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A relação médico-paciente em algumas obras literárias

PONTO DE VISTA

A relação médico-paciente em algumas obras literárias

Jorge Cruz

Doutorado em Bioética, Médico do Hospital de S. Sebastião, M. Feira, Portugal

Correspondência para Correspondência para: Instituto de Bioética - UCP Rua Diogo Botelho 4169-005, Porto, Portugal jcruz@hospitaldaarrabida.pt

"Through the creative words of George Eliot, Tolstoy, Chekhov, Camus, or Thomas Mann, the experience of being ill, being a doctor, or dying can be powerfully evoked and vicariously felt. Literature also teaches the nuances of language, the way its structure and form communicate the inner experience of another person"1.

(Edmund D. Pellegrino)

A linguagem é um elemento-chave da relação assistencial entre o médico e o paciente. Para a elaboração deste artigo seguimos o desafio de Edmund D. Pellegrino1, um dos pioneiros da Bioética, de refletir acerca desse encontro singular a partir de algumas obras de diversos autores consagrados. Começaremos pelo livro A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstoi, considerado uma obra-prima da ficção russa e um clássico da literatura mundial, que analisa de um modo detalhado os principais aspectos envolvidos na relação médico-paciente2. Nesse sentido, utilizaremos a narrativa como paradigma de uma reflexão bioética, embora fazendo algumas referências a outras obras literárias que abordam essa temática. Pretendemos, assim, refutar alguns argumentos dos que criticam a inclusão do ensino da literatura e das humanidades nos cursos médicos, como sendo apenas um entretenimento defasado da atividade clínica ou destinado a uma elite de intelectuais.

Lev Tolstoi, também conhecido como Léon Tolstoi ou Lev Nikoláievich Tolstoi (1828-1910), foi um escritor russo muito influente na literatura e política do seu país. É considerado, com Fiódor Dostoievski (1821-1881), um dos maiores romancistas da literatura russa do século XIX. Associado à corrente realista, as suas obras mais famosas são Guerra e Paz, em que Tolstoi retrata, através do percurso de cinco famílias, a sociedade russa do início do século XIX, a pretexto da invasão napoleônica de 1812, e Anna Karenina, que reflete os valores morais e sociais da Rússia dessa época.

A Morte de Ivan Ilitch é um livro pouco volumoso, principalmente se o compararmos com as outras obras de Tolstoi já citadas, escrito em um estilo simples, direto e sem floreados sobre um tema sempre difícil e complexo, mas intemporal. A falta de sentido do sofrimento e da morte, o desejo de imortalidade, a (aparente) ausência de Deus, são sentimentos humanos universais, expressos nessa novela de modo sublime. No prefácio da edição que utilizamos desta obra, António Lobo Antunes refere que "não há sentimento que nele não figure, não há emoção que não esteja presente. Tudo o que somos se acha em poucas páginas, escrito de uma forma magistral"3.

A descrição do encontro do juiz Ivan Ilitch, principal personagem desta obra, com um médico famoso, que Ilitch consulta por insistência da mulher, quando surgem os primeiros sintomas da doença que o vitimou, revela o paternalismo exacerbado do clínico, certamente comum na Rússia do século XIX, bem como uma total insensibilidade para com as preocupações do paciente, pois estava aparentemente mais interessado no seu diagnóstico brilhante do que no bem-estar e recuperação da saúde do paciente. Essa atitude de insuportável superioridade não era estranha a Ilitch, pois era a que ele próprio assumia perante os arguidos na sua atividade profissional como juiz:

"Tudo se passou como esperava; tudo aconteceu como sempre acontece. A espera, e o ar importante, afetado do médico, esse ar que ele conhecia do tribunal, a palpação, a auscultação, as perguntas, que exigiam respostas previamente determinadas e que eram, portanto, desnecessárias, e o ar de importância, que implicava que o senhor só tem de se entregar nas nossas mãos e nós tratamos de tudo - nós sabemos sem qualquer dúvida como tudo se faz, tudo da mesma maneira para todas as pessoas, sejam elas quem forem. Exatamente como no tribunal. Como ele no tribunal assumia um certo ar em relação ao arguido, também o médico famoso assumia esse mesmo ar em relação a ele.

Para Ivan Ilitch só uma questão era importante: a sua situação era perigosa ou não? O médico ignorou essa pergunta inadequada [.] Não estava em questão a vida de Ivan Ilitch, mas uma discussão entre rim solto e apendicite. E essa discussão resolveu-a o médico de um modo brilhante aos olhos de Ivan Ilitch em favor da apendicite... Tudo isto era ponto por ponto aquilo que Ivan Ilitch fazia mil vezes aos arguidos daquela mesma maneira brilhante. O médico fez o seu resumo do mesmo modo brilhante e olhando com ar solene, e mesmo alegre, por cima dos óculos para o arguido. Pelo resumo do médico Ivan Ilitch concluiu que estava muito mal, mas que para o médico, e talvez para todos, isso era indiferente"2.

O escritor português José Rodrigues Miguéis (19011980), exilado nos EUA desde 1935, não teve melhor sorte no seu contato com alguns médicos que o assistiram durante o seu internamento no Hospital Bellevue, em Nova Iorque, durante a Segunda Grande Guerra. Eis o testemunho de uma dessas ocasiões, que descreve na sua autopatografia Um homem sorri à morte com meia cara: "Estava agora na presença de [médicos] estranhos, que nada sabiam de mim nem tinham comigo nenhum laço, e para quem eu era apenas mais um caso de hospital, um objeto de curiosidade clínica [.] Eu não existia, era um feixe de sintomas"4. Em um outro excerto desta obra, Miguéis faz, porém, a ressalva:

"Se, ao traçar alguns episódios, rocei aqui-além pela ironia, é sempre com profundo respeito e comovida gratidão que me refiro aos autênticos apóstolos da Medicina que tenho conhecido [.] Nem de longe tentei reincidir na sátira de que há milênios eles têm sido alvo. Pode dizerse dos médicos o mesmo que das mulheres e dos judeus: crivados de epigramas e ataques, a humanidade não sabe nem pode viver sem eles"4.

Um dos elementos mais importantes para o estabelecimento de uma relação de confiança entre o médico e o paciente é uma comunicação eficaz, que inclui ouvir com empatia a sua história, deixá-lo expressar as suas preocupações e, sempre que possível, transmitir-lhe com palavras que ele possa entender o diagnóstico e eventual tratamento da sua condição. Nada disso se verificou nos vários encontros de Ivan Ilitch com os diferentes médicos a quem recorreu. Após a primeira consulta:

"Ivan Ilitch saiu devagar, sentou-se tristemente na caleça e foi para casa. Durante todo o caminho não parou de magicar em tudo aquilo que o médico dissera, tentando traduzir em linguagem simples todas aquelas palavras complicadas, obscuras e ler nelas a resposta à pergunta: o meu estado é mau, muito mau, ou não é ainda nada de muito grave?"2.

Muitas vezes, como refere Manuel Alegre, "os médicos falam outra língua, quem é que pode entrar naquele código"5.

Contudo, é ao médico que compete essa responsabilidade de descodificar a linguagem técnica e científica, incompreensível para leigos, por palavras que o paciente entenda e possa aplicar à sua situação clínica concreta.

Joan Didion, autora da peça de teatro O Ano do Pensamento Mágico, revela a sua dificuldade em compreender a linguagem utilizada pelos médicos que assistiam a sua filha Quintana, quando esta esteve internada no Centro Médico da University of California, Los Angeles (UCLA), na sequência de uma hemorragia cerebral:

"Pus mais uma coisa na mala da Quintana esta manhã. A edição de Neuroanatomia Clínica que comprei na livraria da UCLA quando não percebia nada do que diziam os médicos. Este livro tem estado na minha mesa-decabeceira no [Hotel] Beverly Wilshire há cinco semanas e continuo a não perceber nada do que dizem os médicos"6.

A escritora chilena Isabel Allende, na obra Paula, que relata a doença hematológica que vitimou a sua filha, é ainda mais contundente na crítica ao médico especialista que a acompanhava. No seu diálogo imaginário com a filha em coma, revela a sua angústia e a aparente indiferença e distanciamento emocional do médico:

"Todas as manhãs, percorro os corredores do sexto piso à caça do especialista para indagar novos pormenores. Esse homem tem a sua vida em suas mãos e eu não confio nele; passa como uma corrente de ar, distraído e apressado, dando-me nebulosas explicações sobre enzimas e cópias de artigos sobre a sua doença que eu tento ler, mas não entendo. Parece mais interessado em alinhavar as estatísticas do seu computador e as fórmulas do seu laboratório do que no teu corpo crucificado pousado nessa cama. É assim essa enfermidade, uns recuperam da crise em pouco tempo e outros levam semanas na terapia intensiva; dantes os pacientes pura e simplesmente morriam, mas agora podemos conservá-los vivos até o metabolismo funcionar de novo, diz-me ele sem me olhar nos olhos"7.

O oncologista Dráuzio Varella, no seu livro O médico doente: a experiência de um médico como paciente, ajudanos a compreender os sentimentos de um clínico "do outro lado" da relação. Varella descreve com realismo a atitude do colega que lhe revelou a etiologia da sua doença, à semelhança do diagnóstico triunfalista do primeiro médico de Ilitch: "É povoada de contradições a prática da medicina: na voz do médico havia um misto de lamento pela gravidade do diagnóstico e uma ponta de orgulho por ter chegado a ele"8. Apesar do conhecimento do diagnóstico da doença ter habitualmente um efeito tranquilizador no paciente, tratando-se da temível febre amarela as notícias não podiam ser animadoras:

"De um lado, esclarecer o diagnóstico trouxe alívio: nada é pior do que lidar com o desconhecido. De outro, não foi agradável saber que se tratava de uma virose para a qual não existe tratamento e que evoluiria para a cura ou o óbito sem que eu nada pudesse fazer, além de encontrar forças para enfrentá-la"8.

Miguel Torga (1907-1995) revela também, no seu último Diário, de que forma a sua experiência como médico influenciou sua condição de doente oncológico, nomeadamente com relação à compreensão da gravidade do seu estado clínico:

"Passei a vida a tratar doentes, e fi-lo com todas as veras da alma. Não fiquei a dever humanidade a nenhum. Mas faltava-me a prova suprema de sofrer sem esperança numa cama ao lado deles [.] minado do mesmo mal incurável. Com a diferença apenas de que a ignorância lhes permite alimentar um absurdo fio de esperança, que eu, por sabedoria profissional não posso compartilhar"9.

No entanto, como observa Axel Munthe (1857-1949) na sua obra notável O livro de San Michele, "não há remédio tão poderoso como a esperança, e que o menor sinal de pessimismo no rosto dum médico pode custar a vida ao doente"10.

Voltando ao livro de Tolstoi, João Lobo Antunesescreve, a propósito do primeiro encontro clínico descrito na novela:

"É evidente a total falta de empatia, ou seja, a capacidade da parte do médico de compreender tudo o que lhe é transmitido, devolvendo em seguida ao doente o sinal dessa compreensão [.] Ao médico faltava calor, compaixão, clareza na linguagem, sobejando-lhe autoridade e conduzindo o interrogatório de modo a extrair as respostas que iriam apenas confirmar a hipótese que previamente construíra"11.

Seguramente, havia bons médicos, compassivos, solícitos e altruístas na Rússia do século XIX, do mesmo modo que haveria clínicos frios e impertinentes, como os retratados por Tolstoi, na mesma época, em Portugal ou no Brasil. No clássico da literatura portuguesa As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis (1839-1871), contemporâneo de Tolstoi, a célebre personagem João Semana é retratada como um clínico exemplar. A sua compaixão, altruísmo e generosidade eram reconhecidos e admirados pelos seus conterrâneos:

"Cirurgião dos pobres, por encargo oficial, era-o João Semana também, e sê-lo-ia sempre, por impulsos do coração, que lhe não deixava presenciar um infortúnio qualquer, sem simpatizar com o que sofria, e sem empregar os meios para o aliviar. Muitas vezes, na mão, que estendia ao pulso dos seus doentes, ia escondida a esmola, que manifestamente se envergonhava de dar, por aquela repugnância a ostentações de todo o género, que constituía um dos distintivos do seu carácter"12.

Júlio Dinis revela também que João Semana, médico da aldeia, "era perdido por anedotas, das quais podia dizerse um repositório vivo [.] Uma história contada a tempo, e com graça, vale bem três récipes, pelo menos"12. Atualmente, é reconhecido o valor terapêutico do humor, mesmo nos doentes oncológicos, como o demonstra o trabalho bem sucedido dos "doutores-palhaços" da Operação Nariz Vermelho, em enfermarias e hospitais pediátricos.

Tantas são as virtudes de João Semana que poderá parecer tratar-se de uma personagem utópica. Porém, como refere João Lobo Antunes:

"(...) consola saber que João Semana não representava um arquétipo idealizado por Júlio Dinis, mas fora decalcado de um médico de carne e osso, precisamente o Dr. Silveira, que tinha como traço fundamental de caráter o ser profundamente humano"13.

Aparentemente, o aspecto mais negativo da vida de João Semana era a sua relutância, e desconfiança até, em acompanhar os progressos da ciência médica, o que retrata com realismo a atitude de muitos clínicos mais velhos para com as inovações mais recentes da medicina:

"Quando Daniel lhe citava um autor em voga, ou se referia a uma descoberta notável, ou a um medicamento novo, João Semana encolhia os ombros, sorrindo.

- Tudo isso é muito bonito colega -, dizia ele, com poucas contemplações para com a impaciência do seu jovem colega - mas não me serve para nada. Era o que me faltava se eu, que mal tenho tempo para dormir, me punha agora a ler essas coisas todas"12.

Também o escritor Erico Veríssimo (1905-1975) identifica a falta de tempo do médico Eugénio Fontes, principal personagem da sua obra Olhai os Lírios do Campo, como um dos principais obstáculos à atualização de conhecimentos: "O trabalho era intenso, os momentos de folga faziamse cada vez mais raros e curtos e ele mal tinha tempo de passar os olhos à pressa pelos livros de medicina"14.

Em contraste com o desinteresse do médico de Ilitch pela angústia e preocupações do paciente, encontramos em As Pupilas do Senhor Reitor a solicitude do médico novo em visita à família Esquina: "Daniel foi miraculoso de paciência na atenção que lhe deu; e sublime de sisudez e compostura nos conselhos que, em seguida, recomendou"12. No livro de Tolstoi, a personagem do médico não descura, porém, um exame físico minucioso e pormenorizado, que incluía a tradicional inspeção, palpação, percussão e auscultação, mesmo quando o desfecho fatal da doença era evidente para todos2.

No exercício atual da medicina, há uma tendência para se valorizarem mais os exames complementares de diagnóstico, sobretudo imagiológicos, em detrimento da anamnese e exame físico, apesar de ser conhecido que eles fornecem per se 70% a 80% da informação necessária para se chegar a um diagnóstico15. Nas palavras do cirurgião português Jaime Celestino da Costa (1915-2010), esta realidade "não é mais do que uma situação típica da sociedade de consumo - duma espécie de supermercado da medicina"16, em que "o clínico passou sobretudo a ver exames, e não doentes: estes despem-se menos e conversam menos com o médico, que sabe menos da sua doença, da sua personalidade e do seu meio. Há menos conhecimento mútuo"16. Tal opinião é partilhada pelo médico e escritor José Pedro Lima-Reis:

"Antigamente os doentes apenas traziam consigo o relato sofrido das suas dores e sobre a mesa, onde descansavam lado a lado o aparelho para medir a tensão, o fonendoscópio e o martelo de reflexos, punham, quando muito, as mãos que lhes davam forma movidos pela convicção de que os poderíamos ajudar a ultrapassá-las. Hoje, dão-nos os bons dias, trazem-nos colecções muito valiosas de papéis timbrados com esmerados arranjos gráficos vestidos de relatórios com redacção sofrível e despejam-nos sobre o tampo da secretária enquanto esperam, mudos, desconfiados e aflitos, que lhes dêmos de mão beijada um diagnóstico burocrático que não precise de passar pela devassa da sua intimidade"17.

Outro aspecto que Tolstoi enfatiza em A Morte de Ivan Ilitch é a hipocrisia e mentira por parte de todos os que rodeavam o paciente, exceptuando o seu criado Guerássim, o único a falar-lhe com verdade e compaixão:

"Aquilo que mais o atormentava era a mentira, aquela mentira que por qualquer razão era aceite por todos, segundo a qual ele estava apenas doente e não estava a morrer, e apenas precisava de estar sossegado e tratar-se e que então resultaria daí qualquer coisa muito boa. Mas ele sabia que por mais que fizesse nada resultaria, a não ser sofrimentos ainda maiores e a morte. E essa mentira atormentava-o, atormentava-o o fato de não quererem reconhecer aquilo que todos sabiam e ele sabia, mas quererem mentir-lhe acerca do seu estado horrível e obrigálo a ele a participar nessa mentira"2.

O recurso à chamada mentira piedosa tem sido a prática generalizada por parte dos médicos no seu relacionamento com doentes portadores de patologias graves, incuráveis e de prognóstico fatal, em uma tentativa de minorar o sofrimento, conforme retrata Erico Veríssimo:

"O Dr. Seixas coçou a barba e ali de pé, ao lado da cama, olhava para a velha amiga que aos poucos morria. E de quando em quando resmungava com a sua voz áspera: "Não é nada, Alzira, amanhã você está boa. Não é nada". Tinham feito tudo quanto fora possível fazer. Haviam chamado em conferência os melhores médicos da cidade. Agora só lhes restava esperar a morte e tornar à moribunda menos dolorosas aquelas últimas horas da vida"14.

Contudo, nos últimos anos, tem-se assistido a uma mudança gradual dessa postura, claramente paternalista, para uma atitude de partilha de informação ao próprio paciente, com sensibilidade e bom senso, sobre o diagnóstico e prognóstico da sua doença.

Faz também parte da natureza humana, especialmente em situações de dor e sofrimento, desejar ser confortado, com autenticidade, pelos que prestam cuidados de saúde e pelos familiares e amigos mais próximos. Tal desejo esconde-se, por vezes, sob uma capa de convenções sociais e da atitude comum de "não dar parte de fraco", que não correspondem ao verdadeiro sentimento do paciente, como lemos na obra de Tolstoi:

"Além dessa mentira, ou por causa dela, o que mais atormentava Ivan Ilitch era que ninguém tivesse pena dele como ele queria que tivessem: em certos momentos, depois de sofrimentos prolongados, o que Ivan Ilitch mais queria, embora tivesse vergonha de o reconhecer, era que alguém tivesse pena dele como de uma criancinha doente. Queria que o acarinhassem, que o beijassem, chorassem por ele, como quem acaricia e consola as crianças. Sabia que era um funcionário importante, que tinha a barba grisalha e que, portanto, isso era impossível, mas, mesmo assim, ansiava por isso"2.

Durante o seu internamento hospitalar em Nova Iorque, José Rodrigues Miguéis encontrou uma enfermeira exemplar, Mrs. Abbey, que o tratou de forma compassiva, após uma reação pós-transfusional que lhe ocasionou febre e tremuras intensas:

"Mrs. Abbey não me abandonou um só instante. Inclinada para mim, sorria-me, falava-me como se fala a um bebê no berço, friccionava-me, aconchegava-me melhor, dizia palavras animadoras. Que solicitude e que brandura as desta mulher autoritária e brusca, e que cordialidade a sua, após mais de quarenta anos de calejante profissão"4.

No entanto, Dráuzio Varella reconhece que, na condição de paciente, "o mais humilhante é obedecer com a docilidade dos cordeiros, porque a doença tem o dom de nos fazer regredir ao tempo em que nos entregávamos indefesos aos cuidados maternos"8.

A compaixão que os profissionais de saúde manifestam pode ter um efeito terapêutico imediato nos pacientes. O repórter de viagens Riyszard Kapuscinski (1932-2007), no seu livro Ébano: Febre Africana, relata uma ocasião em que teve necessidade de consultar um médico na Tanzânia e os benefícios desse encontro:

"Rompi por entre a multidão e perguntei lá dentro pelo doutor Doyle. Fui recebido por um homem de meia-idade cansado, exausto, que deu imediatamente provas de grande simpatia e afetuosidade. Só a sua presença, o seu riso e a sua simpatia surtiram em mim o efeito de um bálsamo"18.

A esse respeito, Axel Munthe é peremptório ao afirmar que "não se pode ser um bom médico quando se não é igualmente compassivo"10.

As reflexões que apresentamos, a partir da leitura de diferentes obras literárias, realçam a importância das virtudes e do caráter do médico na complexa relação médicopaciente. É por esse motivo que Edmund Pellegrino enaltece o valor da literatura na formação ética e humana dos médicos, e de todos os que, de alguma forma, lidam com seres humanos doentes ou em sofrimento.

Trabalho realizado no Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa, Portugal

  • 1. Pellegrino ED. The humanities in medical education: entering the post-evangelical era. Theor Med. 1984;5:253-66.
  • 2. Tolstoi L. A morte de Ivan Ilitch. Biblioteca Clássicos António Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote; 2008.
  • 3. Antunes AL. Prefácio. In: Tolstoi, L. A morte de Ivan Ilitch. Biblioteca Clássicos António Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote; 2008.
  • 4. Miguéis JR. Um homem sorri à morte com meia cara. Lisboa: Estampa, 1984.
  • 5. Alegre M. Jornada de África. Lisboa: Dom Quixote, Círculo de Leitores; 1989.
  • 6. Didion J. O ano do pensamento mágico: uma peça de Joan Didion baseada nas suas memórias. Lisboa: Bicho do Mato; 2009.
  • 7. Allende I. Paula. Algés: Difel; 2001.
  • 8. Varella D. O médico doente: a experiência de um médico como paciente. Alfragide: Oficina do Livro; 2009.
  • 9. Torga M. Diário XVI. Coimbra: Edição de Autor; 1993.
  • 10. Munthe A. O livro de San Michele. Lisboa: Livros do Brasil; 1998.
  • 11. Antunes JL. Relendo a morte de Ivan Iliitch. In: Um modo de ser: ensaios. 7Ş ed. Lisboa: Gradiva; 1997.
  • 12. Dinis J. As pupilas do Senhor Reitor. Porto: Porto Editora; 2004. p.105-6.
  • 13. Antunes JL. Uma na cosa è. In: Sobre a mão e outros ensaios. Lisboa: Gradiva; 2005.
  • 14. Veríssimo E. Olhai os lírios do campo. 18Ş ed. Lisboa: Livros do Brasil; 2007.
  • 15. Enelow AJ, Forde DL, Brummel-Smith K. Entrevista clínica e cuidados ao paciente. Lisboa: Climepsi; 1999.
  • 16. Costa JC. Um certo conceito de medicina. Lisboa: Gradiva; 2001.
  • 17. Lima-Reis JP. O estranho caso da mulher assanhada e outras histórias médicas. Porto: Campo das Letras; 2004.
  • 18. Kapuscinski R. Ébano: Febre africana. Porto: Campo das Letras; 2001.
  • Correspondência para:

    Instituto de Bioética - UCP
    Rua Diogo Botelho
    4169-005, Porto, Portugal
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012
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