal, no qual foram avaliadas 104 crianças no segundo ano de vida, que nasceram a termo e sem baixo peso, no município de Viçosa, Minas Gerais. Foi aplicada entrevista aos pais, realizado recordatório 24 horas e avaliação antropométrica. Os exames laboratoriais foram eritrograma, ferritina e retinol sérico. O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética com seres humanos da UFMG e UFV. As análises estatísticas foram conduzidas no Epi Info e SPSS. O Modelo de Regressão Linear generalizado de Poisson, com resultados expressos como razões de prevalências, foi utilizado para verificar a associação da anemia com as variáveis do estudo. RESULTADOS: A deficiência de vitamina A e a anemia estiveram presentes em 9,6% e 26% das crianças, respectivamente. A anemia dos lactentes se associou ao uso de composto ferroso no pós-parto pela mãe, uso anterior de composto ferroso pela criança, início do pré-natal, tempo de aleitamento materno predominante e condição de trabalho do pai. Assim, no segundo ano de vida, os lactentes filhos de mulheres que iniciaram o pré-natal tardiamente e não usaram o composto ferroso após o parto, com pais em situação de desemprego, que nunca receberam composto ferroso e que mantiveram o aleitamento materno predominante por mais de quatro meses, apresentaram significantemente maior prevalência de anemia. CONCLUSÃO: Os resultados demonstraram a importância da nutrição durante a gestação e durante a infância na prevenção da anemia em crianças.

Alimentação; anemia; gravidez; razão de prevalências; vitamina A


OBJECTIVE: To investigate the factors involved in the genesis of infant iron deficiency anemia. METHODS: This is a cross-sectional study, which evaluated 104 children in their second year of life who were born at term with adequate weight in Viçosa, Minas Gerais, Brazil. An interview, a 24-hour recall to parents, and anthropometric assessment were used. Laboratory exams included blood count, ferritin, and serum retinol. This study was approved by the Ethics Committee of UFMG and UFV. Statistical analyses were conducted using the Epi Info and SPSS softwares. Poisson generalized linear regression model was used to determine the association of anemia with the study variables, with results expressed as prevalence ratio. RESULTS: Vitamin A deficiency and anemia were identified in 9.6% e 26% of the children, respectively. Infant anemia was associated with the date of onset of prenatal care, maternal use of iron after childbirth, paternal working status, prior use of iron by the child, and duration of breastfeeding. Thus, in the second year of life, lactating children of women who began prenatal care late and did not use iron compounds after birth, with unemployed parents, who never received iron compounds, and who were predominantly breastfed for more than four months had significantly higher prevalence of anemia. CONCLUSION: The results have demonstrated the importance of nutrition during pregnancy and infancy in the prevention of anemia in children.

Feeding; anemia; pregnancy; prevalence ratio; vitamin A


ARTIGO ORIGINAL

Fatores associados à anemia em lactentes nascidos a termo e sem baixo peso

Michele Pereira NettoI; Daniela da Silva RochaII; Sylvia do Carmo Castro FranceschiniIII; Joel Alves LamounierIV

IDoutora em Ciências da Saúde; Professora Adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG

IIDoutora em Ciências da Saúde; Professora Adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA

IIIDoutora em Ciências; Professora Associada da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa, MG

IVDoutor em Saúde Pública; Professor Titular da Universidade Federal de São João Del Rey (UFSJ), São João Del Rey, MG

Correspondência para Correspondência para: Michele Pereira Netto Universidade Federal de Juiz de Fora - Instituto de Ciências Biológicas - Departamento de Nutrição Rua José Lourenço Kelmer, s/n - Campus Universitário - São Pedro CEP: 36036-900 - Juiz de Fora - MG Tel: (32) 2102-3234 michele.netto@ufjf.edu.br

RESUMO

OBJETIVO: Investigar os fatores envolvidos na gênese da anemia ferropriva em lactentes.

MÉTODOS: Trata-se de um estudo transversal, no qual foram avaliadas 104 crianças no segundo ano de vida, que nasceram a termo e sem baixo peso, no município de Viçosa, Minas Gerais. Foi aplicada entrevista aos pais, realizado recordatório 24 horas e avaliação antropométrica. Os exames laboratoriais foram eritrograma, ferritina e retinol sérico. O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética com seres humanos da UFMG e UFV. As análises estatísticas foram conduzidas no Epi Info e SPSS. O Modelo de Regressão Linear generalizado de Poisson, com resultados expressos como razões de prevalências, foi utilizado para verificar a associação da anemia com as variáveis do estudo.

RESULTADOS: A deficiência de vitamina A e a anemia estiveram presentes em 9,6% e 26% das crianças, respectivamente. A anemia dos lactentes se associou ao uso de composto ferroso no pós-parto pela mãe, uso anterior de composto ferroso pela criança, início do pré-natal, tempo de aleitamento materno predominante e condição de trabalho do pai. Assim, no segundo ano de vida, os lactentes filhos de mulheres que iniciaram o pré-natal tardiamente e não usaram o composto ferroso após o parto, com pais em situação de desemprego, que nunca receberam composto ferroso e que mantiveram o aleitamento materno predominante por mais de quatro meses, apresentaram significantemente maior prevalência de anemia.

CONCLUSÃO: Os resultados demonstraram a importância da nutrição durante a gestação e durante a infância na prevenção da anemia em crianças.

Unitermos: Alimentação; anemia; gravidez; razão de prevalências; vitamina A.

Introdução

A anemia ferropriva é considerada um problema de saúde pública no Brasil e no mundo, afetando, principalmente, crianças e gestantes. Destaca-se como uma das principais carências nutricionais, por sua magnitude e efeitos deletérios1.

No Brasil, verifica-se que as prevalências de anemia em crianças variam entre 20 e 70%, dependendo da região, da idade, de condições socioeconômicas, entre outros fatores2.

As causas da anemia na infância devem-se principalmente às elevadas necessidades de ferro, unidas ao consumo insuficiente desse mineral3. Outros fatores têm sido descritos, tais como baixa renda familiar, inadequado tempo de aleitamento materno, baixa escolaridade dos pais4, número elevado de pessoas residentes no mesmo domicílio5, baixo peso ao nascer, filhos de mães adolescentes6, entre outros, dentre os quais se destacam a idade gestacional e peso ao nascer, já que a reserva de ferro acumulada pela criança durante a gestação é dependente do peso e ocorre principalmente no último trimestre. É essa reserva, somada ao aleitamento materno exclusivo durante os primeiros seis meses, que garante o estado nutricional adequado da criança7.

Embora já tenham sido amplamente descritas estratégias de controle da anemia, ainda persistem elevadas prevalências na população brasileira, fato que justifica a busca por outros fatores predisponentes dessa carência, com intuito de garantir uma melhor abordagem da doença. Diante disso, o objetivo deste trabalho foi investigar os fatores envolvidos na gênese da anemia ferropriva em lactentes nascidos a termo e sem baixo peso em um grupo de crianças do município de Viçosa, Minas Gerais.

Métodos

Trata-se de um trabalho de corte transversal, desenvolvido dentro de um estudo mais amplo intitulado "Avaliação de diferentes esquemas de suplementação medicamentosa com ferro e vitamina A no tratamento e prevenção da anemia ferropriva em crianças no segundo ano de vida", realizado em Viçosa, MG.

Na seleção dos participantes, foram dados da Declaração de Nascidos Vivos do município. As crianças na faixa etária de interesse receberam visita domiciliar, na qual seus pais foram entrevistados para verificação dos critérios de inclusão, que foram: crianças residentes na zona urbana do município, sem intercorrências neonatais ou anomalias congênitas, nascidas de parto único, a termo e com peso ao nascer >2.500 gramas, com idade de 12 a 20 meses, filhos de mulheres com idade materna > 20 anos. Os critérios de exclusão foram não aceitar participar do estudo, ausência no domicílio no momento da visita domiciliar e não realizar todas as etapas do trabalho, de forma que no total foram avaliadas 104 crianças. O número final foi obtido considerando-se a amostra necessária para o segmento posterior do trabalho, que foi um ensaio clínico.

Na entrevista, foram obtidas informações sobre a identificação da criança, condições socioeconômicas e de habitação, variáveis maternas, morbidades, história de vacinação e práticas alimentares. Todas as entrevistas foram conduzidas pelo mesmo pesquisador. Procedeu-se ainda a avaliação dietética, parasitológica, laboratorial e antropométrica.

Pelo recordatório de 24 horas, avaliou-se a composição da dieta (energia, ferro, vitamina A e vitamina C), utilizando o software Diet-Pro versão 4.0. A avaliação da ingestão dietética foi realizada com base nas DRIs, utilizando-se a EAR como ponto de corte ou a AI para avaliar a proporção de indivíduos que apresentavam ingestão adequada.

As densidades de nutrientes foram calculadas considerando mg do nutriente por 1.000 kcal. Diante da ausência de recomendação estabelecida para análise da inadequação da densidade na dieta, realizou-se um cálculo para estimar o valor recomendado, considerando a recomendação nutricional e energia (EER calculada com o peso médio das crianças avaliadas).

O exame parasitológico buscou a presença de parasitas e identificação dos mesmos. Na avaliação laboratorial, os parâmetros do estado nutricional de ferro avaliados foram hemoglobina, hematócrito, VCM, HCM, CHCM, eritrócitos e ferritina, obtidos por meio de um contador eletrônico. O estado nutricional de vitamina A foi avaliado pelo retinol sérico, utilizando-se a cromatografia líquida de alta eficiência (CLAE).

A avaliação antropométrica ocorreu com as medidas de peso e comprimento, para as quais foram calculados os índices peso/idade, estatura/idade, peso/estatura e IMC/idade, expressos em escore-Z. Para detectar os desvios nutricionais, foram os pontos de corte 2 e -2 escore-Z. As curvas de crescimento da Organização Mundial da Saúde8 foram consideradas como referência, e o software WHO Anthro foi utilizado para as análises dos dados.

As análises estatísticas foram realizadas nos softwares Epi Info 6.04 e SPSS versão 15.0. Utilizou-se o primeiro para as análises descritivas e o segundo para as demais. Antes das análises, o banco de dados passou por procedimento de verificação de consistência, que se trata de verificar a presença de outliers e erros de digitação no banco de dados. Quando do aparecimento de inconsistências, os arquivos originais foram consultados para esclarecimentos e alterações.

Foram feitas análises de correlação entre dados laboratoriais e dietéticos utilizando os testes de correlação de Pearson ou Spearman, o primeiro para as variáveis simétricas e o segundo para as assimétricas. Para verificar a simetria das variáveis, utilizou-se o teste de Shapiro Wilks.

A associação entre anemia e as demais variáveis foi avaliada pelo Modelo de Regressão Linear generalizado de Poisson com variância robusta, e os resultados foram expressos como razões de prevalências. Esse modelo foi escolhido pela alta prevalência do desfecho, que determinaria razões de odds bastante superiores a razões de prevalência caso a análise fosse realizada por regressão logística.

Nas análises univariadas, foram os testes qui-quadrado de Pearson e testes qui-quadrado de tendência. As variáveis com associação ao nível de 0,20 foram levadas para análise multivariada. A seguir, foram sendo retiradas passo a passo as menos significativas, até ficar um modelo em que todas as variáveis fossem significativas ao nível de 0,05.

O protocolo do estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Viçosa e da Universidade Federal de Minas Gerais. Os responsáveis pelas crianças foram informados sobre os objetivos e procedimentos do estudo; aqueles que aceitaram participar assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

As 104 crianças avaliadas apresentaram média de idade de 15,9 ± 2,2 meses. A distribuição por gênero foi de 53,8% para o sexo feminino e 46,2% para o masculino.

Na Tabela 1, podem-se verificar algumas características sociodemográficas da população estudada.

Nenhuma criança apresentou baixo peso e 4,8% apresentaram sobrepeso utilizando-se o índice peso para comprimento. Já a baixa estatura esteve presente em 6,7% das crianças.

Dez crianças (9,6%) encontravam-se com inadequação do estado nutricional de vitamina A e 27 (26%) estavam anêmicas, sendo as médias de retinol e hemoglobina 30,9 ± 17,2 mg/L e 11,6 ± 1,3 g/dL, respectivamente. Com relação à parasitose intestinal, 10,4% das crianças estavam infestadas e, entre elas, 40% apresentavam Ascaris lumbricoides e as demais Giardia lamblia.

O consumo mediano de vitamina C, cálcio, vitamina A, ferro e densidade de ferro foram: 47,8 mg; 753,9 mg; 518,3 µg; 5,2 mg; 4,4 mg/1.000 kcal; respectivamente. Já o percentual de lactentes com consumo inferior a EAR ou AI foi de 8,7; 33,7; 9,6; 17,3; e 31,7% para vitamina C, cálcio, vitamina A, ferro e densidade de ferro, respectivamente.

Com o objetivo de relacionar os parâmetros dietéticos com os laboratoriais, procedeu-se a análise de correlação entre os mesmos (Tabela 2).

Verifica-se que houve correlação positiva entre algumas variáveis laboratoriais e dietéticas, especialmente as que avaliam a quantidade de ferro na dieta. Além disso, a ferritina e vitamina A dietética apresentaram correlação negativa e o cálcio correlacionou-se com o hematócrito. Contudo, nenhuma das correlações encontradas foi forte.

Entre as variáveis que não foram associadas significativamente com a frequência de anemia encontram-se: sexo; retinol sérico; consumo de vitamina A dietética; densidade de vitamina A dietética; consumo de vitamina C dietética, densidade de vitamina C dietética; densidade de cálcio dietético; estado nutricional; parasitose atual; assistência pré-natal; uso de composto ferroso na gestação; início da suplementação na gestação; uso regular da suplementação na gestação; uso de complexo vitamínico na gestação; tipo de parto; uso de complexo vitamínico no pós-parto; paridade; domicílio multigeracional; número de pessoas no domicílio; menores de cinco anos no domicílio; escolaridade da mãe; estado civil da mãe; condição de trabalho da mãe; presença de diarreia; febre; dor de garganta; tosse; coriza; bronquite; infecção; dor de ouvido ou alergias nos últimos 15 dias; presença de parasita em exame anterior; uso atual de composto ferroso ou complexo vitamínico; aleitamento materno; tempo de aleitamento materno exclusivo; tipo de leite consumido atualmente; e ingestão de leite próximo das refeições.

A anemia teve associação significativa ao nível de 0,20 com as variáveis: densidade de ferro, consumo de cálcio, início do pré-natal, número de consultas no pré-natal, presença de anemia na gestação, uso de composto ferroso no pós-parto, escolaridade do pai, condição de trabalho do pai, baixa renda, baixa renda per capita, benefício de algum programa do governo, doença nos últimos 15 dias, presença de anemia em exame anterior, uso anterior de composto ferroso, aleitamento materno atual, tempo de aleitamento materno predominante, idade de introdução da alimentação complementar (Tabela 3).

Do ponto de vista dietético, pela análise univariada, percebe-se que as crianças que consumiam dieta com baixa densidade de ferro e alta quantidade de cálcio têm maior frequência de anemia, assim como as crianças que mantêm o aleitamento materno predominante por mais de quatro meses.

Nesta amostra, o tempo de aleitamento materno total mediano foi de 210 dias (mínimo de zero e máximo de 600 dias). Já o aleitamento exclusivo e predominante foi de 60 dias (0 - 240 dias) e 102 dias (0 - 240 dias), respectivamente. Com relação à idade de introdução da alimentação complementar na amostra estudada, encontrou-se mediana de 155 dias, variando entre 30 e 270 dias.

Com relação aos dados gestacionais e do pós-parto, verifica-se que mulheres que iniciaram o pré-natal após os três meses de gestação e fizeram menos de seis consultas, bem como aquelas que não fizeram uso do composto ferroso no pós-parto, tiveram filhos com maiores frequências de anemia.

Todas as variáveis associadas ao desfescho em um nível de significância menor que 0,20 foram levadas para análise multivariada. Após ajuste das variáveis, permaneceram associados à anemia o uso de composto ferroso no pós-parto, uso anterior de composto ferroso, início do pré-natal, tempo de aleitamento materno predominante e condição de trabalho do pai (Tabela 4). Assim, no segundo ano de vida, na amostra estudada, os lactentes filhos de mulheres que iniciaram o pré-natal tardiamente e não usaram o composto ferroso após o parto, com pais em situação de desemprego, que nunca receberam composto ferroso e que mantiveram o aleitamento materno predominante por mais de quatro meses, apresentaram maior frequência de anemia.

Discussão

O estudo transversal, apesar de não ser o mais adequado desenho metodológico para determinação de fatores de risco, pois todos os dados são observados em um mesmo momento, tem sido empregado frequentemente para realizar diagnóstico da situação de saúde. O recordatório 24 horas, apesar de ser um método rápido, de baixo custo e fácil aplicação, não reflete a ingestão habitual de indivíduos, depende da memória do entrevistado e requer treinamento do entrevistador. Contudo, esse método fornece estimativas confiáveis do consumo médio de populações mesmo quando aplicados uma única vez, sendo amplamente utilizado9. Outro possível viés é o de memória, que ocorre pela utilização de variáveis recordadas pelo indivíduo a partir de entrevistas. Há, ainda, a possibilidade de vieses relativos a caracterização e seleção da amostra.

No presente estudo, foram encontradas algumas correlações positivas entre os parâmetros de avaliação do estado nutricional e parâmetros dietéticos de ferro. Tal fato demonstra não só que a quantidade de ferro consumida é importante, mas também sua proporção em função da densidade energética da dieta, pois uma dieta com elevada densidade energética pode atingir a capacidade gástrica do lactente, dificultando a ingestão adequada do mineral.

Outros estudos também encontraram relação entre dieta e parâmetros laboratoriais, com médias da densidade de ferro significativamente menores em crianças anêmicas, comparadas as não anêmicas10; associação da anemia com densidade de ferro11, biodisponibiliade de ferro12 e ferro biodisponível13; associação de anemia grave com consumo inadequado de ferro14. E, ainda, associação de ferro biodisponível com hemoglobina15 e anemia16, de forma que crianças com menor consumo apresentaram maior risco dessa deficiência. Portanto, pode-se perceber que a alimentação inadequada é um fator de risco para a anemia.

A busca pela adequação da dieta de lactentes começa com o aleitamento materno e a introdução da alimentação complementar de forma adequada, para garantir que as necessidades de ferro sejam atendidas. Na amostra estudada, o tempo de aleitamento materno não foi adequado, com medianas de tempo total e exclusivo abaixo da recomendação da Organização Mundial da Saúde17. A mediana de idade estimada das crianças em aleitamento materno exclusivo foi de 2,2 meses na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde, realizada em uma amostra representativa da população brasileira18. Estudo realizado em lactentes de creches públicas de São Paulo demonstrou que o uso de aleitamento materno exclusivo por menos de dois meses representa fator de risco para a anemia4.

No Canadá, estudo mostrou que uma abordagem educacional, baseada em alimentos, melhora o consumo de ferro dos lactentes19, devendo ser encorajada. No Brasil, segundo recomendação do Ministério da Saúde, a introdução da alimentação complementar deve ser orientada de forma adequada, uma vez que ela tem papel importante no suprimento de ferro durante a infância20.

Embora o aleitamento materno seja importante na prevenção da anemia na infância21, a manutenção do aleitamento materno exclusivo por um tempo superior a seis meses aumenta o risco de anemia em crianças22. No presente estudo, o tempo de aleitamento materno predominante superior a quatro meses foi um fator de risco para a anemia. Sabe-se que a introdução de alimentos reduz a biodisponibilidade do ferro do leite materno7, e talvez essa seja uma possível explicação para o fato. Outra hipótese observada na prática clínica é que muitas vezes a manutenção do aleitamento materno ocorre em detrimento da alimentação complementar, a qual é de grande importância para que se garantam as necessidades de ferro.

O cálcio da dieta, sabidamente um inibidor da absorção de ferro, não apresentou correlação negativa com os parâmetros laboratoriais de ferro, ao contrário, para hematócrito a correlação foi positiva. Essa correlação não era esperada, visto que o cálcio apresenta associação negativa com o ferro e possivelmente é um fator de confusão, que foi eliminado na análise multivariada.

A vitamina A da dieta teve correlação positiva com a ferritina. Uma possível explicação para isso seria o poder da vitamina A em facilitar a utilização dos estoques de ferritina23. O retinol sérico se relacionou positivamente com ferro, ferro biodisponível e densidade de ferro biodisponível, corroborando os achados de outros estudos que mostram correlação entre vitamina A e ferro.

Correlações com a ferritina não foram encontradas. Tem-se discutido o cuidado na utilização da ferritina como indicador do estado nutricional na infância, visto que a mesma muda rapidamente nos primeiros meses de vida. Além disso, crianças que apresentam infecção podem ter alteração na ferritina, fato que prejudica a utilização desse parâmetro de forma isolada24.

As frequências de anemia e deficiência de vitamina A foram caracterizadas como problemas de saúde pública moderados1. Contudo, deve-se destacar que as crianças estudadas passaram por um processo de triagem pelo qual vários fatores de risco conhecidos foram excluídos, levando a crer que as frequências são ainda maiores.

Midzi et al.25 encontraram maior prevalência de anemia em crianças parasitadas. Esse achado não foi observado no presente estudo, possivelmente pelo fato de os parasitas encontrados não serem causadores de perdas sanguíneas.

Embora neste estudo tenham sido encontradas correlações significantes entre os parâmetros dietéticos e laboratoriais, as correlações foram fracas, sugerindo o estudo de outros determinantes dos níveis de hemoglobina. Na tentativa de explicar a anemia no lactente, foram feitas, neste estudo, associações entre a deficiência e algumas variáveis. Com relação às variáveis relacionadas à mãe, o início do pré-natal e o uso de composto ferroso no pós-parto se associaram à anemia.

Tem-se sugerido que a anemia na gestação tem um impacto negativo sobre o estado nutricional do lactente26,27. Estudo de Meinzen-Derr et al.22 verificou que a anemia materna esteve associada à anemia na infância, aumentando três vezes o risco de anemia na criança. A relação entre o estado nutricional materno e do lactente se deve à deficiência de ferro na gestação, principalmente no último trimestre, promovendo aumento do número de nascimentos prematuros e de baixo peso. Esse último tem impacto sobre as reservas de ferro do lactente, constituindo-se em um risco de anemia na infância1. Contudo, a amostra estudada apresenta apenas crianças nascidas sem baixo peso e com idade gestacional adequada.

A suplementação de ferro na gestação tem impacto na diminuição da prevalência de anemia na infância28. Mulheres que receberam suplementação durante a gestação na Nigéria tiveram filhos com maior comprimento ao nascer e maior concentração de ferritina três meses após o parto29. Contudo, em estudo realizado no interior de São Paulo, não foi observada influência dos níveis de ferro em gestantes sobre os níveis de ferro de seus filhos30.

Schneider et al.31 verificaram que a participação em um programa de atendimento para mulheres e crianças teve impacto positivo sobre a anemia em crianças de baixa renda dos Estados Unidos, demonstrando a importância da assistência à mulher. No Brasil, recomenda-se que a gestante inicie o pré-natal ainda no primeiro trimestre de gestação, para que se assegure, ao fim da gestação, o nascimento de uma criança saudável, assim como o bem- estar materno e neonatal32, e que a suplementação de ferro comece na 20ª semana da gestação e se estenda por três meses pós-parto33.

Com relação às variáveis sociodemográficas, apenas a variável condição de trabalho do pai se mostrou associada à anemia, sendo que os filhos de pais desempregados apresentaram maior frequência de anemia que filhos de pais com emprego formal. Vale destacar que melhor condição sociodemográfica poderia condicionar melhor acesso a alimentação e, consequentemente, menores prevalências de anemia7.

Outra variável associada à anemia na amostra de crianças estudadas foi o uso de composto ferroso anterior, de forma que as crianças que nunca haviam utilizado o suplemento apresentavam maior frequência de anemia. Esse resultado também foi encontrado em outro estudo realizado em Viçosa com lactentes de 6 a 12 meses34. O uso de suplemento de ferro nos primeiros dois anos de vida é recomendado pela Sociedade Brasileira de Pediatria, visto que as necessidades de ferro nessa faixa etária são grandes, e mesmo que se garanta um adequado aporte de ferro pela dieta, são difíceis de ser alcançados. O Ministério da Saúde do Brasil33 recomenda que as crianças sejam suplementadas dos seis aos 18 meses, com objetivo de prevenir a anemia por deficiência de ferro na infância.

Este trabalho apontou alguns fatores que contribuem para o aparecimento de anemia na infância, mas é importante destacar que não há como verificar todas as variáveis que possivelmente interferem na presença da anemia nesse grupo. É provável que outros parâmetros, não avaliados por este estudo, também contribuam para o aparecimento da deficiência e, por isso, devem ser objeto de estudo em outros trabalhos.

Conclusão

Este estudo permite concluir que alguns lactentes filhos de mulheres que iniciaram o pré-natal tardiamente e não usaram o composto ferroso após o parto, com pais em situação de desemprego, que nunca receberam composto ferroso e que mantiveram o aleitamento materno predominante por mais de quatro meses apresentam maior frequência de anemia. Esses resultados demonstram a importância da nutrição materna, do acompanhamento da gestante e da suplementação de ferro na gestação como medidas para prevenir a anemia na infância. Além disso, deve-se destacar a importância da adequada nutrição na infância com aleitamento materno de forma exclusiva até os seis meses e correta introdução da alimentação complementar, utilizando boas fontes de ferro, com vistas a garantir a necessidade desse mineral.

Artigo recebido: 25/03/2011

Aceito para publicação: 27/06/2011

Suporte Financeiro: CNPq - Brasil (Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico), processo n° 474549/2004-6;

Conflito de interesse: Não há.

Trabalho realizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa, MG

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  • Correspondência para:
    Michele Pereira Netto
    Universidade Federal de Juiz de Fora - Instituto de Ciências Biológicas - Departamento de Nutrição
    Rua José Lourenço Kelmer, s/n - Campus Universitário - São Pedro
    CEP: 36036-900 - Juiz de Fora - MG
    Tel: (32) 2102-3234
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011

    Histórico

    • Recebido
      25 Mar 2011
    • Aceito
      27 Jun 2011
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